Fragmentos dispersos, 7

Travas mentais. Tive um insight em que penso ter resolvido a questão de que tratava no post anterior, sobre o impacto de um dia de trabalho. Sei que isso não é nenhuma originalidade (veja o conceito de “compartimentalização” por aí), mas pouco importa, desde que funcione. E, até aqui, tem funcionado. É algo bem simples: basta colocar uma espécie de trava na mente. Um tipo de comando em que você se auto-impede de trilhar alguns caminhos de pensamento. Por exemplo: ao chegar em casa, basta colocar uma trava no sentido de impedir o pensamento de ficar remoendo o dia, reensaiando formas de agir diferente nas situações a, b ou c. O dia passou, o dia acabou, ele não existe mais. Todas as impressões desse dia passam a ser fragmentos sem sentido de coisas já vividas. Não podem ser revividos. Não podem ser reproduzidos. Não tinham, para começo de conversa, nenhuma finalidade ou objetivo ou propósito de seguir determinado curso. Foram coisas aleatórias. Umas, agradáveis; outras, nem tanto. É como tomar uma chuva. Você chega em casa e logo troca de roupa. Não fica sentado no sofá com as roupas molhadas pensando que deveria ter levado um guarda-chuva. Você simplesmente chega em casa, tira a roupa, o sapato etc. molhados, toma uma ducha quente e toca a vida. Você nem pensa mais que tomou uma chuva no caminho da casa. Por que não poderia ser a mesma coisa para as atividades e os (maus) encontros durante um dia?

Peak performers. Ouvi um gestor de um grande fundo de investimento falar que ele estava profundamente interessado em “casos exepcionais”. Deu o exemplo de uma cantora norte-americana que fez um sucesso estrondoso com seus shows em 2023. Tal gestor diz ter levado a filha para o show dessa cantora, meio que dando a entender que, como pai, gostaria que a filha aprendesse “com a melhor”. É interessante. Um acontecimento que nunca me esqueço, duas décadas atrás, é quando tive minha primeira experiência como “terapeuta”. Foi durante o estágio do quinto ano da faculdade de psicologia. A paciente tinha uma questão com mulheres em revistas de moda. Dizia achar aquelas mulheres verdadeiros modelos, e que se ressentia profundamente por não ter o rosto, o corpo, o talento daquelas mulheres. Isso de algum modo me inquieta até hoje, essa secular tendência de as pessoas olharem apenas para os top performers, para os extremos de sucesso em cada campo artístico, profissional, pessoal. O tal gestor de fundos de investimento quer que sua filha só olhe para cima, só olhe e só intencione o melhor. Não, não, o melhor não. O excepcional. Todo o resto é só isso: resto e mediocridade. Não haveria nada a se aprender com aquela zona, em um gráfico de distribuição normal, que fica entre os extremos. Quer dizer, nada de bom com os 68,2% do meio (figura; [fonte]). As exigências estão ficando mais rígidas, e agora estaríamos apenas interessados nos 0.1%. Nos anos 1990 alguns psicólogos e sociólogos franceses chamavam o fenômeno de culto da performance ou da excelência. De lá para cá, o fenômeno só tem se intensificado. Não é interessante? Quanto mais o mundo caminha para números surreais (atualmente, mais de 7 bilhões de humanos vivem, e bilhões mal ganham o suficiente para ficarem vivos), mais vamos puxando para o 00000000000.alguma coisa do lado direito da figura abaixo?

Doença da fala

Às vezes, quando chego em casa à noite, após interagir com outras pessoas, em particular no ambiente profissional (no meu caso, atuando como professor), sinto como se precisasse apagar tudo o que aconteceu durante o dia. É uma espécie de incômodo. Algumas vezes sinto como se não tivesse sido autêntico em minhas interações. Não disse o que gostaria de dizer. Ou então sinto como se não pertencesse de modo algum ao ambiente em que estive até chegar em casa. Como se aquele ambiente não fosse autêntico, como se muitas pessoas não fossem autênticas – ou, pior, podem até ser que sejam, o que torna a coisa ainda mais assustadora para mim. Talvez tenha a ver com certa aversão ao teatro que tenho, digo, essa teatralidade repleta de platitudes que outros dizem quando estão em grupo.

