Faltando às aulas

Vem dos EUA a notícia de que os alunos, especialmente do ensino básico e médio, estão faltando massivamente às aulas. Um quarto dos estudantes são considerados como “cronicamente ausentes”. Em parte, isso é ainda reflexo da pandemia. Porém, especialistas apontam para algo aparentemente mais sério: o fato de a cultura estar flexibilizando a presença na escola, tornando-a opcional.

Ao longo dos meus quase vinte e cinco anos como docente posso dizer que o fenômeno tem piorado. O meu universo amostral é o ensino superior, e já tive experiência de passar por diversas instituições. Penso que seja praticamente impossível não associar isso com a ampliação do acesso à internet. Além disso, a pandemia tornou bem mais aceitável o modelo “à distância”. Porém, isso parece ter ido um pouco longe demais e o próprio sentido de estar fisicamente presente numa sala de aula começa a ser relativizado.

Uma vez um aluno me perguntou como eu, como professor, via a “competição” com vídeos no Youtube ou de influencers. Na ocasião, relativizei. Mas parece inegável que o lugar do professor como “centro” irradiador de conhecimentos está diminuindo no mundo real e migrando para outros formatos. Isso, na melhor das hipóteses. Na pior, não está migrando para lugar nenhum!

Educação na Idade Média. Alguma “semelhança”?

Um aluno assiste minha aula porque é basicamente obrigado. Ele não me escolhe. Há o conjunto de disciplinas, e cada professor é responsável por algumas delas. Não tem a ver com uma turma em particular. Na internet, em contrapartida, ele pode escolher quem e o que ouvir. Há uma liberdade bem maior de escolha.

Desse ponto de vista, seria apenas uma troca de seis (presença) por meia dúzia (on-line)? Em parte, sim. Mas a decentralização promovida pela virtualização de todas as relações, das afetivas, laborais até as educacionais, pode estar reforçando certas características geracionais nos jovens. Estes começam a ver o professor como parcialmente dispensável. Jovens-adultos até podem, de fato, ter mais autonomia e considerar que ouvir um professor em específico não compensa – que é muito mais prático e melhor assistir um vídeo sobre o mesmo assunto na internet. Mas e as crianças, elas têm esse discernimento?

Qual o valor de uma aula? Não é apenas o conteúdo. Quando um aluno assiste um vídeo, é só isso que ele recebe: conteúdo. Faltar seguidamente numa mesma aula, e depois fazer um “trabalho de reposição”, pode cair em duas categorias: da parte do aluno, ele está deixando claro que seu interesse é puramente transacional (passar); da parte do professor, de que suas aulas equivalem apenas ao conteúdo do que foi ministrado. Por isso, é muito importante considerar reprovações por motivos de ausência. Mas resolverá?

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Participar de uma aula presencial é estar junto com outros, criando um espaço de compartilhamento, de trocas de olhares, de leitura de implícitos, de ação-reação in loco.

Mais do que isso: uma aula é um evento singular, por vezes até mesmo um acontecimento, algo cuja passagem do tempo torna impossível replicar. E, como todo acontencimento, ele pode ser marcante. Pois nele podem surgir experiências singulares e, como tais, irrepetíveis – e, pela mesma razão, tão preciosas como a própria vida, que é o evento singular mais importante do Universo.

Muitas aulas presenciais são apenas eventos, okay; mas algumas serão acontecimentos. Você dificilmente conseguirá isso numa aula gravada, mesmo que você a repita centenas de milhares de vezes, num puro evento de massificação generalizada, na eterna repetição do mesmo, o tédio instituído como novo normal. A morte do acontecimento, da surpresa singular de cada materialização do tempo na presença. Estar presente (há um duplo sentido aqui!) é, hoje em dia, algo tão ou mais importante que a atenção.

Talvez aceitemos a lenta mas progressiva substituição da presencialidade pela virtualidade porque, no fundo, nós próprios não estamos mais tão conectados assim com o “mundo da vida” – afinal, boa parte de nossas relações afetivas e de amizade também se desmaterializaram. Com todas suas maravilhas, a internet e a virtualização estão nos desconectando de nossos corpos, criando “cidades invisíveis” nos cabos que passam pelo fundo do oceano, por ondas que vão e voltam de satélites no espaço vazio e frio bilhões de vezes ao longo de um mero dia. Igual ao que estamos nos tornando aqui, espaços vazios.

Corrupção

Há algumas semanas assisti o filme The human condition, dirigido por Masaki Kobayashi. Trata-se de uma história épica (são nove horas de filme), um verdadeiro retrato das deformações pelas quais passa o espírito humano em tempos e situações extremas.

Essencialmente, acompanhamos a jornada de Kaji. Ele começa como uma espécie de responsável pelo RH de uma mina de carvão. Idealista, tenta tornar as condições de trabalho menos penosas possíveis, mas é levado a situações tão extremas e paradoxais que, no final, acaba sendo demitido. A demissão o faz ser convocado para o exército imperial, e então o seguimos em sua peregrinação pelos quartéis japoneses, onde o absurdo está em toda parte.

