O lugar na fila

Quando eu era pequeno, havia uma situação que eu odiava. O momento em que ficávamos numa fila esperando sermos convocados para formar dois times de futebol. Eu e um outro sempre ficávamos por último, quando não havia mais a quem escolher. Hoje, muitos anos depois, ainda sinto uma dor grande quando sou o último da fila. Mas deixar alguém por último na fila e uma prática normal. Até mesmo na universidade isso ocorre. Justamente onde deveríamos olhar para exatamente o fim da fila. Não sei do destino da maioria daqueles meus coleguinhas de colégio. A maioria por certo sequer chegou à universidade. Custa para entendermos que estar no papel de selecionar os melhores pode ser uma arma nas mãos de quem não tem outra coisa.

Mas o que há no medo de ser o último da fila? Não creio ter crescido ressentido, do tipo que “vai se vingar”. Talvez eu seja o tipo que “vai provar”. Tão triste quanto. Pois provar para quem? Onde estão esses expectadores imaginários do meu “eu”? Por outro lado, acho que meu medo, mesmo, é de não aceitar a lógica do mundo, a qual podemos observar em qualquer lugar na natureza. O fraco é deixado para trás. Se fôssemos cuidar de todos os fracos, com certeza não estaríamos aqui. Estaríamos, é claro, em uma outra humanidade. Diferente. Meu medo é de não corresponder a essa lógica subjacente. E suponhamos que eu não corresponda, mesmo (o que, aliás, é bem claro que não correspondo, a menos que me compare com formigas). O que vai acontecer? O que se perde? Qual o ponto em esbarrar-se com uma parede?

Relativizar: Ah, se eu estudar duro, se eu praticar, se eu me esforçar a ponto de me matar, aí o verdadeiro talento aflora. Subjugar-se: Sou assim mesmo, não há nada que eu possa fazer; o mundo é cruel mesmo, injusto. Racionalizar: Não posso ser culpado pelos meus fracassos; há um mundo cruel aí fora, com critérios artificiais, com pessoas competindo em condições desiguais.

O que você enxerga se encarar seu fracasso, dentro da lógica em que ele pode ser, sim, um fracasso? Ah, como existem respostas a esta questão. A maioria “fracassa”, logo, esse é um assunto sobre o qual muitos quebram a cabeça para ter algo a dizer. O pessoal da auto-ajuda é especialista em fracasso, por exemplo. E há também a religião, um poço infinito de antídotos ao fracasso – necessário, aliás, ou talvez chegássemos a uma guerra ou a uma sociedade dopada (infelizmente, você deve saber que é este último caso). Há filósofos que escrevem sobre como tirar lições do fracasso etc.

Volto à questão: o que há, no fundo do fundo, de ser alguém deixado por último na fila? Existe um não-ser. O não-amor. O abandono, a indiferença ou a humilhação. Para não falar das consequências materiais. Contra isso, me parece que há uma saída necessária: é preciso “construir” um ser que se contraponha a esse nada. E aí vamos para questões realmente profundas, reais: qual o “lastro” desse ser? Talvez seja uma situação trágica, pois não há lastro único, digamos, interno (o que poderia ser no fundo uma racionalização de um ser, como nas opções que coloquei acima). Porque veja: um crente (religioso; ou um crente “sábio” de tipo pagão), ele vai resistir ao nada com suas racionalizações e vai se espelhar em outros que simplesmente, pelas mesmas razões, se copiam entre si. Todo mundo, lá no fundo, anda por aí com essa questão no centro de sua existência. Discordo de quem diga que há tantos alienados e tal. Não, em relação a esta questão: em algum momento, à noite, num ponto de ônibus, dirigindo, etc., todos estão conscientes. A alienação talvez venha das estratégias para responder a isso. Então, o ser precisa se colocar, se afirmar, inclusive ou sobretudo quando é deixado para o último lugar da fila. Porque todos, na ponta da fila, são iguais; os da última fila, estes que sofrem, estes sofrem cada um a sua maneira.

Uma vez me ocorreu que talvez o corpo fosse a resposta. Porque o “eu” é, no fundo, um corpo, e nada mais do que isso. Em segundo lugar, esse “eu” está contido dentro da potência desse corpo. E, por fim, esse corpo e esse eu estão contidos na potência do universo. Cada corpo, na sua perfeicao, foi dado a todos com a mesmíssima gratuidade. Mas há algo em nos que nos draga para profundezas abissais quando nosso “eu” não é validado, positivado. Há um descompasso. A tentativa de colocar o mar num buraco. Quer dizer, o “eu” tenta colocar o mar nele.