Fico agitado nesses casos. É como se algum tipo de harmonia do meu ser tivesse sido prejudicada. Já usei esta metáfora antes, mas agora o faço novamente com uma nova aplicação: é como se a água de uma poça (ou, se quiser, a superfície de um rio calmo e estável) tivesse sido agitada, e leva-se um tempo até que ela novamente volte à sua posição inicial.

Acredito que as pessoas possam adoecer pela palavra. Especialmente em profissões como a de professor, nas quais a matéria do trabalho é justamente a palavra. Não há a opção de ficar calado no seu canto: você é convocado a falar. Melhor, isso está implícito (ou ridiculamente explícito, na verdade) na natureza do próprio trabalho de professor. Há também o desgaste físico envolvido em falar o tempo todo, entre tantas outras auguras da vida docente, mas acho que o mais complicado mesmo é o desgaste mental.

Porém, ontem tive um pequeno insight, se posso dizer assim. Sempre interpretava minha sensação de mal-estar, da água em distúrbio da minha “poça mental”, como um defeito meu. Por ser às vezes um pouco obsessivo, é claro que fico repassando o que eu disse ao longo do dia, e julgando o que teria sido correto (impecável, no fundo) dizer. Provavelmente, outras pessoas com quem interagi sequer se lembrem de ter me ouvido falar, quando muito de avaliar o conteúdo do que eu disse! Mas, tirando isso, há algo mais elementar: a coerência entre o que falo e no que acredito de verdade.

Também acho razoável pensar que é praticamente impossível falarmos exatamente o que estamos sentindo ou no que acreditamos. Há sempre um desvio nisso aí. Porém, e este foi o pequeno insight, e seu eu primeiro descobrisse no que realmente acredito e, por um segundo, imaginasse um mundo real em que eu pudesse falar a partir desse lugar de quem acredita naquilo que está falando? Será que teria alguma crença fundamental a partir da qual estruturar a fala? Não parece tão simples. Até porque só descobrimos alguma coisa sobre nós, inclusive no que acreditamos, quando falamos! E também não é nada prático, tampouco saudável, ficar pensando e estruturando um discurso para falar, um que representasse fielmente o que acredito. Isso implicaria numa postura diante das outras pessoas em que estas devessem ser passivas e eu fazendo um monólogo unilateral (longe de mim essa postura; acho, inclusive, o contrário: interlocução descentralizada, mas desde que com pessoas genuinamente interessadas e, sobretudo, preparadas ou competentes).

E há ainda um complicador adicional. Profissionalmente, quando falo, não falo, em tese, de crenças pessoais, mas sim de um conhecimento que me transcende, isto é, que não é, propriamente, meu. Ninguém vai assistir uma aula… bom, ninguém em meu círculo de relações ou de experiências… por conta de que sou eu quem vai falar. O aluno sequer sabe qual será seu professor, ou tem muito pouca, se alguma, interferência na escolha do professor. Ele está lá para aprender sobre uma “matéria” da psicologia, no meu caso, psicologia do trabalho. Então, temos também essa possível diferença entre opiniões e fatos, entre teoria e crenças, e assim por diante. Mas não gostaria de complicar muito meu insight, se não ele vai acabar se perdendo.

Voltando ao que pensei: ainda dentro desse exercício mental livre, que mundo seria esse, ou melhor, o que me impede de estar nesse mundo, em que eu pudesse falar, de fato, no que acredito? Bom, talvez eu fosse rejeitado, processado, estigmatizado…talvez. Ou talvez eu fosse aceito, até mesmo acolhido, quem sabe até com alguma excentricidade… muito embora não se trate de nada fora do comum, mas simplesmente de dizer coisas que não se distanciem muito daquilo que eu acredito ser (digamos, meus valores ou expectativas).