No exército, mais uma vez Kaji tenta ajudar seus companheiros. Segue uma “filosofia” que ouviu de um dos trabalhadores de seu emprego anterior: Os semelhantes (neste caso, os bons) sempre encontram outros semelhantes. E, de fato, aqui e ali ele vai encontrando pessoas que, como ele, tentam humanizar condições inumanizáveis.

Finalmente, Kaji acaba como prisioneiro de guerra. Vai para um campo de trabalho forçado do Exército Vermelho. Ali, novamente, nosso personagem vivencia situações que o empurram cada vez mais longe no sentido da desumanização. Sua humanidade é, mais uma vez, testada até o limite. Presencia novos absurdos “institucionais”, mais burocracia estúpida e injusta, traições, trapaças, desprezo e a banalização da morte. Logo ali, entre os “companheiros” que, supunha Kaji, jamais poderiam ser injustos…como “socialistas”, com certeza (pensa Kaji) seriam justos. Deveriam ser o que de melhor haveria de humanidade. Nada mais longe da realidade.

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Até que ponto o espírito humano é corruptível? Na visão religiosa, somos sempre, desde o nascimento, condenados ao pecado. Já nascemos impuros, e não vai ser um banho nalgum rio qualquer que vai nos salvar. Nossa caminhada nesta vida é de contínua contrição, de expiação. Todo o momento somos provados e testados. Há quase tudo arquitetado para que falhemos. Mas precisamos acreditar na Graça e tentar nos salvar. Chegar o menos “sujos” no final quanto sejamos capazes.

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Sempre que preciso viajar de avião tenho um pensamento sombrio: em geral, tudo corre bem. As pessoas se sentam nos seus assentos; são educadas, ajudando umas às outras a acomodar bagagens; cedem sua vez para que outro passageiro passe; etc. Porém, e aí vem meu pensamento sombrio: e se esse avião sofresse um acidente?

Fico imaginando que quanto mais grave for um eventual acidente, mais a humanidade de cada pessoa é colocada à prova. E mais se pode rumar para uma lei da selva, um caos de rebanho assombrado. Em filmes enlatados de Hollywood, nestas horas sempre aparece um “herói” que se sacrifica pelos outros (em geral, homem). É claro que esse herói existe. E sua existência, mesmo que rara, é necessária para termos certeza de que, aconteça o que acontecer, nossa humanidade prevalece. Haverá coragem, altruísmo.

Mas a corrupção do espírito humano é diretamente proporcional à percepção de que a vida individual, ou suas extensões (membros da família, propriedade, etc.), está ameaçada. Quando só há um lugar a ocupar e existem várias pessoas disputando esse lugar, aí é que vemos a corrupção. Mesmo o esporte, que obviamente não é uma situação extrema como a sugerida acima, representa uma forma de corrupção às avessas: pois vertemos lácrimas para o vencedor. E por quê? Porque sabemos que ele mereceu, que venceu ao se superar, e superar os outros, seguindo regras justas e previamente estabelecidas. Mas é também uma corrupção, pois sempre haverá perdedores, e a cultura funciona, pelo menos na superfície, emulando winners e mandando para o lixo todos os perdedores.

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Eis assim que aquele jovem recém-formado, idealista e cheio de discurso coletivista e participativo, quando entra em uma instituição, especialmente se for uma empresa, vai progressivamente se corrompendo. Tanto no sentido de “defender o seu”, como no sentido de perda de sua individualidade. Ele vai modelando seu comportamento e sua linguagem, depois seu pensamento e enfim sua afetividade. Para falar a verdade, ele vai sendo modelado (ver meu outro post a respeito). Parafraseando o que uma vez disse Sartre, os jovens de hoje serão os avós de amanhã, tão conservadores quanto os atuais avós.

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A humanidade é linda desde que haja comida, propriedade, segurança, conforto e um lugar ao sol para todos. Quanto a realidade se distancia disso, aproximando-se de um cenário de escassez ou recursos limitados, aí então temos o terreno da corrupção. A corrupção é parte de um narcisismo atávico e ancestral. A coragem, em geral, implica numa abnegação, num desinteresse profundo, num desapego virtuoso. Não parece ser corriqueiro, mas está nas infinitas possibidades de ser um humano – a condição humana.

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Para finalizar, vamos pensar no seguinte. Imagine que você seja um pai ou mãe de família durante a França ocupada pelos alemães na Segunda Guerra. E suponhamos que, nesse contexto de situação extrema, você tenha a oportunidade de refugiar em seu porão um perseguido pelo regime nazista. Caso você aceite, e seja pego, toda sua família seria sumariamente executada. Você correria esse risco? Muitos assumiram. Muitos mais não.

O corte que faz pensar

Ontem estávamos discutindo como o psicólogo pode atuar em instituições. Primeiro, parto do pressuposto de que o psicólogo é esperado contribuir para o “retorno ao normal”, seja isso numa escola, num hospital, numa empresa.

O psicólogo é um profissional da implementação da normalidade perdida. Porque toda instituição visa instituir um normal e garantir sua permanência.