Fragmentos dispersos, 5

Hemingway. ​Ele foi desonesto. Criou Renata, uma italiana nascida em Veneza e com 19 anos a altura da narrativa. Renata era linda e, sobretudo, inteligente. Conhecia história, era rica e não se importava com a opinião dos outros. Amava assuntos de guerra, ou queria livrar o coronel Cantwell de seu fardo; ‘purgá-lo’, como está na tradução. Falava inglês, italiano e espanhol. Lia Dante. Não é justo, velho Hemingway. Ele criou uma das histórias de amor mais lindas; o coronel, 50 anos; Renata, 19. Almas fantásticas. Além do amor pela Itália, tão maior, por certo, do que muitos italianos de hoje têm pelo país.

O palhaço. O cara nasce. Brota de algum útero. É nutrido, protegido. Progressivamente, vai sendo exposto ao próprio sotaque, do qual por vezes sequer tem noção. Aí vai sendo vestido. Depois, se veste. Acredita no que ouve. Ou ouve o que acredita. Vai seguindo por aí. Como um coreógrafo, obedece a um inscript invisível, se engana sem perceber, está num imenso palco, no qual a única conexão real é seu corpo que respira. Seu coração que bate. O indivíduo segue, e segue, acredita, sonega a si mesmo as profundezas de sua própria existência, mas aqui e ali tem alguns pontos de contato com o que poderia parecer o real: é promovido, passa numa prova, termina uma faculdade, sei lá, qualquer coisa, que ele entende, com razão, aliás, como um ‘ponto de checagem’ de que está no caminho certo. Não está, meu amigo; nunca estará. O planeta avalia os humanos em mega-toneladas: a cada milhão delas, sendo otimista, nasce alguma coisa que presta.

A agonia. Não dormir, por alguma razão. Já viveste isso, meu irmão? Você se deita na cama e esta parece lhe rejeitar, não querer você, ou você mesmo não a querer? Algo que gera agonia, a posição de dormir: aquilo não faz sentido. É estranho, não se encaixa, nenhuma posição repete a ‘terra natal’. Os psicanalistas falam de que dormir envolve a capacidade de transitar: de sair deste ‘mundo’ para o mundo das penumbras, pegando a barca de Aqueronte. Tens medo do que encontrará do outro lado? Não, nenhum medo do outro lado. Mas será? Às vezes, você se agonia tanto que o fim não parece, em teoria (e talvez este seja o problema!), ser pior do que você vive. Talvez isso seja dito por falta de conhecimento. Aliás, o quanto não sabemos? Muita coisa. Mas, ao sabermos, isso nos colocará num patamar mais elevado em relação à compreensão deste universo? Talvez, mas não sei. Em todo caso, hoje, quando conheço X, penso: “Nossa, como eu era estúpido quando conhecia X-1”. Ok, e quando conhecer X+1 vou falar a mesma coisa: “Nossa, como eu era estúpido quando conhecia X”. E assim por diante. Seja como for, até hoje, ao caminhar e olhar ao redor, ao testar de tudo que estivesse no raio de meus delírios transformados em ação, nada se encaixa, nada faz sentido, e sinto como se todos estivessem malucos, doidos, só faltando babar pela boca.

Vontade de falar. É interessante. Lendo alguns autores, gente da literatura digo, estes parecem ter em comum esse desejo absoluto pela palavra, essa dependência de colocar as coisas para fora, de criar universos, de articular palavras, dar-lhes ensejo e vida com naturalidade. Talvez morressem, ao menos é o que alguns dizem, se fossem obrigados a parar de falar o que falam. Bukowski, por exemplo, vive dando exemplos disso em seus textos. Para ele, escrever era tão natural e orgânico que bastava sentar e ver as frases se encaminharem. Parece que as palavras e, depois, o reconhecimento dava um lugar ao cara. Por exemplo, em qualquer livro dele você pode vê-lo dizer que Hemingway era meia boca; Tolstoi: um panaca (ou algo assim). E assim por diante. Julgava, de seu altar, todos e tudo. Ao mesmo tempo, dizia não se importar com nada nem ninguém. Afinal, ele tinha a seu ‘favor’ uma vida ferrada e fudida, e tinha uma postura em relação à leitura de outras coisas que não as dele como um esfomeado que soubesse exatamente se estavam lhe dando comida ou pedra ou estrume para comer. Bom, o que quero dizer é que cada autor cria seu castelo e se enfurna nela; é um bote salva-vidas. Ele o leva ou o usa para atravessar essas trevas dos anos. Criam uma razão para, ao colocar o pé no chão logo pela manhã, fazer a coisa toda ficar minimamente suportável. Mas e se você não tem muita vontade de falar, ou se falar é como você estivesse com gases querendo colocar tudo para fora, mas calha de estar no meio de uma platéia, sem poder soltar um mínimo fiapo?