Para ser honesto, tive esse insight assistindo ao meu comediante predileto (embora não seja muito culto em termos de comediantes), George Carlin. Eu assisto repetidas vezes (já perdi a conta) algumas das peças que ele apresenta em seus shows. Tem coisas que ele fala e que eu acredito com todo o meu ser. Mas tem coisas que ele diz (dizia, na verdade; ele teve uma carreira de uns 40 anos como comediante, mas faleceu em 2008) que hoje soariam muito, mas muito, controversas. Seja como for, o ponto que me atraiu foi de que a postura dele era a de alguém crítico da cultura de seu tempo. Aparentemente, ele não tinha um lado (político, por exemplo) em detrimento de outro. Ele passava a imagem de estar assistindo à distância. Para ser mais exato, ele costumava falar que havia comprado um ticket para o “freak show” que era a vida cotidiana (a cultura norte-americana de classe média) de seu tempo. Genial, absolutamente genial, e, pelo menos na aparência, indiferente à opinião das outras pessoas. Seria essa uma forma para existir: não acreditar no que se vê e, como resultado, usar de comédia e sátira para se posicionar diante do show de horrores da vida em grupo?

Bonus: um vídeo de George Carlin, dos poucos com legenda em português. Neste, ele discute algo um pouco diferente das “free floating hostilities” que ele costuma fazer em seus shows. Este é mais filosófico, por assim dizer. Para mim, impecável!

O esteta

Don Giovanni, ou Don Juan, é uma peça de Mozart. Nela, D. Juan é um sedutor. Ele seduz mulheres sem qualquer consideração escrupulosa. Destroi casamentos, reputação, honra. Vai até as últimas consequências em seus planos, manobras, “lábia”, mentiras e artifícios. Ao conquistar uma mulher, ele então a abanona e passa para a próxima. Não se satisfaz com uma conquista. É como se seu desejo não tivesse objeto, a não ser o próprio desejo de desejar.

Nunca dei muita importância a essa história. Lembro-me de ter assistido um filme (ou séria, já não tenho certeza) sobre D. Juan, e tinha em minha mente que ele era um homem bonito, ou pelo menos bem apessoado, um galã, como se diz, ou um “garanhão”. Esta última palavra era usada no meu tempo de adolescência e juventude para descrever homens (geralmente) que “pegavam” muitas moças (“pegar” pode já estar fora de moda, ou ser uma palavra “cancelada”, assim como “garanhão”). Don Juan seria como esses personagens de vampiro que ficaram famosos, especialmente com adolescentes, ao menos no que diz respeito à beleza, à nobreza e ao potencial sedutor (embora vampiros, ao menos os da televisão, acabem se acalmando “pela eterninade” com um único amor…).

Vai tarde quando descobri que Don Giovanni foi escolhido por Kierkegaard como uma espécie de ideal-tipo, um modelo para a descrição de uma forma de relação com a existência que esse filósofo denomina de estética. A existência estética é uma em que o sujeito vive pulando de uma sensação para outra, de uma aventura para outra. Em termos atuais, poderíamos dizer que o esteta é um típico sujeito consumista. Ele não se importa muito com o conteúdo do que consome, desde que esteja consumindo, comprando e destacartando coisas e… pessoas. Aliás, o consumista como ideal-tipo é uma condição praticamente inescapável em uma economia capitalista de mercado.

Kierkegaard usa uma metáfora muito interessante para capturar essa existência. Nessa imagem, o esteta procede como que “rotacionando culturas”. Por exemplo, hoje você planta milho em seu pedaço de terra. Após a colheita, você resolve plantar cenouras. A terra nunca é cultivada de modo a acomodar uma plantação mais perene, como pés de café, ou mesmo árvores, algumas das quais, como sabemos, podem ser centenárias.