Fonte da imagem aqui

Segundo, parto também do pressuposto de que há, intrinsicamente, uma tendência à lei do menor esforço em instituições. As soluções que dão mais trabalho são, em geral, preteridas. A força da gravidade dos hábitos economiza ações e pensamentos. Há, em certos contextos e níveis hierárquicos, uma tendência a simplesmente seguir o fluxo. Pensar diferente nem sempre é funcional. E nem sempre é necessário.

Terceiro, as instituições, em geral, não lidam bem com o fracasso, ou com tudo o que aponte para isso. Em vez disso, apegam-se a mitos e ideologias reforçadoras sobre sua função social, sobre “estamos fazendo o que é possível”, ou simplesmente mergulham no cinismo e outros mecanismos de defesa.

Por fim, as instituições vivem produzindo e reproduzindo discursos. Discursos refletem posições fixas, pressupostos implícitos, concepções pré-fabricadas, preconceitos, covardias variadas, presunções e fixação pela “tradição”. Discursos refletem a natureza de marionete e de ventríloquo de muitos agentes institucionais, pessoas comuns que, após um certo tempo e sob a influência do poder embutido nesses discursos, passam a reproduzir, sem perceber, algo que lhes é soprado como verdade.

O corte que faz pensar é, basicamente, uma interpretação. Sob medida e sob condições muito particulares, até mesmo “clínicas” (num sentido mais amplo do termo), o psicólogo impõe uma rachadura em aspectos nocivos dos discursos institucionais.

Mas, para fazer isso, para ser esse agente que propõe uma interpretação/corte, o psicólogo, ele próprio, precisa ter alguma independência relativa em relação aos mencionados discursos. Ele precisa se dissociar, minimamente, deles. E, mais do que isso, tal psicólogo tem de ter em mente, muito claramente, qual sua implicação, a que ou quem ele, genuinamente, serve.

Pois não se esqueça. A expectativa em relação a psicólogos é que eles tragam tudo e todos de volta à normalidade. Que contribuam para que os “imitadores de vozes” prosperem e saiam sempre ilesos.

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Pessoalmente, acredito firmemente que as instituições, embora fundamentais e incontornáveis, são o reino do rebanho, dos fracos amedrontados, ou dos espertos que usam tais instituições em benefício de suas agendas ocultas. Não são, em sua natureza, espaços para autonomia, criatividade e para a manifestação da verdadeira individualidade. As pessoas têm medo da verdadeira individualidade. Talvez eu tenha.

Absurdos cotidianos

Quando várias pessoas fazem a mesma coisa, e essa coisa chega a ser uma coisa maluca, elas têm noção da maluquice? Viver em sociedade é, em parte, compartilhar de uma loucura coletiva. Mas disfarçada, mascarada, deturpada. Assim, no decorrer de um dia, anestesiadas pelo repetitivo, as pessoas vamos passando por situações absurdas, testemunhando coisas absurdas e fazendo coisas absurdas das quais sequer temos a menor consciência. Não dá tempo. Não é preciso. É tudo óbvio. Você tem medo do que poderia encontrar se parasse para pensar? Ops, “pensar”…

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Pois veja. Hoje eu estava na fila de uma quitanda. Muitas frutas ao redor. Como consequência, algumas abelhas. O cara atrás de mim, distraído, identifica uma abelha. Ele, tão natural quanto o sol nascendo e se pondo, dá uma petelecada e mata a abelha. Em seguida, pega o celular. Liga para alguém. E diz: “Ei, posso ir almoçar aí com vocês hoje? Eu não como muito, não se preocupe”. Aí fiquei pensando: seria essa uma pessoa confiável? Honestamente, acho que não. Nunca se esqueça de uma coisa: o diabo está nos detalhes.

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Situação de grupo. Estou no meio de algumas pessoas. Há uma sala. Na porta, a identificação do sentido daquele espaço. Então, há certa compreensão de que o lugar é “sério”, “científico”. Aqui e ali, alguns elogios, falas mansas, amistosas; e sobretudo, há sorrisos. Bocas se contraem, dentes aparecem. Sons estridentes sobem ao ar, rodopiam, e mal têm tempo de se dissiparem e logo aparecem mais sons, mais estridência. Eu só vejo essas bocas, esses ruídos. Pessoas mortas rindo juntas, desconectadas de suas bocas. Seus espíritos estão em lugar muito distante – mas, infelizmente, suas bocas estão aqui, ruidosas, falsas. Quando a mente de uma pessoa coincide completamente com o que está de fato acontecendo chamamos isso de “gozo”, ou, em alguns casos, de orgasmo (fusão mente/corpo). No resto do tempo, imposturas. Somos como multidões de insetos cuja existência apenas se justifica quando, aleatória e singularmente, ocorre uma junção entre movimentos físicos e uma das n possibilidades (infinitas) de combinações geradoras de uma outra vida.