Onde está Deus? Na igreja, no coração, na Bíblia? No silêncio, no mar, na paz interior, no céu azul? No alto de uma montanha, no contemplar de um vale, na existência de uma criança, no zunzun de uma abelha ao redor de uma flor? No sorriso de uma mãe, no olhar de um velho, no pôr do sol, na lua? No pensamento perfeito, para cada um, naquele momento de serenidade inexplicável, na saúde do corpo, ou no leito de morte? No corpo de uma mulher, na penumbra, no colo de alguém amado? No silêncio dos animais, no barulho silencioso das árvores chacoalhas pelo vento? Na floresta amazônica, com seu incalculável número de seres frágeis, mas ao mesmo tempo soberanos? Numa música perfeita, na harmonia de uma escultura, de um quadro, de uma paisagem? Deus, Deus, o ser perfeito, o ser que, ao ser tão perfeito, não tem sentido algum. A perfeição sem sentido, digo, sem um motivo, mas só o fato de existir. Deus está nos detalhes silenciosos. Acho que as pessoas que militam nos laboratórios de biologia, apesar do peso burocrático e banal de suas tarefas, estão próximos de ver Deus, suas marcas, seus rastros. Uma parte de Deus, penso eu, está nos detalhes impressos em nossas células. Sejam elas de humanos ou de bactérias. Debaixo do jargão complicado e esquemático das ciências biológicas básicas, uma beleza e elegâncias absolutas descansam soberanas. Deus definitivamente não está no barulho; não está no “macro”, no visível. Mas, ao mesmo tempo, está aqui, mais presente e palpável do que nunca. Temos olhos para ver, mas somos muito burros ou presunçosos para treiná-los a enxergar.

Realidade (risada)

Estes dias vi um cara dizendo que a “realidade” é para quem não se droga. A frase era “Reality is for people who can’t face drugs” (Tom Waits). E há esse outro que diz que pensamentos nos distanciam da realidade, pois pensamentos são bons servos para um péssimo mestre (“A good servant but a bad master, Alan Watts, um guru acadêmico-budista). Mas aí fiquei pensando (desculpe, Mr Watts!), como alguém enfrenta a realidade? Pois as pessoas que conheço, muitas delas jamais capazes de colocar uma droga na boca, em compensação vivem intoxicadas e criam uma versão da realidade que, honestamente, me parece que são loucas. Pois há esse cara que lida muito bem com a realidade, entenda-se: é um perfeito imitador. Sabe de cor como as coisas humanas funcionam. Para ele, aquilo ali em que surfa proficiente e sabichão é a realidade, o pequeno círculo em que ele vive e se da bem. Aquele outro acredita em Deus. Tem um que não para de acompanhar o que sai na mídia, e então deve ver o mundo desse quadrado: a visão de mundo de um jornalista qualquer, com a sorte de ser contratado por algum grande outlet. E há muitos outros que não conheço diretamente, mas estão aí andando pela rua. Eu sempre tive uma imensa curiosidade em descobrir o que as pessoas pensam. E, ao mesmo tempo, um medo incrível de descobrir. Quando entro no mundo de outras pessoas, em geral, me sinto perdido, contaminado. Fico horas para me recuperar. Ou amedrontado, quando me deparo com essas mentes objetivas, aparentemente com o pé no chão, e sóbrias em termos do que merece ser dito, do que merece ser pensado. Gente sem tempo, importantes, reconhecidas. A coisa toda para mim não faz muito sentido, na verdade. Esse budista segue nesta linha já bem surrada: a realidade está fora de nossa mente, e pensamentos são mediações que nos afastam dela. Até entendo um pouco. De fato, se você acompanha a nossa mídia, você acha que está vivendo num mundo surreal. Um Brasil gaiola das loucas. Você se perde facilmente em narrativas. Narrativas baseadas em afetos tristes, sombrios. Mas se você viver sem pensar, ou tentar apreender o real além das representações, o que resta? O vento no rosto? O