Corrupção

Há algumas semanas assisti o filme The human condition, dirigido por Masaki Kobayashi. Trata-se de uma história épica (são nove horas de filme), um verdadeiro retrato das deformações pelas quais passa o espírito humano em tempos e situações extremas.

Essencialmente, acompanhamos a jornada de Kaji. Ele começa como uma espécie de responsável pelo RH de uma mina de carvão. Idealista, tenta tornar as condições de trabalho menos penosas possíveis, mas é levado a situações tão extremas e paradoxais que, no final, acaba sendo demitido. A demissão o faz ser convocado para o exército imperial, e então o seguimos em sua peregrinação pelos quartéis japoneses, onde o absurdo está em toda parte.

No exército, mais uma vez Kaji tenta ajudar seus companheiros. Segue uma “filosofia” que ouviu de um dos trabalhadores de seu emprego anterior: Os semelhantes (neste caso, os bons) sempre encontram outros semelhantes. E, de fato, aqui e ali ele vai encontrando pessoas que, como ele, tentam humanizar condições inumanizáveis.

Finalmente, Kaji acaba como prisioneiro de guerra. Vai para um campo de trabalho forçado do Exército Vermelho. Ali, novamente, nosso personagem vivencia situações que o empurram cada vez mais longe no sentido da desumanização. Sua humanidade é, mais uma vez, testada até o limite. Presencia novos absurdos “institucionais”, mais burocracia estúpida e injusta, traições, trapaças, desprezo e a banalização da morte. Logo ali, entre os “companheiros” que, supunha Kaji, jamais poderiam ser injustos…como “socialistas”, com certeza (pensa Kaji) seriam justos. Deveriam ser o que de melhor haveria de humanidade. Nada mais longe da realidade.

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Até que ponto o espírito humano é corruptível? Na visão religiosa, somos sempre, desde o nascimento, condenados ao pecado. Já nascemos impuros, e não vai ser um banho nalgum rio qualquer que vai nos salvar. Nossa caminhada nesta vida é de contínua contrição, de expiação. Todo o momento somos provados e testados. Há quase tudo arquitetado para que falhemos. Mas precisamos acreditar na Graça e tentar nos salvar. Chegar o menos “sujos” no final quanto sejamos capazes.

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Sempre que preciso viajar de avião tenho um pensamento sombrio: em geral, tudo corre bem. As pessoas se sentam nos seus assentos; são educadas, ajudando umas às outras a acomodar bagagens; cedem sua vez para que outro passageiro passe; etc. Porém, e aí vem meu pensamento sombrio: e se esse avião sofresse um acidente?

Fico imaginando que quanto mais grave for um eventual acidente, mais a humanidade de cada pessoa é colocada à prova. E mais se pode rumar para uma lei da selva, um caos de rebanho assombrado. Em filmes enlatados de Hollywood, nestas horas sempre aparece um “herói” que se sacrifica pelos outros (em geral, homem). É claro que esse herói existe. E sua existência, mesmo que rara, é necessária para termos certeza de que, aconteça o que acontecer, nossa humanidade prevalece. Haverá coragem, altruísmo.

Mas a corrupção do espírito humano é diretamente proporcional à percepção de que a vida individual, ou suas extensões (membros da família, propriedade, etc.), está ameaçada. Quando só há um lugar a ocupar e existem várias pessoas disputando esse lugar, aí é que vemos a corrupção. Mesmo o esporte, que obviamente não é uma situação extrema como a sugerida acima, representa uma forma de corrupção às avessas: pois vertemos lácrimas para o vencedor. E por quê? Porque sabemos que ele mereceu, que venceu ao se superar, e superar os outros, seguindo regras justas e previamente estabelecidas. Mas é também uma corrupção, pois sempre haverá perdedores, e a cultura funciona, pelo menos na superfície, emulando winners e mandando para o lixo todos os perdedores.

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Eis assim que aquele jovem recém-formado, idealista e cheio de discurso coletivista e participativo, quando entra em uma instituição, especialmente se for uma empresa, vai progressivamente se corrompendo. Tanto no sentido de “defender o seu”, como no sentido de perda de sua individualidade. Ele vai modelando seu comportamento e sua linguagem, depois seu pensamento e enfim sua afetividade. Para falar a verdade, ele vai sendo modelado (ver meu outro post a respeito). Parafraseando o que uma vez disse Sartre, os jovens de hoje serão os avós de amanhã, tão conservadores quanto os atuais avós.

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A humanidade é linda desde que haja comida, propriedade, segurança, conforto e um lugar ao sol para todos. Quanto a realidade se distancia disso, aproximando-se de um cenário de escassez ou recursos limitados, aí então temos o terreno da corrupção. A corrupção é parte de um narcisismo atávico e ancestral. A coragem, em geral, implica numa abnegação, num desinteresse profundo, num desapego virtuoso. Não parece ser corriqueiro, mas está nas infinitas possibidades de ser um humano – a condição humana.

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Para finalizar, vamos pensar no seguinte. Imagine que você seja um pai ou mãe de família durante a França ocupada pelos alemães na Segunda Guerra. E suponhamos que, nesse contexto de situação extrema, você tenha a oportunidade de refugiar em seu porão um perseguido pelo regime nazista. Caso você aceite, e seja pego, toda sua família seria sumariamente executada. Você correria esse risco? Muitos assumiram. Muitos mais não.