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Do nada, enquanto falava, olhei para minha mão direita. Para o braço direito. Estranho. Do nada, o pensamento que tive foi: uma mão de um cadáver. Não me parecia uma mão, um braço, vivos. Pálidos. De um branco parecendo leite velho. É engraçado porque vi a mão e o braço como pertencentes ao mundo, não a mim. O eu, essa unidade plena, simplesmente não reconheceu uma parte do corpo como sendo dele, ou melhor, ele. Um escárnio disparou imediatamente no espaço abstrato do eu. Ora: que mão cadavérica é essa? Que desgraça!

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A cada interação, um amontoado de análises póstumas. Ajo num ambiente, falo algo, “ensino” algo. Crio uma narrativa. Depois, quando já estou em casa, repasso a coisa inteira. Me atenho a detalhes. Que diabos de vida é essa? Há uma audiência de carne e osso diante de mim mas é como se eu estivesse interagindo com espectros que já estão todos determinados no palco da minha consciência escrupulosa. Quem é o objeto do escrúpulo? Eu! Estou falando para mim, depois me avaliando, me ponderando, me retificando. Mas esse é apenas um pedaço ínfimo do que realmente aconteceu. Pois pense na imensidão de coisas que estavam passando pela mente das outras pessoas que me escutaram. Cada uma delas pode ter pensado coisas completamente diferentes, se atentado para detalhes ínfimos que me escaparam completamente. Talvez, no fundo, o objetivo seja justamente esse: ao focar nos meus detalhes, desprezo a constelação de infinitos outros possíveis. No fundo, um encontro (uma aula, que seja) é extamente isso: um encontro de infinitos.

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É assim. Performo no ambiente. Lanço uma “grande sacada” e espero, emocionado até, uma ressonância, uma confirmação. Me empolgo com o que lancei no ambiente. Acho-o mágico, transformador. Até sinto calafrios quando lanço a coisa. É como se fosse o lançamento da resposta para um enigma qualquer. Porém, tudo está certo, tudo está resolvido…só faltou “combinar com os russos”. O outro não entendeu nada do que eu esperava que ele entendesse. Frustração? Sim, mas também vergonha. É como se, calado na maior parte do tempo, eu resolvesse me levantar, ir até a margem do mar, numa manha fechada pela neblina, e concentrasse todo o meu ser, toda a razão de estar vivo, e gritasse a grande sacada. E então, nada. Os navios ali parados, cheios de pessoas, escutaram um ruído, mas não ouviram nada. Afinal, por que ouviriam? O que há de novidade num ruído qualquer numa manhã qualquer num dia qualquer? Eu, que gritei, me sinto como um membro de alguma espécie cujo ápice da vida fosse esse grito. E que, sem retorno do mundo, ou independente desse retorno, agiu como deveria. Só que, diferente desse membro dessa espécie, eu esperava por uma conexão, por uma fusão total, pela qual toda a espera, toda a concentração de meu ser na consumação desse grito, desse ruído produzido, enfim gerasse algo, me arrancasse desse desespero de ter de gritar.

Fallen Angels

A música da esplêndida cena final do filme de Wong Kar-wai (1995).

Fim do mundo e propósito do trabalho

Assisti recentemente uma série animada, Carol and the end of the world (Netflix). Ela me foi indicada por um amigo que, como eu, estuda trabalho. O plot geral é o seguinte. O mundo está prestes a terminar. Um misterioso planeta gigante está em rota de colisão com a Terra, e acompanhamos a estória da protagonista, Carol, mais ou menos seis meses até a catástrofe.

A cada episódio vemos algo já bastante batido em produções apocalípticas desse tipo. Cada pessoa se entrega a realizar as fantasias mais malucas que você possa imaginar, e toda a estrutura societária de comportamentos prescritos é basicamente apagada. De fato, aqui também assistimos a um mundo sem fronteiras, limites, proibições, pre-conceitos, papéis esperados e assim por diante.

O cenário é de desolação: prédios abandonados, ruas vazias, um estado de quase-anarquia, só que sem baderna (o que é interessante). Uma terra pré-apocalíptica com uma surpreendente dose de convivialidade. Talvez a revolta, a desordem e a bagunça tenham ocorrido antes. Afinal, só temos acesso aos últimos seis meses. Não sabemos, pelo que me lembre, quando a realidade de que um planeta se chocaria com a Terra se tornou evidente.

Mas o áuge da série, e é por isso que a comento aqui, é o lugar que ela reserva para o trabalho. Imagine se soubéssemos que deixaríamos de existir dentro de seis meses. A última coisa que você consideraria seria trabalhar. E eis que, no meio do caos e da destruição, um prédio se destaca, imaculado, duas torres, incorporando a mais fina das engenharias de offices dos EUA.

Somos então apresentados a um escritório de contabilidade. Mais taylorista impossível. Mais impessoal impossível. Mais rotinizado impossível. Porém, é quando ela descobre esse último refúgio da corporate America que Carol se transforma. Ela parece encontrar novamente seu propósito de vida e seu sentido.

Os totens do ambiente corporativo, como uma máquina de fotocópia ou uma jarra de café, são elevados a um status de objeto de desejo para Carol. Todo o massacre da banalidade de um escritório contábil, com sua obsessão por relatórios fixados em casas decimais, é apresentado em reverso. O escritório é transformado num refúgio contra a falta completa de sentido diante de uma eminente extinção planetária. Diante de coisas grandes, como diria Nietzsche, o mais confortável é se fixar em coisas ínfimas.