contato com outro corpo quente (aliás, excelente forma de se conectar com a realidade; para mim, nada mais fantástico que um abraço ou deitar no peito de alguém)? Quer dizer, o mundo das sensações? Realidade não é uma ideia, nem mesmo um sentimento. Nem o espírito. O que é a realidade para quem se droga (legal ou ilícita)? Seria a realidade de verdade? Não, porque a pessoa que se droga mergulha no campo do pensamento e das distorções dos sentidos. Então, realidade está na visão do cara sóbrio? Olha, dependendo dessa “sobriedade”, a coisa é até mais maluca do que a realidade do drogado. Porque a realidade que está aí fora é tão falsa como qualquer outra coisa que poderia estar no lugar dela. Estamos presos nessas versões, inclusive materiais (se você está dentro de uma casa, ela é real no sentido de que há pedras e tijolos, mas é tão irreal quanto uma cabana de palha). Se você tem muita grana no banco, você acha que pode ter a realidade a seus pés. Acha que o dinheiro é realidade, ou melhor, pode se tornar realidade, basta você querer (gastar). Quer o sorriso de um vendedor, eis aí a realidade, basta gastar, etc. Mas esse sorriso é real? Bom, sim, no sentido de que um sorriso está ali na sua frente, você vê. Mas é real como seria o sorriso espontâneo, para alguém que se ama? Até mesmo o sorriso para a pessoa que se ama…seria real? Sorriem para você ou para uma projeção que fizeram sobre você? Entende? Não há como resolver isso, exceto, de repente, fazer tudo exatamente pelo inverso. Enfim, de tudo isso o que mais me assusta são as pessoas convictas. E competentes, pois elas fazem muitas coisas, são boas no que fazem (muitas dessas pessoas). Outras, tão assustadoras quanto, talvez, são representadas por essa massa de gente disforme que anda por aí, inúteis (para quem?) ou úteis (para quem?). Pessoas sentadas sem ter o que fazer em praças públicas; avenidas cheias de carros indo para lá e pra cá, sempre ruidosos, apressados para comprar um bolo ou consertar uma camisa ou chegar cedo em casa para desentupir a pia. Repartições públicas devoradoras de dinheiro de impostos. Hordas enfiadas em lojas, vendendo vassouras, meias, abridores de lata. Passeatas com um carrinho de som e uma faixa pedindo “justiça” ou redução de impostos. Gente e mais gente em cubículos filhas da puta para ouvir um treinamento motivacional no trabalho. Ou em salas de aula, ouvindo professores presunçosos ou alienados com power point repetindo a mesma merda de outros. Horas perdidas em feedbacks com chefes babacas, ou funcionários medíocres. Atendentes de call centers tentando resolver uma dúvida de algum idiota irritado com o tamanho da cueca que veio errado. Pastores em templos de fundo de garagem gritando em ternos ensopados de suor, pensando na grana que vão arrancar dos coitados quase esfomeados, ou como ganhar a simpatia do pastor superior para ver se arranja um buraco melhor pra “orar” (o pastor quer subir na vida). Das conversas sem futuro de garotões querendo passar a lábia nalguma gatinha na balada (tanto tempo para se maquiar, para isso!). Sim, pensar demais te afasta da realidade. Concordo. Mas não acho que os que não pensam estão de algum modo mais próximos da realidade. Só estão mais amassados na máquina de moer carne que os vai expelir no meio do nada daqui a pouco, e de quem nunca mais se falará, exceto por uns parentes de memória fraca. Poeira barulhenta, e as vezes virulenta, violenta e destrutiva que, quer saber, estão por detrás de nossa tão prestigiada “realidade” (não tem como não dar risada, não é mesmo? Especialmente porque estou gritando aqui no nada, talvez só pra mim mesmo. Patético, mas, que posso fazer? Deveria enfrentar a realidade é achar um emprego num jornal ou virar um influencer fracassado no YouTube?).