O esteta está permanentemente frustrado, incompleto, com um desejo que nunca se aquieta. É como aquela pessoa que começa um emprego e logo o deixa para fazer outra coisa. Começa um relacionamento e, assim que este começa a exigir um pouco mais de compromisso e estabilidade, ele o deixa, começando tudo de novo, como fazia Don Giovanni. Lê livros pela metade, ou então em passagens aleatórias. Responde a uma mensagem em um aplicativo de mensagens, e depois nem lembra mais direito o que quis dizer – pois fala sem compromisso, sem a substância de seu próprio corpo, seu coração, sua alma. Em nossa época, até patologias foram identificadas em relação a pessoas cuja atenção não consegue repousar em uma única coisa de cada vez.

O esteta, em termos morais, é um sujeito sem comprometimento, um flaneur, um avião que nunca aterriza. Sempre mudando de “culturas”, vive uma vida de curtição, de escapadas, de duplicação ou triplicação de frentes existenciais, de palavras vazias dadas ao outro. Um insaciável; em português direto: um mentiroso. Como um viciado em drogas, dobra a aposta quando sente o vazio bater à porta. Ele se imagina livre e autônomo, incapaz de ser capturado por estruturas sociais (como, por exemplo, pelos costumes de seu tempo), de ser moldado, forçado a servir a um único mestre. Ele se sente indomável, rebelde.

Mas a vida do esteta não segue sem rachaduras, falhas e potenciais ameças. Primeiro, essa vida depende de sorte, ou de um berço de ouro, e ainda de uma quantidade infinita de tempo, uma em que doença, velhice e morte não fazem parte da cena. Segundo, ela apresenta um problema observado em finanças, conhecido como “lei de retornos decrescentes” – a mesma coisa, ao longo do tempo, se mantidas certas condições (por exemplo, uma peça sem manutenção), tende a se depreciar, a perder o valor, a parar de funcionar. Terceiro, uma ameaça particularmente preocupante para uma vida estética é o tédio. Aqui temos uma espécie de ironia do Criador, pois, por alguma razão, quando fazemos sempre a mesma coisa, ainda que por “mesma coisa” queiramos dizer “fazer coisas sempre diferentes”, somos corroídos pelo tédio. Não à toa, o Sedutor, figura usada por Kierkegaard em um de seus livros (do qual Don Juan é o protótipo), é cercado de tédio. Ele, em algum nível, sente que sua vida tem algo de errado, que não é inteiramente justificada em si mesma. Na tentativa de ser livre acaba se tornando dependente de fatores externos para manter seu zest. O esteta se torna dependente de distrações – e, para tê-las, paga um preço cada vez mais elevado.

Na análise de Kierkegaard, a vida estética é abalada pela intromissão do ético. Uma vida que apenas perambula sobre ela mesma não é mais do que uma coleção aleatória de momentos ou trills. Ela não tem algo que a amarre a si mesma em um conjunto, que lhe impulsione a partir de um eixo, ou de uma narrativa coordenada. À cada excitação e aventura, intensa mas fugaz, o esteta é deixado consigo mesmo, no vazio, já novamente pensando em o que fará a seguir para preencher esse vazio com uma nova forma de sedução (de objetos ou outras pessoas).

Finalizo esse breve rascunho com a ferida do esteta: o desepero. É o desespero que abre a lacuna crucial para a vida estética ceder à vida ética. O desepero é o que demanda que o esteta pare de “viajar na maionese” e aterrize por um momento e passe a encarar o fato de sua vida estar girando no vazio, por mais empolgante que alguns momentos possam ser. Aprender a encarar o desespero é a oportunidade para levar a vida a um nível mais elevado de desenvolvimento.

Em algum momento, se inspirado, pretendo voltar ao tema do desespero, da angústia, e da vida ética, uma vida em que temos de nos comprometer, temos de aterrizar, temos de considerar que existem outras pessoas e que, no limite, estamos aqui para servi-las. Não se trata, pelo que entendo, de abandonar por completo elementos da vida estética, mas de não deixar que tudo se defina por ela. De fato, aspectos da vida estética são valiosos, pois, do contrário, tudo seria muito maçante, como a vida de um juíz imaginário (que, aliás, é o ideal-tipo usado por Kierkegaard para ilustrar a vida ética), duro, rigoroso, obediente à lei.