Quando os gestores perguntam quem gostaria de continuar a trabalhar noite adentro fazendo hora extra, eles o fazem na forma de oferta, não de obrigação. Quer dizer, ficar de fora de fazer hora-extra era o que ninguém queria. Isso seria o desespero. Continuar trabalhando, como máquinas, era o que, paradoxalmente, fazia aquelas pessoas “humanas”. Entre aspas pois, na verdade, a robotização é criticada, e aos poucos vai sendo minada pelas iniciativas de Carol (por exemplo, ao lembrar do nome de cada funcionário). Mas aqui a robotização tem como base a incapacidade de reconhecer o fim do mundo, literalmente.

Porém, é preciso estar às vésperas do fim do mundo para se esquecer das questões fundamentais e mergulhar no trabalho, usando-o como um álibi, como um substituto, como algo que as pessoas fazem, mesmo não precisando (como na série), no lugar de fazer o que realmente importa? Pessoas que usam o trabalho como álibi são como Sísifo, quando este se preocupa com a tarefa de subir e descer a pedra, e não com o sentido mais amplo de sua própria condição: alguém castigado a esse trabalho repetitivo pela eternidade afora.

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Dois colegas e eu estamos trabalhando numa ideia que pode explicar a questão acima. Trata-se de pensar no propósito do trabalho em dois planos possíveis. No primeiro, temos o propósito NO trabalho. Aqui, o trabalho é apenas uma dentre as várias esferas de vida de uma pessoa. Ter propósito nessa esfera em particular é importante ou mesmo fundamental. Afinal, passa-se muito tempo de vida nela. No segundo plano, temos o propósito DO trabalho. Aqui, trata-se de uma dimensão mais geral, envolvendo não um trabalho em particular (um emprego, uma ocupação, uma atividade), mas o propósito de ter de trabalhar no fim das contas.

No caso da série, o que vemos é uma ênfase no absurdo que é tomar o propósito DO trabalho de modo puramente automático. O trabalho é um álibi porque ele, em sua globalidade, apaga qualquer outra esfera de vida da pessoa. No caso da série, essas outras esferas são obviamente reelaboradas, pois diante da morte (sua, mas também do planeta inteiro), quais são as prioridades? Qual esfera de vida deveria tomar a dianteira? Realizar aqueles “projetos” que nunca foram realizados porque nunca havia tempo, já que só se trabalhava? Ou simplesmente mergulhar no niilismo, do tipo: Já que o mundo vai acabar, ‘que se dane tudo’?

Obviamente, o fim do mundo é só uma metáfora. Pois, no plano pessoal, por mais improvável que possa parecer no momento, nossa vida pode acabar a qualquer instante. Num piscar de olhos. A morte não é um “evento” solene, algo que só acontece após uma longa preparação, tipo uma festa de casamento ou uma formatura. A morte é banal, assustadoramente banal. Então, ela pode acontecer sem a menor pompa. Dessa perspectiva, é como se todos nós estivéssemos esperando pelo “fim do mundo”. É que não pensamos nisso. Claro, isso é até importante para nossa saúde mental.

O propósito DO trabalho é uma dimensão fundamental do significado do trabalho. Se as pessoas parassem realmente para pensar sobre ele, em vez de só se preocuparem com o propósito NO trabalho (“Ah, hoje tenho que terminar aquele relatório”, “Meu chefe me reconheceu hoje”, etc.), poderíamos ter uma mudança societária ampla. Na verdade, eu até acho que as pessoas pensam nele, só não de modo totalmente consciente. Uma forma de indicar que elas intuitivamente pensam (ou sentem) é o número cada vez maior de sofrimento, adoecimento, suicídio, apatia, desmotivação e depressão no trabalho. No fundo, tudo isso é sintoma, a mania de coisas não resolvidas de verdade voltarem a assombrar as pessoas.

Realismo não-humano

Gosto de divagar. Acho que você já deve ter percebido isso a esta altura. Pois bem. Enquanto estava correndo estes dias, um pensamento ficou passando pela minha mente o tempo todo. Na verdade, dois pensamentos. São duas frases que li em algum lugar e que, por alguma razão, acho que têm relação uma com a outra.

A primeira é a seguinte. Se uma árvore cai na floresta, mas não tem ninguém (nenhum humano) para ouvi-la caindo, pode-se falar em som?

A segunda é esta. “Deus”, essa palavra e tudo que vem junto dela, existiria sem nossa presença (humana)? Ou foi apenas com o aparecimento de humanos que Deus começou a ser considerado? Esta última eu lembro a fonte: o escritor Jon Fosse. Não é uma citação literal, mas a ideia é mais ou menos essa mesmo.