Baratas (quase de graça)

A barata amanhece de barriga para cima. Deve ter ficado a noite toda tentando entender por que diabos estava naquela posição e não conseguia juntar a com b. Ao mesmo tempo, algo saía do corpo dela; algumas patas, ou pernas. Percebendo a decomposição antecipada, um pequeno destacamento de formigas se aproximaram e começaram o serviço. Era preciso aproveitar o que fosse possível, afinal, algum hormônio ou sinalização animal as tinham comunicado que ali havia algo a se aproveitar. Um ser humano coloca a barata novamente em posição. Essa tenta se articular e dar umas cambaleadas para qualquer direção. Calhou de entrar embaixo da geladeira. Ok, pensou o humano. Uma noite ruim; provavelmente, acabou se entupido de veneno para barata. Tais venenos impedem a destruição dos neurotransmissores na fenda sináptica. Ao se acumularem, provocam uma espécie de curto-circuito. Mas claro que a barata não sabia disso. E o humano, embora até pudesse saber, não fez muita questão. Afinal, um humano tem sempre prioridade no universo, seja ele um bosta ou um anjo disfarçado. As horas passam. Ao voltar à cena, o humano nota que a barata está, novamente, de barriga para cima. E, novamente, outro pelotão de formigas já estava em formação. Na natureza, não se perde tempo. Vem o estímulo, segue a resposta. Vida segue. Nada pessoal, nada intencional, no sentido do humano, mas é assim. Estímulo, resposta; levar alimento para o formigueiro, procriar, proteger o ninho, sair novamente na ronda da batalha diária pelos cômodos de apartamento em andares altos. Finalmente, o humano percebe melhor a situação. Pensa: posso atenuar o sofrimento sem sentido da barata. Qual o impacto de ‘encurtar’ a vida de uma barata que, à luz do humano em geral, não tem qualquer valor, exceto o de n em N? Mais um número sem sentido no meio de uma população virtualmente infinita e igualmente sem sentido (para o humano). E pisa sobre a barata. Ali acaba um sofrimento sem sentido. Exceto o de que, por alguma força evolutiva, baratas surgiram e permaneceram; sobem em prédios; andam aqui e ali, elas também, em resposta a algum estímulo-resposta. Há uma lógica natural, claro. Sempre há. Mas o humano também evoluiu e, dentre as coisas que tal evolução trouxe, foi a compreensão do modo como o sistema nervoso funciona. E de alguns elementos químicos, enzimas e tal. E, no centro de seu desejo soberano, acha por bem, com base em qualquer lógica que até uma criança fora da escola saberia explicar: “Baratas não servem e devem sumir”, exterminar tais insetos (que ele, aliás, classificou assim, como “insetos” –sabem de tudo, esses humanos). Ademais, é nojento ter baratas por perto. Madames ou nem tanto não gostam. E, se um humano, no destacamento de humanos, achar ‘normal’ ter uma barata-pet (como se fosse disso que se tratasse, afinal!), ele é que não será visto assim por seus outros pares humanos. A loucura e a burrice são inventadas à luz do dia por uns espertinhos ou por uma multidão burra e cega. É muito fácil matar, acabar, exterminar. É muito fácil o humano se achar a coisa mais preciosa. Ele cria a lógica de tudo, a normalidade de tudo. Porque o humano é tal que nada pode se colocar em seu caminho. Repleto de dívidas, ambição, normalidade, ideias marxistas ou da auto-ajuda mais filha da puta, moralidade kantiana ou libido de cafetão, esse humano vive e tece seu cotidiano como se ele fosse a grande força deste planeta. Ele tem propósito, escreve livros, inventa teorias. Ele não pensa sobre matar baratas. Só os humanos degenerados, vagabundos ou algum folgado pago com dinheiro fácil pensa nesse tipo de coisa. Com tanta ambição, filhos para criar, apartamentos para quitar, merdas mentais para resolver, ele não pensa em nada, só em números, na desgraça que é sua vida, na desgraça que é a vida dos outros, na desgraça que é ser pobre e ferrado, ou explorado. Ou no próximo lance que precisa dar para enganar alguns otários, encher a bunda de dinheiro, comer porcaria cara ou se sentir um quadrado redondo. A merda do ser humano é tão grande que ele não pode, não, jamais, perceber que ele também é uma barata, que por vezes está com a barriga para o ar se agitando sem conseguir entender nada; por vezes está se enfiando em brechas e buracos para abocanhar alguma migalha; por vezes sendo devorada por formigas.

Meu vídeo top of the year

Liberdade

Uma pessoa pode ter motivação, mas não ter um objetivo a alcançar? Conversando com algumas pessoas, não raro me pego pensando que elas não conseguiriam viver sem um objetivo, mesmo que tal objetivo seja uma tarefa, uma meta de curtíssimo prazo. Se for aquele tipo de pessoa irriquieta, então esta pode contentar-se com “um dia a cada vez”, mas desde que, nesse tal dia, haja algo a realizar, a alcançar. Há, inclusive, aqueles mais sistemáticos que chegam a anotar em agendas e cadernos suas ‘metas’ diárias.

Uma pessoa que não tem objetivo pode experienciar depressão? Bom, pode ser estereótipo, mas deve ter muita gente de ‘papo para o ar’ por aí que não deve ter nenhum problema em ficar na brisa das circunstâncias, especialmente se puder contar com o trabalho de outros. Mas uma pessoa que, como muitas, nasceram e foram educadas em uma cultura orientada por objetivos, sim, provavelmente ela vai se deprimir, e nisto temos a faceta bastante moderna dessa patologia. Nesta faceta, a depressão é uma doença do vazio, da incapacidade ou da impossibilidade psíquica de fluir a vida sem um objetivo. Sem este, a pessoa pode se sentir inútil, imprestável, à deriva. É claro que uma pessoa com muitos objetivos também pode se deprimir, mas aqui se trata de outra faceta da depressão, aquela estudada por filósofos pop como o autor de A sociedade do cansaço (Byung-Chul Han). Sociólogos muito mais sérios já haviam percebido isso faz tempo (por exemplo, Alain Ehrenberg). Aqui, depressão é um tipo de burn-out, um consumo radical da energia vital, e, psicanaliticamente poderíamos acrescentar, uma espécie de válvula de segurança para que o sujeito simplesmente não se dissolva no atendimento do gozo do outro (sobretudo se esse outro for um chefe, uma empresa, um pai ou mãe implacáveis, etc.).