4.5 bilhões de anos

Fragmentos dispersos, 6

Após um bom tempo de pausa (quase havia esquecido que tinha este espaço), vou tentar retomar algumas anotações. Como sempre disse aqui, praticamente escrevo para mim mesmo. Gosto de voltar a algumas anotações de tempos em tempos, na curiosa ociosidade de tentar ver se ainda penso certas coisas.

A coisa mais assustadora sobre o universo. O NYT fez, por estes dias, uma série de breves áudios por ocasião do feriado de Halloween. Em uma delas, o autor escolheu o que para ele seria a coisa mais assustadora do universo. Outros escolheram diferentes coisas – o poema, o filme, o livro mais assustadores. E eis o que realmente é assustador sobre o universo, muito mais do que um buraco negro devorador até de luz, ou um meteoro acertando a Terra: o fato de que todo o Universo poderia desaparecer completamente, e sem nenhum aviso prévio. Isso poderia acontecer a daqui alguns bilhões de anos, ou neste exato instante. Tudo o que já existiu, tudo o que poderia existir, isto é, o passado, o futuro, até mesmo as leis da Física: tudo simplesmente esvaneceria sem deixar o menor traço. Todos os grandes pensadores da humanidade, toda a história das civilizações, todos os livros escritos, as artes, os amores, as dores, as memórias, deuses, etc. Seria como se nunca tivéssemos existido. Nada do que você fez, ou do que você deixou de fazer, nada disso realmente importaria absolutamente. A razão de tudo isso é a existência de uma partícula sub-atômica chamada Higgs’ boson, o qual é uma manifestação de uma energia chamada de Higgs’s field. Esta energia permeia todo o espaço-tempo, imbuindo todas as outras partículas com massa. Sem ele, nenhuma das outras partículas teria qualquer massa. O universo não teria átomos ou estrelas. Esse campo, ou field, é instável. Sem aviso, ele pode mudar de forma. Como água virando gelo. Essa mudança alteraria toda a realidade que conhecemos, dissolvendo todos os átomos e, por consequência, tudo o que conhecemos e experimentamos. Sem átomos não haveria DNA…não haveria pessoas. E tudo se dissolveria na velocidade da luz. Você não sentiria nada. E seria o fim de tudo. O autor lembra Shakespeare: Somos feitos da mesma coisa que os sonhos são feitos, e nossa vidinha é cercada pelo sono.

Ainda sobre o universo. Em uma outra reportagem recente do NYT, a autora questiona sobre o que aconteceria com um corpo humano no espaço. Esquecemos o quão acolhedora é a Terra, mesmo com todos os riscos naturais que presenciamos de tempos em tempos. Quando comparada ao Universo, a Terra é uma estufa inacreditável, um sistema absolutamente fantástico, tão perfeito no nível macro como no nível microscópico. No espaço, entre outras coisas, não teríamos duas coisas fundamentais: gravidade e proteção contra radiação. É óbvio que não há oxigênio também, de modo que morreríamos asfixiados em questão de segundos, muito antes de a ausência de gravidade ou excesso de radiação nos incomodar. A ausência de gravidade talvez seja o fator mais pervasivo, pois essa condição alteria todo o equilíbrio de forças em nosso corpo: nossa massa muscular, a distribuição de sangue entre os vários compartimentos corporais, fluidos (como o de urina), nosso aparelho digestivo, até mesmo a distribuição de nossa microbiota intestinal. Astronautas, que via de regra são selecionados por suas capacidades físicas excepcionais, têm uma sobrevida menor que a de outras pessoas que nunca tiveram a chance de conhecer o espaço. As forças magnéticas produzidas pelos dois pólos terrestes agem como um manto a envolver o planeta, dispersando o grosso da radiação. O espaço é um ambiente inóspido, vazio, averso a qualquer forma de vida (pelo menos, a nossa vida humana), brutal em seu dançar de forças violentas. Infinito. É interessante como, em nosso cotidiano, ficamos tão introspectos, tão fechados em nós mesmos, em nossos afazeres, que simplesmente não consideramos esses pensamentos. Eu mesmo às vezes me pergunto por que tanto dinheiro, energia, expectativa e trabalho estão sendo aplicados em explorações espaciais. Por exemplo, alguns empreendedores estão pensando, em um futuro próximo, criar estações espaciais que funcionariam como uma espécie de resorts ou hotéis para gente com muito dinheiro poder explorar a Lua ou Marte. Por que não devotamos todos esses recursos para resolvermos problemas na Terra? Mas no fundo dá para entender. Somos uma espécie fascinada, sempre se colocando desafios monstruosos, incapaz de aceitar nosso simples estar em um local, mesmo em um único planeta. O gênio humano precisa ser canalizado, concentrado, focado em uma missão como essas. Muitas sub-áreas são criadas dessa forma – por exemplo, medicina espacial. E é interessante, pois, no fundo, tais missões só vão aprofundar nossa compreensão do básico, do essencial: como a Terra, e a vida nela, são condições excepcionais. E melhor: nos foram dadas gratuitamente.