Em ambos os casos, há um problema realista. Sobre o quanto a realidade (um som, Deus) é congênere com a espécie humana. Um ruído de uma árvore caindo – sem um humano por perto, o que ele seria? Digo, não a ausência de um humano em particular por perto, mas a espécie humana inteira. Se só houvesse chipanzés ao redor da árvore caindo, estes, no máximo, só procurariam não ficar embaixo dela. Obviamente, talvez não haveria associações de um ruído a um som e a uma constelação de possibilidades para esse som (eg.: por que a árvore está caindo? Qual o tipo de árvore, a julgar pelo som?). Nestas horas, lembro da minha cachorra. Quando ela está dormindo, e crianças fazem barulho na rua, é como se ela nem notasse. Como se lhe fosse totalmente indiferente. Claro, há alguns sons que são gatilhos para ela. Mas eu fico admirado com a suavidade do sono dela diante de sons que, para mim, seriam absurdamente revoltantes (tenho insônia, e parte tem a ver com a personalização extrema de ruídos).

Sobre Deus, bom, até onde sei, antes da espécie homo, não há nenhum monumento construído, nenhum livro sagrado escrito, nenhum ritual coletivo, muito menos guerra e morte por causa Dele. Animais nasciam, cresciam e morriam, e tudo ficava por isso mesmo. Aliás, por cinco vezes a vida foi praticamente riscada do mapa, de plantas a animais gigantes como dinossauros. A Terra, durante essas extinções em massa, já foi acertada por meteoros, sangrada de dentro por lava, chocada contra sua própria pele por conta de placas tectônicas em deslocamento na superfície, chuva de ácido e todo tipo de desgraça. Diante dessas catástrofes, nossos furacões e tempestades não chegam a ser nem um resfriado para um planeta com bilhões de anos e, portanto, uma longa ficha médica. Não creio que nenhum desses animais, no nível que fosse de suas capacidades sensitivas, tivessem cogitado que tudo aquilo que lhes acontecia era por causa dos “castigos” de um Deus irritado com a fraqueza espiritual desses seres. Eles simplesmente se foram para sempre. E se foram na ignorância, pois viviam no realismo da “coisa em si” (seus corpos, a Terra).

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Com o “giro subjetivo” na filosofia, da antiga para a moderna, o sujeito (humano) passou a ser a fiação do conhecimento. A subjetividade é uma espécie de base epistemológica fundante, por meio da qual a natureza é filtrada. A justificação do conhecimento passa pelo sujeito. Quando digo ‘sujeito’ não penso em uma pessoa de carne e osso. Mas em um tipo de plano. Como disse uma vez o filósofo Richard Rorty, é óbvio que havia ovos de dinossauros antes dos humanos (algo assim, me perdoe a paráfrase). E, obviamente, tais ovos não tinham relação causal nenhuma com humanos, até porque nem existíamos. Porém, tais ovos, hoje com nós humanos por aqui, “são” isso: ovos. E sabemos, a partir de vários vestígios deixados por aí, os tipos de ovos que existiam, a relação desses ovos com o tipo de animal, e assim por diante. Quer dizer, eles continuam a ser as mesmas “coisas” que existiam antes de estarmos (humanos) por aqui. Mas eles, paralela e incomensuravelmente, são partes de narrativas que nós humanos construímos e que integramos em sistemas de crenças, relações, significações.

Quer dizer, ao mesmo tempo, “ovos” são ovos (com o sujeito na jogada) E são “coisas em si” independentes de humanos. A finalidade de denominá-los de “ovos” (deve haver alguma raíz latina ou grega por detrás) é baseada em seu propósito: classificá-los, estudá-los e, no final, manipulá-los tendo em vista objetivos humanos. Ao passar pela “subjetividade”, os ovos são subjetivados para dentro (para a cultura e usos humanos; eg.: ovos de páscoa), e objetivados para fora (para a produção de frangos, por exemplo – isto é, para uma mudança concreta na coisa em si).

Portanto, tanto o som como Deus, de acordo com esse raciocínio, poderiam ser ambas as coisas. Primeiro, coisas-em-si; segundo, objetos, no sentido de se oporem (em relação dialética, em que um depende do outro) ao sujeito (sujeito<>objeto). No caso de Deus, porém, você já deve imaginar a complicação, pois, para começar, não o vemos (não há imanência). A menos que se considere Deus como “tudo o que há” – uma espécie de “transubjetividade” sobre a qual assenta a própria condição do Universo. Quer dizer, em escala infinita, a mesma função desempenhada pela subjetividade na construção do conhecimento humano.

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É sabido que Kierkegaard desenvolveu sua filosofia ao redor de uma explicação racional para a questão divina. Por mim, termino com uma ideia simples dele: a de salto. Pois pode ser disto mesmo que se trate: de um salto do realismo humano para um “realismo não-humano”. O momento em que mergulhamos e nos dissolvemos na coisa-em-si de nossa máteria, nos igualando finalmente a ela, talvez com um pouco mais de conforto do que tem ocorrido há bilhões de anos com outros seres vivos.