Então, o que nos resta? De um lado, o deprimido sem objetivo; de outro, o deprimido por sobrecarga e estiolamento psíquico. Como separar o joio do trigo? Porque veja, uma pessoa ‘sem objetivo’ e, como tal, simplesmente à deriva, ela está mais longe ou mais perto de seu plano geral no cosmos, por assim dizer (metaforicamente)? Considere ainda o seguinte. Quem disse que perseguir um objetivo é algo, necessária e intrinsecamente, bom? Vamos considerar uma coisa bem simples. Você precisa trabalhar. No trabalho, você traça objetivos em relação à sua carreira (sua experiência com o trabalho no tempo, independente de onde esteja trabalhando no momento), e traça objetivos em relação às tarefas concretas a serem realizadas. Ou segue objetivos traçados por outros, tanto faz para nosso propósito aqui. Então, você recebe seu salário. Aí você compra um carro. Estabelece uma casa, tem uma família. Aí os objetivos começam a se sobrepor e a acumular. Quando você tem um filho, por exemplo, você não conseguirá jamais escapar da força de ter de fazer coisas para ele, sendo que tais coisas sempre serão percebidas por você como a coisa mais sublime e justificada (no amor, na criação, etc.) para enlaçar seus atos, seu tempo, seu trabalho, seu suor, tudo. Sua vida passa a orbitar ao redor do outro que, detalhe, você gerou (pois é mais difícil o mesmo nível de apego quando não se tem o próprio filho; desconheço razões etológicas para isso – podem haver). Sua vida sai de você, e você entende esse gesto como um doar-se, como uma abnegação para que um outro se desenvolva; se você for religioso (mesmo que não pratique religião), então, aí a narrativa estará totalmente armada. Sua vida tem seu eixo fora dela; e, na sua cabeça, isso tem de ser assim mesmo, você sente na carne isso, como não poderia ser? Inclusive, o nível das emoções é tão evidente que todo o conhecimento gerado por esta pessoa sobre sua circunstância e sobre seu estar no mundo (no Cosmos) fica obliterado, ou confundido, embaralhado. E 80 anos passam muito, mas muito, rápido; quando se vê, a vida estará no fim, e a sensação de vida justificada daí se seguirá.

Assim, a certo ponto, ao se deixar levar na ciranda da vida cotidiana, orientada por objetivos, metas, expectativas, foco, coisas importantes, etc., você acaba se enebriando num tipo de pensamento imaginário que se alimenta a si mesmo, e, ao mesmo tempo, suas emoções começam a ser reguladas por esse mesmo imaginário. Ah, vão nos dizer os realistas, esse seu papo aí é coisa de gente que pensa demais; seja uma pessoa prática, pare de questionar, o mundo precisa de gente que arregace as mangas e construa um futuro melhor, etc. É muito difícil, talvez até impossível, ‘discutir’ com quem ‘sente’ as coisas como ‘certas’. Você mesmo pode achar que você está certo; seu pensamento pode estar tão orientado pela imaginação que você não consegue, cognitivamente, abrir algumas portas e considerar outras janelas. Mas o que haveria para além da imaginação?

As causas reais das coisas. Talvez você possa me dizer que isso não existe, afinal, vivemos num “mundo relativista”. Mas existe, sim, um plano além do da imaginação, mas para chegar até ele é preciso usar a razão, a capacidade natural de nossa mente, em seu estado natural, em sua potência natural.

Ao tentar avançar um pouquinho para fora da imaginação, e de suas emoções ou afetos correspondentes (reativos, na maior parte), algo mais ou menos assim ocorre: é como se você estivesse acostumado com as luzes da cidade, à noite; então, quando dirige para o campo, quando as luzes artificiais rareiam, então você se dá conta de que, nossa!, há um céu, há estrelas, e há um infinito em todos os cantos. Este é só um exemplo. Não falo aqui de contemplar a ‘natureza’ (coisa que, em geral, quem diz é quem é rato de cidade), falo em descentralização radical, perspectiva, apercepção de que estamos na Natureza (novamente, não confundir com passarinhos, lagos e lagoas!). Quer outro exemplo similar: você percebe que tem um corpo? Parece boba a pergunta, mas não reaja assim logo de cara. Muitos de nós sequer nos apercebemos como sendo um corpo, na verdade, e que esse corpo é um corpo que faz parte da Natureza – mas ele também, ou sobretudo ele!, foi enredado pelo conhecimento atrelado à imaginação…