Why?

O lugar na fila

Quando eu era pequeno, havia uma situação que eu odiava. O momento em que ficávamos numa fila esperando sermos convocados para formar dois times de futebol. Eu e um outro sempre ficávamos por último, quando não havia mais a quem escolher. Hoje, muitos anos depois, ainda sinto uma dor grande quando sou o último da fila. Mas deixar alguém por último na fila e uma prática normal. Até mesmo na universidade isso ocorre. Justamente onde deveríamos olhar para exatamente o fim da fila. Não sei do destino da maioria daqueles meus coleguinhas de colégio. A maioria por certo sequer chegou à universidade. Custa para entendermos que estar no papel de selecionar os melhores pode ser uma arma nas mãos de quem não tem outra coisa.

Mas o que há no medo de ser o último da fila? Não creio ter crescido ressentido, do tipo que “vai se vingar”. Talvez eu seja o tipo que “vai provar”. Tão triste quanto. Pois provar para quem? Onde estão esses expectadores imaginários do meu “eu”? Por outro lado, acho que meu medo, mesmo, é de não aceitar a lógica do mundo, a qual podemos observar em qualquer lugar na natureza. O fraco é deixado para trás. Se fôssemos cuidar de todos os fracos, com certeza não estaríamos aqui. Estaríamos, é claro, em uma outra humanidade. Diferente. Meu medo é de não corresponder a essa lógica subjacente. E suponhamos que eu não corresponda, mesmo (o que, aliás, é bem claro que não correspondo, a menos que me compare com formigas). O que vai acontecer? O que se perde? Qual o ponto em esbarrar-se com uma parede?

Relativizar: Ah, se eu estudar duro, se eu praticar, se eu me esforçar a ponto de me matar, aí o verdadeiro talento aflora. Subjugar-se: Sou assim mesmo, não há nada que eu possa fazer; o mundo é cruel mesmo, injusto. Racionalizar: Não posso ser culpado pelos meus fracassos; há um mundo cruel aí fora, com critérios artificiais, com pessoas competindo em condições desiguais.

O que você enxerga se encarar seu fracasso, dentro da lógica em que ele pode ser, sim, um fracasso? Ah, como existem respostas a esta questão. A maioria “fracassa”, logo, esse é um assunto sobre o qual muitos quebram a cabeça para ter algo a dizer. O pessoal da auto-ajuda é especialista em fracasso, por exemplo. E há também a religião, um poço infinito de antídotos ao fracasso – necessário, aliás, ou talvez chegássemos a uma guerra ou a uma sociedade dopada (infelizmente, você deve saber que é este último caso). Há filósofos que escrevem sobre como tirar lições do fracasso etc.