Paradoxos da internet

Há não muito tempo atrás, se você estivesse na fila do banco, ou esperando por um atendimento médico, você não tinha muita opção que não aceitar o tédio da espera. Não havia opção de mergulhar no celular e desaparecer em algum reino virtual totalmente desconectado com a sua experiência real e presente: estar entediado enquanto espera. Nessas circunstâncias, e em muitas outras, o celular é um poderoso instrumento de fuga. Pense num adolescente se reunindo com seus colegas. É muito comum cada um mergulhar no celular enquanto estão junto de outros. Por quê? Porque é o jeito como adolescentes modernos estão “lidando” com a ansiedade de estar em grupo.

Isso não deveria ser surpresa, afinal, a internet como um todo tem se transformado no avesso do que psicólogos da abordagem cognitivo-comportamental denominam de “exposição” – se você tem ansiedade em relação, digamos, a dirigir, sua tendência natural é evitar dirigir. Porém, a única forma de superar essa ansiedade ou medo é…dirigindo. Assim, a exposição gradual, assistida por um terapeuta, isto é, de algum modo protegida, vai, progressivamente, expondo a pessoa a essa situação real e, com o tempo, seu medo de dirigir diminui.

Considere agora algo menos concreto como dirigir. Suponhamos que seu filho ou filha tenha ansiedade em relação a estar no meio de outras pessoas. Em vez de se expor à situação real de estar com outras pessoas, por exemplo na escola, seu filho tem à sua disposição o mar de possibilidades irreais da internet: jogar online, conversar com dezenas ou mesmo centenas de “amigos virtuais”, etc. É claro que ninguém vai sugerir que a solução é ficar longe da internet. Porém, não há como negar o paradoxo: ao mesmo tempo em que ela nos permite infinitas possibilidades (no virtual), ela acaba reduzindo as possibilidades de ações no mundo concreto.

Assim, outro paradoxo da internet tem a ver com nosso grau de liberdade. Um adolescente hoje em dia tem muito mais liberdade virtual que física. É muito mais provável que os pais de um adolescente o permita “perambular” pela internet em vez de dar uma volta no quarteirão – no Brasil, de fato, em algumas localidades é extremamente perigoso andar na rua. Mas a obsessão com segurança fez com que nos voltássemos sem muito critérios para a internet, em que pese a crescente preocupação com segurança digital e restrição de conteúdos para o público jovem.

Por fim, não menos grave é o estímulo que a internet coloca sobre a ruminação. Como muitos sabem, mensagens negativas atraem muito mais a atenção das pessoas. E a internet, repleta de semi-celebridades dispostas a praticamente tudo para ter uma audiência e faturar, mais uma vez expõe seus exageros. Por exemplo, considere a tendência recente de pessoas exporem seus traumas de infância em redes sociais. De um lado, isso serve para a pessoa “colocar para fora” essas situações, que no passado eram proibidas de vir à luz, serivindo para perpetuar o sofrimento e a discriminação. De outro lado, o paradoxo: quanto mais essas pessoas falam desses traumas, mais a linguagem “psicológica” se perpetua, quando só o que se fala é de ansiedade, depressão, violência psicológica, assédio e assim por diante. Quer dizer, a internet permite uma constante ruminação – e a psicologia já nos mostrou os riscos disso, quando a pessoa só fica pensando no seu próprio problema ou situação, e se torna incapaz de romper a circularidade. Ela se prende em um looping que só intensifica seu sofrimento.

O tédio é super importante, especialmente para um adolescente. É uma experiência de se sentir vazio. Porém, em vez de deixar o tédio “falar” e aprender com ele, nos impulsionando a experimentar, a fazer coisas diferentes, a preencher o vazio, nós o postergamos, mergulhando na internet, surfando de texto e imagem a texto e imagem, sem conexão com o mundo real e, sobretudo, com seu próprio mundo afetivo.

O compartilhamento de experiências é importante. Saber que você não está sozinho, que seu sofrimento não é só seu, ajuda na superação do problema, criando redes de solidariedade e apoio. Mas quando todo mundo amplifica seus problemas, tornando-os tão banais como em um post ou vídeo de alguns segundos em redes sociais, quando a linguagem é tão tóxica e poluente que você não enxerga mais nada além dela, então não podemos desconsiderar que a suposta solução para o problema está contribuindo, via ruminação, para sua própria existência. Não à toa os adolescentes estejam hoje vivendo uma crise de ansiedade generalizada, que vai de par em par com a popularização da linguagem psicológica em todos os recantos da internet.

É preciso haver barreiras. A ruminação da internet torna difícil a criação de barreiras. É preciso riscar uma linha no chão a fim de estabelecer os limites do falar por falar. Se pensarmos novamente nos insights da perspectiva cognitivo-comportamental, a internet está hiperinflando crenças e pensamentos, culminando em potenciais profecias auto-realizadoras. Pesquisadores têm chamado isso de “inflação de prevalência” – quanto mais consciência as pessoas têm, via narrativas plenamente disponíveis, mais elas passam a se definir e a ver o mundo da perspectiva de sintomas e diagnósticos.