É impressionante como o nossa imaginação, turbinada pela sociedade do espetáculo e das telas, nos lança tanta luz (literalmente, no caso das telas), que X passa a produzir X, ou seja, um pensamento leva a outro pensamento, que se “reforça” de modo fictício em outdoors, na boca de outras pessoas (artistas, intelectuais, pastores, padres…), gerando a sensação de realidade. O mesmo pode ocorrer com nossos objetivos: eles podem ser parte de uma trama fictícia – não necessariamente má, em si. Neste momento, por exemplo, há pessoas quebrando a cabeça, verdadeiros “heróis” tentando achar a vacina para o COVID19, para que todos possam retomar suas vidas, uns mais, outros menos. Mas veja que interessante: foram nós, humanos, que, em primeiro lugar, provocamos a própria doença, no sentido de que princípios ecológicos foram corrompidos, permitindo o salto e a circulação humana do vírus. Sempre foi assim: a civilização cresce, interfere na ecologia, provoca uma catástrofe, aí cria seus próprios mecanismos, sofisticadíssimos, diga-se de passagem, para combater algo que ela própria criou. E já pensou na motivação desses cientistas? Se for um norte-americano, então, ele estará simplesmente fascinado e miticamente jubilante por estar “fazendo história”, por estar num dos “maiores países do mundo”, etc., etc., etc. Os EUA são, aliás, a terra da motivação, da orientação por objetivos, do pensamento pragmático, da tecnologia, do dinheiro, da sofisticação inacreditável da espécie humana moderna. Quer dizer, há muita narrativa, muita lenha para a imaginação ali (e, pela via das redes e telas, para todo o resto do mundo…é surreal como todo lugar do mundo discute as eleições americanas e as coisas deles, etc.).

A resposta para a questão acima, sobre se é possível ter motivação sem objetivo, penso eu, tem a ver com nossa concepção de liberdade. É livre quem cresce ouvindo que precisa ser alguém, alcançar objetivos, se tornar um doutor, um empreendedor, etc.? É livre quem, como diria Dejours, “tem motivação”, em vez de desejo? A liberdade humana depende de entendermos as causas, e em nos tornarmos causas de nossas próprias vidas. Tornar-se causa de sua própria vida é descobrir a verdade sobre você, sobre onde você está, sobre quem você é, e sobre os outros. A liberdade consiste em reencontrarmos com nossa própria natureza, que não necessariamente vibra na mesma sintonia que a de outras pessoas. Mas aí finalizo com o seguinte: criamos nossos aparatos imaginativos para justamente evitarmos de nos confrontar com nós mesmos. É um mal necessário, alguém poderia dizer.

Post escrito inspirado em Espinosa.

Você nunca fará algo notável + Você não existe

Incríveis!

Sistema operacional

De que você precisa para ‘rodar’ sua vida normalmente, quer dizer, para tocar as suas responsabilidades cotidianas, inclusive as envolvidas em sua sobrevivência? Talvez na resposta a esta questão resida uma linha divisória entre crianças e adultos. Pois a criança se orienta por um tipo muito particular de pensamento mágico, em que as coisas simplesmente acontecem, como num filme da Dysney.

Usemos uma metáfora. Considere um computador que ‘roda’ windows. De que ele necessita para ser ‘operacional’? Ele necessita de um sistema operacional: DOS? Sem algum pacote mínimo de arquivos .dll (não tenho certeza se é isto mesmo, enfim) seu computador não liga, não avança para além daquela tela azul.

Imagine agora que você tenha uma casa. E que você decida mudar, livrando-se de tudo. Então, obviamente, você precisa de outra casa. Você já pensou no quanto sua vida se desorganiza quando você se muda e ‘reseta’ completamente o sistema de memórias ou “caches” que estavam lá armazenadas e que, por se basearem em caminhos repetitivos, simplesmente os memorizava e partia para o resultado desejado? Acho que até crianças vivem isso.

Nietzsche disse algo mais ou menos assim: primeiro, descubra o que você necessita; só então ame o que você necessia. Ou algo assim. Quer dizer, ame apenas aquilo que você realmente precisa para viver. E aqui vai o milagre da coisa toda: não necessariamente é muito. Vamos pensar numa bobagem: você tem a sua cozinha (assumindo que você cozinhe, o que penso ser um aspecto essencial para ser um adulto). Você obviamente gosta de comer um prato X. Mas você já pensou sobre quais objetos você precisa para ‘rodar’ o processo que levará à elaboração desse prato X?

Fiquei pensando sobre isso quando, por razões variadas, tive de mudar, me instalar; mudar de novo e ter de me instalar mais uma vez. Aí vem a questão: preciso comprar coisas. E então: afora o básico (geladeira, fogão, etc.), de que mais eu preciso para ‘rodar’ aspectos até certo ponto rotineiros e básicos ou ‘fundantes’ do meu cotidiano?

