Realismo não-humano

Gosto de divagar. Acho que você já deve ter percebido isso a esta altura. Pois bem. Enquanto estava correndo estes dias, um pensamento ficou passando pela minha mente o tempo todo. Na verdade, dois pensamentos. São duas frases que li em algum lugar e que, por alguma razão, acho que têm relação uma com a outra.

A primeira é a seguinte. Se uma árvore cai na floresta, mas não tem ninguém (nenhum humano) para ouvi-la caindo, pode-se falar em som?

A segunda é esta. “Deus”, essa palavra e tudo que vem junto dela, existiria sem nossa presença (humana)? Ou foi apenas com o aparecimento de humanos que Deus começou a ser considerado? Esta última eu lembro a fonte: o escritor Jon Fosse. Não é uma citação literal, mas a ideia é mais ou menos essa mesmo.

Em ambos os casos, há um problema realista. Sobre o quanto a realidade (um som, Deus) é congênere com a espécie humana. Um ruído de uma árvore caindo – sem um humano por perto, o que ele seria? Digo, não a ausência de um humano em particular por perto, mas a espécie humana inteira. Se só houvesse chipanzés ao redor da árvore caindo, estes, no máximo, só procurariam não ficar embaixo dela. Obviamente, talvez não haveria associações de um ruído a um som e a uma constelação de possibilidades para esse som (eg.: por que a árvore está caindo? Qual o tipo de árvore, a julgar pelo som?). Nestas horas, lembro da minha cachorra. Quando ela está dormindo, e crianças fazem barulho na rua, é como se ela nem notasse. Como se lhe fosse totalmente indiferente. Claro, há alguns sons que são gatilhos para ela. Mas eu fico admirado com a suavidade do sono dela diante de sons que, para mim, seriam absurdamente revoltantes (tenho insônia, e parte tem a ver com a personalização extrema de ruídos).

Sobre Deus, bom, até onde sei, antes da espécie homo, não há nenhum monumento construído, nenhum livro sagrado escrito, nenhum ritual coletivo, muito menos guerra e morte por causa Dele. Animais nasciam, cresciam e morriam, e tudo ficava por isso mesmo. Aliás, por cinco vezes a vida foi praticamente riscada do mapa, de plantas a animais gigantes como dinossauros. A Terra, durante essas extinções em massa, já foi acertada por meteoros, sangrada de dentro por lava, chocada contra sua própria pele por conta de placas tectônicas em deslocamento na superfície, chuva de ácido e todo tipo de desgraça. Diante dessas catástrofes, nossos furacões e tempestades não chegam a ser nem um resfriado para um planeta com bilhões de anos e, portanto, uma longa ficha médica. Não creio que nenhum desses animais, no nível que fosse de suas capacidades sensitivas, tivessem cogitado que tudo aquilo que lhes acontecia era por causa dos “castigos” de um Deus irritado com a fraqueza espiritual desses seres. Eles simplesmente se foram para sempre. E se foram na ignorância, pois viviam no realismo da “coisa em si” (seus corpos, a Terra).

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Com o “giro subjetivo” na filosofia, da antiga para a moderna, o sujeito (humano) passou a ser a fiação do conhecimento. A subjetividade é uma espécie de base epistemológica fundante, por meio da qual a natureza é filtrada. A justificação do conhecimento passa pelo sujeito. Quando digo ‘sujeito’ não penso em uma pessoa de carne e osso. Mas em um tipo de plano. Como disse uma vez o filósofo Richard Rorty, é óbvio que havia ovos de dinossauros antes dos humanos (algo assim, me perdoe a paráfrase). E, obviamente, tais ovos não tinham relação causal nenhuma com humanos, até porque nem existíamos. Porém, tais ovos, hoje com nós humanos por aqui, “são” isso: ovos. E sabemos, a partir de vários vestígios deixados por aí, os tipos de ovos que existiam, a relação desses ovos com o tipo de animal, e assim por diante. Quer dizer, eles continuam a ser as mesmas “coisas” que existiam antes de estarmos (humanos) por aqui. Mas eles, paralela e incomensuravelmente, são partes de narrativas que nós humanos construímos e que integramos em sistemas de crenças, relações, significações.

Quer dizer, ao mesmo tempo, “ovos” são ovos (com o sujeito na jogada) E são “coisas em si” independentes de humanos. A finalidade de denominá-los de “ovos” (deve haver alguma raíz latina ou grega por detrás) é baseada em seu propósito: classificá-los, estudá-los e, no final, manipulá-los tendo em vista objetivos humanos. Ao passar pela “subjetividade”, os ovos são subjetivados para dentro (para a cultura e usos humanos; eg.: ovos de páscoa), e objetivados para fora (para a produção de frangos, por exemplo – isto é, para uma mudança concreta na coisa em si).

Portanto, tanto o som como Deus, de acordo com esse raciocínio, poderiam ser ambas as coisas. Primeiro, coisas-em-si; segundo, objetos, no sentido de se oporem (em relação dialética, em que um depende do outro) ao sujeito (sujeito<>objeto). No caso de Deus, porém, você já deve imaginar a complicação, pois, para começar, não o vemos (não há imanência). A menos que se considere Deus como “tudo o que há” – uma espécie de “transubjetividade” sobre a qual assenta a própria condição do Universo. Quer dizer, em escala infinita, a mesma função desempenhada pela subjetividade na construção do conhecimento humano.

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É sabido que Kierkegaard desenvolveu sua filosofia ao redor de uma explicação racional para a questão divina. Por mim, termino com uma ideia simples dele: a de salto. Pois pode ser disto mesmo que se trate: de um salto do realismo humano para um “realismo não-humano”. O momento em que mergulhamos e nos dissolvemos na coisa-em-si de nossa máteria, nos igualando finalmente a ela, talvez com um pouco mais de conforto do que tem ocorrido há bilhões de anos com outros seres vivos.