Fragmentos dispersos, 8

O demônio do meio dia. Já tive a experiência de ficar deprimido em um clima frio. Neve. Pouquíssimo sol. Escuridão engolindo tudo. Você vendo pessoas, corpos quentes, mas isolados uns dos outros. Você é mais um no espaço. E também já passei pela experiência de ficar deprimido em ambientes muito quentes. Aquele sol estalado. Ruas secas. Poucas árvores. E as poucas árvores cheias de areia seca cobrindo as poucas folhas verdes. Casas desordenadas, com cores discrepantes. Transições entre classes sociais sem aviso, e abruptamente. Cavalos na rua, com pessoas sem camisa. Torradas pelo sol. O ar-condicionado artificial, gerando tremores no corpo, quando tudo o mais está engolido numa bola de luz. Não sei o que é pior, sinceramente. Há um livro, famoso pelo que sei, O demônio do meio-dia. É sobre depressão. Interessante a imagem, não? Uso associação livre, pois não li o livro, exceto algumas páginas. Acho um livro muito grande para falar de depressão. Você é enxotado logo de cara. Um deprimido não quer atravessar mares infinitos de páginas para saber porque sofre. Você precisa nadar muito, quase como um atleta, para chegar ao outro lado da margem e descobrir o que lá existe. Mas a imagem é boa. Pois imagine um demônio, figura por excelência da noite, aparecer exatamente ao meio dia. Se for onde moro, ele vai aparecer naquela hora em que tudo parece grudado no lugar. Vai aparecer bem no momento do excesso de luz. De transparência. É muito ruim a luz perpétua, pois ela não deixa nenhum espaço para nossos segredos, para as penumbras das possibilidades de novos sentidos. Não. A luz perpétua de um meio-dia praticamente na linha do Equador irradia obviedade, quase um tapa na cara, uma obscenidade. Um demônio nu. Mas, talvez justamente por isso, profundamente, terrivelmente assustador. Aterrorizante.

O chamado. Às vezes me enrolo como se fosse um novelo de linha. Vou me enrolando ao redor de meu próprio eixo que, sei lá, fica tão pesado que não consigo compreender. Então, tudo começa a espiralar, a girar de dentro para fora, e de novo de fora para dentro. É um peso muito estranho. Quero fugir. Claro, no fundo não aguento meu próprio peso. E o movimento de se lançar e se enovelar novamente cansa. Cansa dolorosamente. Mas para onde fugir? Há, confesso, uma circularidade, como num jogo de espelhos. Circular. O narciso olhando sobre sua imagem projetada na água? Pode ser. Acho que nunca havia realmente sentido, visceralmente, essa metáfora. Movimentos repetitivos. Como se fosse um código de computador, programado para executar, ad nauseam, a mesma rotina. Que bom deve ser um código de computador. Sem consciência. Apenas a repetição, a repetição, a repetição até que algo externo lhe impeça de continuar. Repetição. E você consegue fazer muita coisa sem sair do lugar. Você consegue pensar muita, mas muita! coisa, sem pensar. Basta que se lhe apresente uma imagem, um pensamento, uma “tese” infantil gravada na ponta de uma flexa enterrada na sua carne. Uma infecção. Pois uma infecção nada mais é do que um organismo tentando se reproduzir (replicar, duplicar, repetir), como se os recursos fossem infinitos, e outro organismo tentando impedir isso de acontecer, mesmo que, no processo, este último organismo acabe prejudicando a si próprio. Ambos os organismos…agindo e reagindo conforme foram programados. Ambos lutando, não por alguma utopia abstrata, mas meramente para se manterem exatamente como são. Mas voltando ao novelo de linha. Há uma saída, uma grande e enigmática saída. Quando saio da repetição, ou quando pego essa repetição (que está “dentro de mim”) e saio na rua, e, de certo modo, sinto o “mundo”, algo ocorre. Um sinal de vida se enuncia. É como uma semente no chão, enterrada sozinha, no escuro úmido. Quando ela é irradiada pelo sol, “algo” a faz querer sair da terra. Algo a faz se mexer, a romper a unidade de seu próprio “ser”, fechado e encapsulado. Eu sinto a mesma coisa. Mas, ao mesmo tempo, fico com um enigma: que força é essa? Como posso me abrir a ela? Para onde ela poderia me levar? O que preciso fazer? Na escuridão do solo, na clausura da casca da semente, há um sinal de vida, um despontar sobre o desconhecido, para cima, para a luz, para o vento, para o aberto. É como um cheiro de comida gostosa no ar, que deixa um gato intrigado e lhe sugere uma direção. Mas, para onde?

P.S.: já ficou preso num looping, ouvindo a mesma música repetidas e repetidas vezes? Por que fazemos isso? O que queremos repetir, no fundo?

O tamanho

Considerando todas os planetas e estrelas, a parte observável do universo, e toda a dark energy, tudo o que não é visível no universo, a quantidade estimada total de energia que ele contém é equivalente a:

[67 000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000 toneladas de TNT; ou 67 trilhões trilhões trilhões trilhões e trilhões de toneladas]

Esta seria também a medida de quanto o universo pesa.

Enquanto isso…

Estamos preocupados com quanto nós pesamos. Com o quanto temos no banco. Com o número de sapatos que temos. Com o quanto nossa vida, de um modo geral, vez ou outra, ou sempre, parece excessivamente pesada, difícil de carregar.