Volto à questão: o que há, no fundo do fundo, de ser alguém deixado por último na fila? Existe um não-ser. O não-amor. O abandono, a indiferença ou a humilhação. Para não falar das consequências materiais. Contra isso, me parece que há uma saída necessária: é preciso “construir” um ser que se contraponha a esse nada. E aí vamos para questões realmente profundas, reais: qual o “lastro” desse ser? Talvez seja uma situação trágica, pois não há lastro único, digamos, interno (o que poderia ser no fundo uma racionalização de um ser, como nas opções que coloquei acima). Porque veja: um crente (religioso; ou um crente “sábio” de tipo pagão), ele vai resistir ao nada com suas racionalizações e vai se espelhar em outros que simplesmente, pelas mesmas razões, se copiam entre si. Todo mundo, lá no fundo, anda por aí com essa questão no centro de sua existência. Discordo de quem diga que há tantos alienados e tal. Não, em relação a esta questão: em algum momento, à noite, num ponto de ônibus, dirigindo, etc., todos estão conscientes. A alienação talvez venha das estratégias para responder a isso. Então, o ser precisa se colocar, se afirmar, inclusive ou sobretudo quando é deixado para o último lugar da fila. Porque todos, na ponta da fila, são iguais; os da última fila, estes que sofrem, estes sofrem cada um a sua maneira.

Uma vez me ocorreu que talvez o corpo fosse a resposta. Porque o “eu” é, no fundo, um corpo, e nada mais do que isso. Em segundo lugar, esse “eu” está contido dentro da potência desse corpo. E, por fim, esse corpo e esse eu estão contidos na potência do universo. Cada corpo, na sua perfeicao, foi dado a todos com a mesmíssima gratuidade. Mas há algo em nos que nos draga para profundezas abissais quando nosso “eu” não é validado, positivado. Há um descompasso. A tentativa de colocar o mar num buraco. Quer dizer, o “eu” tenta colocar o mar nele.

Fragmentos dispersos, 5

Hemingway. ​Ele foi desonesto. Criou Renata, uma italiana nascida em Veneza e com 19 anos a altura da narrativa. Renata era linda e, sobretudo, inteligente. Conhecia história, era rica e não se importava com a opinião dos outros. Amava assuntos de guerra, ou queria livrar o coronel Cantwell de seu fardo; ‘purgá-lo’, como está na tradução. Falava inglês, italiano e espanhol. Lia Dante. Não é justo, velho Hemingway. Ele criou uma das histórias de amor mais lindas; o coronel, 50 anos; Renata, 19. Almas fantásticas. Além do amor pela Itália, tão maior, por certo, do que muitos italianos de hoje têm pelo país.

O palhaço. O cara nasce. Brota de algum útero. É nutrido, protegido. Progressivamente, vai sendo exposto ao próprio sotaque, do qual por vezes sequer tem noção. Aí vai sendo vestido. Depois, se veste. Acredita no que ouve. Ou ouve o que acredita. Vai seguindo por aí. Como um coreógrafo, obedece a um inscript invisível, se engana sem perceber, está num imenso palco, no qual a única conexão real é seu corpo que respira. Seu coração que bate. O indivíduo segue, e segue, acredita, sonega a si mesmo as profundezas de sua própria existência, mas aqui e ali tem alguns pontos de contato com o que poderia parecer o real: é promovido, passa numa prova, termina uma faculdade, sei lá, qualquer coisa, que ele entende, com razão, aliás, como um ‘ponto de checagem’ de que está no caminho certo. Não está, meu amigo; nunca estará. O planeta avalia os humanos em mega-toneladas: a cada milhão delas, sendo otimista, nasce alguma coisa que presta.

A agonia. Não dormir, por alguma razão. Já viveste isso, meu irmão? Você se deita na cama e esta parece lhe rejeitar, não querer você, ou você mesmo não a querer? Algo que gera agonia, a posição de dormir: aquilo não faz sentido. É estranho, não se encaixa, nenhuma posição repete a ‘terra natal’. Os psicanalistas falam de que dormir envolve a capacidade de transitar: de sair deste ‘mundo’ para o mundo das penumbras, pegando a barca de Aqueronte. Tens medo do que encontrará do outro lado? Não, nenhum medo do outro lado. Mas será? Às vezes, você se agonia tanto que o fim não parece, em teoria (e talvez este seja o problema!), ser pior do que você vive. Talvez isso seja dito por falta de conhecimento. Aliás, o quanto não sabemos? Muita coisa. Mas, ao sabermos, isso nos colocará num patamar mais elevado em relação à compreensão deste universo? Talvez, mas não sei. Em todo caso, hoje, quando conheço X, penso: “Nossa, como eu era estúpido quando conhecia X-1”. Ok, e quando conhecer X+1 vou falar a mesma coisa: “Nossa, como eu era estúpido quando conhecia X”. E assim por diante. Seja como for, até hoje, ao caminhar e olhar ao redor, ao testar de tudo que estivesse no raio de meus delírios transformados em ação, nada se encaixa, nada faz sentido, e sinto como se todos estivessem malucos, doidos, só faltando babar pela boca.

