Baratas (quase de graça)

A barata amanhece de barriga para cima. Deve ter ficado a noite toda tentando entender por que diabos estava naquela posição e não conseguia juntar a com b. Ao mesmo tempo, algo saía do corpo dela; algumas patas, ou pernas. Percebendo a decomposição antecipada, um pequeno destacamento de formigas se aproximaram e começaram o serviço. Era preciso aproveitar o que fosse possível, afinal, algum hormônio ou sinalização animal as tinham comunicado que ali havia algo a se aproveitar. Um ser humano coloca a barata novamente em posição. Essa tenta se articular e dar umas cambaleadas para qualquer direção. Calhou de entrar embaixo da geladeira. Ok, pensou o humano. Uma noite ruim; provavelmente, acabou se entupido de veneno para barata. Tais venenos impedem a destruição dos neurotransmissores na fenda sináptica. Ao se acumularem, provocam uma espécie de curto-circuito. Mas claro que a barata não sabia disso. E o humano, embora até pudesse saber, não fez muita questão. Afinal, um humano tem sempre prioridade no universo, seja ele um bosta ou um anjo disfarçado. As horas passam. Ao voltar à cena, o humano nota que a barata está, novamente, de barriga para cima. E, novamente, outro pelotão de formigas já estava em formação. Na natureza, não se perde tempo. Vem o estímulo, segue a resposta. Vida segue. Nada pessoal, nada intencional, no sentido do humano, mas é assim. Estímulo, resposta; levar alimento para o formigueiro, procriar, proteger o ninho, sair novamente na ronda da batalha diária pelos cômodos de apartamento em andares altos. Finalmente, o humano percebe melhor a situação. Pensa: posso atenuar o sofrimento sem sentido da barata. Qual o impacto de ‘encurtar’ a vida de uma barata que, à luz do humano em geral, não tem qualquer valor, exceto o de n em N? Mais um número sem sentido no meio de uma população virtualmente infinita e igualmente sem sentido (para o humano). E pisa sobre a barata. Ali acaba um sofrimento sem sentido. Exceto o de que, por alguma força evolutiva, baratas surgiram e permaneceram; sobem em prédios; andam aqui e ali, elas também, em resposta a algum estímulo-resposta. Há uma lógica natural, claro. Sempre há. Mas o humano também evoluiu e, dentre as coisas que tal evolução trouxe, foi a compreensão do modo como o sistema nervoso funciona. E de alguns elementos químicos, enzimas e tal. E, no centro de seu desejo soberano, acha por bem, com base em qualquer lógica que até uma criança fora da escola saberia explicar: “Baratas não servem e devem sumir”, exterminar tais insetos (que ele, aliás, classificou assim, como “insetos” –sabem de tudo, esses humanos). Ademais, é nojento ter baratas por perto. Madames ou nem tanto não gostam. E, se um humano, no destacamento de humanos, achar ‘normal’ ter uma barata-pet (como se fosse disso que se tratasse, afinal!), ele é que não será visto assim por seus outros pares humanos. A loucura e a burrice são inventadas à luz do dia por uns espertinhos ou por uma multidão burra e cega. É muito fácil matar, acabar, exterminar. É muito fácil o humano se achar a coisa mais preciosa. Ele cria a lógica de tudo, a normalidade de tudo. Porque o humano é tal que nada pode se colocar em seu caminho. Repleto de dívidas, ambição, normalidade, ideias marxistas ou da auto-ajuda mais filha da puta, moralidade kantiana ou libido de cafetão, esse humano vive e tece seu cotidiano como se ele fosse a grande força deste planeta. Ele tem propósito, escreve livros, inventa teorias. Ele não pensa sobre matar baratas. Só os humanos degenerados, vagabundos ou algum folgado pago com dinheiro fácil pensa nesse tipo de coisa. Com tanta ambição, filhos para criar, apartamentos para quitar, merdas mentais para resolver, ele não pensa em nada, só em números, na desgraça que é sua vida, na desgraça que é a vida dos outros, na desgraça que é ser pobre e ferrado, ou explorado. Ou no próximo lance que precisa dar para enganar alguns otários, encher a bunda de dinheiro, comer porcaria cara ou se sentir um quadrado redondo. A merda do ser humano é tão grande que ele não pode, não, jamais, perceber que ele também é uma barata, que por vezes está com a barriga para o ar se agitando sem conseguir entender nada; por vezes está se enfiando em brechas e buracos para abocanhar alguma migalha; por vezes sendo devorada por formigas.


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