Fragmentos dispersos, 8

O demônio do meio dia. Já tive a experiência de ficar deprimido em um clima frio. Neve. Pouquíssimo sol. Escuridão engolindo tudo. Você vendo pessoas, corpos quentes, mas isolados uns dos outros. Você é mais um no espaço. E também já passei pela experiência de ficar deprimido em ambientes muito quentes. Aquele sol estalado. Ruas secas. Poucas árvores. E as poucas árvores cheias de areia seca cobrindo as poucas folhas verdes. Casas desordenadas, com cores discrepantes. Transições entre classes sociais sem aviso, e abruptamente. Cavalos na rua, com pessoas sem camisa. Torradas pelo sol. O ar-condicionado artificial, gerando tremores no corpo, quando tudo o mais está engolido numa bola de luz. Não sei o que é pior, sinceramente. Há um livro, famoso pelo que sei, O demônio do meio-dia. É sobre depressão. Interessante a imagem, não? Uso associação livre, pois não li o livro, exceto algumas páginas. Acho um livro muito grande para falar de depressão. Você é enxotado logo de cara. Um deprimido não quer atravessar mares infinitos de páginas para saber porque sofre. Você precisa nadar muito, quase como um atleta, para chegar ao outro lado da margem e descobrir o que lá existe. Mas a imagem é boa. Pois imagine um demônio, figura por excelência da noite, aparecer exatamente ao meio dia. Se for onde moro, ele vai aparecer naquela hora em que tudo parece grudado no lugar. Vai aparecer bem no momento do excesso de luz. De transparência. É muito ruim a luz perpétua, pois ela não deixa nenhum espaço para nossos segredos, para as penumbras das possibilidades de novos sentidos. Não. A luz perpétua de um meio-dia praticamente na linha do Equador irradia obviedade, quase um tapa na cara, uma obscenidade. Um demônio nu. Mas, talvez justamente por isso, profundamente, terrivelmente assustador. Aterrorizante.

O chamado. Às vezes me enrolo como se fosse um novelo de linha. Vou me enrolando ao redor de meu próprio eixo que, sei lá, fica tão pesado que não consigo compreender. Então, tudo começa a espiralar, a girar de dentro para fora, e de novo de fora para dentro. É um peso muito estranho. Quero fugir. Claro, no fundo não aguento meu próprio peso. E o movimento de se lançar e se enovelar novamente cansa. Cansa dolorosamente. Mas para onde fugir? Há, confesso, uma circularidade, como num jogo de espelhos. Circular. O narciso olhando sobre sua imagem projetada na água? Pode ser. Acho que nunca havia realmente sentido, visceralmente, essa metáfora. Movimentos repetitivos. Como se fosse um código de computador, programado para executar, ad nauseam, a mesma rotina. Que bom deve ser um código de computador. Sem consciência. Apenas a repetição, a repetição, a repetição até que algo externo lhe impeça de continuar. Repetição. E você consegue fazer muita coisa sem sair do lugar. Você consegue pensar muita, mas muita! coisa, sem pensar. Basta que se lhe apresente uma imagem, um pensamento, uma “tese” infantil gravada na ponta de uma flexa enterrada na sua carne. Uma infecção. Pois uma infecção nada mais é do que um organismo tentando se reproduzir (replicar, duplicar, repetir), como se os recursos fossem infinitos, e outro organismo tentando impedir isso de acontecer, mesmo que, no processo, este último organismo acabe prejudicando a si próprio. Ambos os organismos…agindo e reagindo conforme foram programados. Ambos lutando, não por alguma utopia abstrata, mas meramente para se manterem exatamente como são. Mas voltando ao novelo de linha. Há uma saída, uma grande e enigmática saída. Quando saio da repetição, ou quando pego essa repetição (que está “dentro de mim”) e saio na rua, e, de certo modo, sinto o “mundo”, algo ocorre. Um sinal de vida se enuncia. É como uma semente no chão, enterrada sozinha, no escuro úmido. Quando ela é irradiada pelo sol, “algo” a faz querer sair da terra. Algo a faz se mexer, a romper a unidade de seu próprio “ser”, fechado e encapsulado. Eu sinto a mesma coisa. Mas, ao mesmo tempo, fico com um enigma: que força é essa? Como posso me abrir a ela? Para onde ela poderia me levar? O que preciso fazer? Na escuridão do solo, na clausura da casca da semente, há um sinal de vida, um despontar sobre o desconhecido, para cima, para a luz, para o vento, para o aberto. É como um cheiro de comida gostosa no ar, que deixa um gato intrigado e lhe sugere uma direção. Mas, para onde?

P.S.: já ficou preso num looping, ouvindo a mesma música repetidas e repetidas vezes? Por que fazemos isso? O que queremos repetir, no fundo?