E não é tão simples, pois você tem certos hábitos, rituais, manias ou o que quer que seja. Você tinha, digamos, uma cadeira que dava certinho para seus estudos. Uma mesa de trabalho. Então, você está na estaca zero. Aí você se pergunta: bom, vou tentar reconstruir o que eu tinha, como se estivesse visceralmente agarrado àquilo, ou vou experimentar coisas novas, eventualmente descobrindo novos gostos, prazeres, e eventualmente rotinas?

Outro filósofo, Heidegger, ao discutir a tecnologia ou o mundo dos objetos, destacava que não nos damos conta dos objetos cotidianos que estão sempre aí, à mão; só percebemos o quanto dele dependíamos quando eles quebram ou…nós nos mudamos, vendemos ou damos tudo, e então ficamos ‘soltos’, por assim dizer, na vida cotidiana. Sim, nossa vida é o cotidiano!

Então, volto à questão: qual seu ‘sistema operacional básico’? Vou dar um exemplo. Sei que é bobo, mas, como talvez tudo que pertença ao cotidiano, assim seja: panela. Talvez você possa dizer que isso é sinal de que já virei o triângulo das bermudas entre a adolescência (óbvio, tenho 44), do jovem adulto (óbvio, tenho 44), e já entrando na ‘velhice’, quando certas coisas por detrás das cortinas começam a ser muito importantes para determinar sua ‘qualidade de vida’ (terrível expressão, mas vamos dizer que ajude por simplificar). Então, se eu não tenho minhas panelas, poxa, a coisa complica. Outro exemplo: travesseiros (um grande, um médio, um pequeno – ok, aqui já me entreguei e agora você sabe que posso ser um obsessivo, rs.). Pilha para o mouse do computador. Lixo para a pia da cozinha (você acha que um adolescente se preocuparia com isso?).

Mas a lista se expande, incluindo outras coisas. Como disse, nada muito complexo, mas sim estratégico. Então, quando você se muda, muda, muda., você começa a se perguntar: estava eu muito preso a uma rotina de ‘velho’ e por demais habituado a ela, fazendo dela minha ‘zona de conforto’? Esta é uma questão. A outra é: pelos objetos de que necessito, tipo de moradia, etc., eu posso descobrir muitas coisas sobre mim mesmo, sobre minha personalidade, minha ‘classe social’, etc. Este é outro ponto. E tem por fim a necessidade de uma lista: o que preciso comprar, onde, quanto vai custar, etc. Alguém fez isso por mim no passado (remoto: minha mãe; menos remoto: minha ex-mulher). No mais, ao vivermos vamos acumulando coisas, e tais coisas, que podiam ter sido adquiridas aleatoriamente no início, se encaixam num certo ritual, e então, quando tiradas de você, você nota que está de novo ‘in the wild’.

Eu sei que, afora tudo isso, em algum nível eu busco me justificar, para não fazer ‘o que eu tenho de fazer’ (meus projetos “transcendentes”, etc.). Se falta um lixo de cozinha, não consigo me concentrar em meus projetos transcendentes. Fuga? Ou uma brecha de meu inconsciente a me mostrar que, no fundo, não há projeto transcendente coisa alguma, e que o importante é garantir algum conforto psicológico e físico com um lixo de cozinha? A pensar.

Um comentário final aleatório, na verdade uma lembrança: estava eu num vôo. Momento do embarque, malas, etc. Chega uma moça atrasada. E procura lugar para colocar sua mala, encontra, senta-se, totalmente esbarofida, a meu lado. Problema: deu-se conta de que havia perdido uma pulserinha de prata. Grita para a irmã na fileira da frente: você pegou minha pulseira? E, durante quase todo o vôo de 3h ela fica inquieta. Disponho-me a ajudar a procurar: talvez tenha caído no assoalho da poltrona de trás? Não teria colocado em outra bagagem? Não teria derrubado em outro momento? Etc. Não adiantou. Ali, nada mais parecia importar para ela, exceto a possibilidade de ter perdido a pulseirinha. Mesquinharia de não querer perder nada (pois o medo, na verdade o terror, de muita gente é em perder, em sair no prejuízo, em se dar mal até nas coisas mais ridículas), ou o medo de que, ao perder a pulserinha (se é que perdeu), ela perdeu alguma coisa de que nem saiba direito o que seja? Ao aterrizar, ela logo encontra sinal de serviço de telefonia, e telefona para seu marido, namorado, não sei: não prestei atenção no que ela disse, só flagei o nome do contato: baby boy. Estaríamos todos viajando, com essa sensação de terror ao ‘perder’ algo, e, assim que o sinal nos conecta novamente a uma ‘rede’, nos lançamos ávidos para falar, nos conectar, com um ser que, por razões variadas, é o depositário de nossa ilusão (Freud), isto é, nosso ‘porto seguro’ que nos acalma pela pulseira perdida? A pulseira…apenas um ícone de algo muito maior, muito mais profundo.