Vontade de falar. É interessante. Lendo alguns autores, gente da literatura digo, estes parecem ter em comum esse desejo absoluto pela palavra, essa dependência de colocar as coisas para fora, de criar universos, de articular palavras, dar-lhes ensejo e vida com naturalidade. Talvez morressem, ao menos é o que alguns dizem, se fossem obrigados a parar de falar o que falam. Bukowski, por exemplo, vive dando exemplos disso em seus textos. Para ele, escrever era tão natural e orgânico que bastava sentar e ver as frases se encaminharem. Parece que as palavras e, depois, o reconhecimento dava um lugar ao cara. Por exemplo, em qualquer livro dele você pode vê-lo dizer que Hemingway era meia boca; Tolstoi: um panaca (ou algo assim). E assim por diante. Julgava, de seu altar, todos e tudo. Ao mesmo tempo, dizia não se importar com nada nem ninguém. Afinal, ele tinha a seu ‘favor’ uma vida ferrada e fudida, e tinha uma postura em relação à leitura de outras coisas que não as dele como um esfomeado que soubesse exatamente se estavam lhe dando comida ou pedra ou estrume para comer. Bom, o que quero dizer é que cada autor cria seu castelo e se enfurna nela; é um bote salva-vidas. Ele o leva ou o usa para atravessar essas trevas dos anos. Criam uma razão para, ao colocar o pé no chão logo pela manhã, fazer a coisa toda ficar minimamente suportável. Mas e se você não tem muita vontade de falar, ou se falar é como você estivesse com gases querendo colocar tudo para fora, mas calha de estar no meio de uma platéia, sem poder soltar um mínimo fiapo?

Onde está Deus? Na igreja, no coração, na Bíblia? No silêncio, no mar, na paz interior, no céu azul? No alto de uma montanha, no contemplar de um vale, na existência de uma criança, no zunzun de uma abelha ao redor de uma flor? No sorriso de uma mãe, no olhar de um velho, no pôr do sol, na lua? No pensamento perfeito, para cada um, naquele momento de serenidade inexplicável, na saúde do corpo, ou no leito de morte? No corpo de uma mulher, na penumbra, no colo de alguém amado? No silêncio dos animais, no barulho silencioso das árvores chacoalhas pelo vento? Na floresta amazônica, com seu incalculável número de seres frágeis, mas ao mesmo tempo soberanos? Numa música perfeita, na harmonia de uma escultura, de um quadro, de uma paisagem? Deus, Deus, o ser perfeito, o ser que, ao ser tão perfeito, não tem sentido algum. A perfeição sem sentido, digo, sem um motivo, mas só o fato de existir. Deus está nos detalhes silenciosos. Acho que as pessoas que militam nos laboratórios de biologia, apesar do peso burocrático e banal de suas tarefas, estão próximos de ver Deus, suas marcas, seus rastros. Uma parte de Deus, penso eu, está nos detalhes impressos em nossas células. Sejam elas de humanos ou de bactérias. Debaixo do jargão complicado e esquemático das ciências biológicas básicas, uma beleza e elegâncias absolutas descansam soberanas. Deus definitivamente não está no barulho; não está no “macro”, no visível. Mas, ao mesmo tempo, está aqui, mais presente e palpável do que nunca. Temos olhos para ver, mas somos muito burros ou presunçosos para treiná-los a enxergar.