Realidade (risada)

Estes dias vi um cara dizendo que a “realidade” é para quem não se droga. A frase era “Reality is for people who can’t face drugs” (Tom Waits). E há esse outro que diz que pensamentos nos distanciam da realidade, pois pensamentos são bons servos para um péssimo mestre (“A good servant but a bad master, Alan Watts, um guru acadêmico-budista). Mas aí fiquei pensando (desculpe, Mr Watts!), como alguém enfrenta a realidade? Pois as pessoas que conheço, muitas delas jamais capazes de colocar uma droga na boca, em compensação vivem intoxicadas e criam uma versão da realidade que, honestamente, me parece que são loucas. Pois há esse cara que lida muito bem com a realidade, entenda-se: é um perfeito imitador. Sabe de cor como as coisas humanas funcionam. Para ele, aquilo ali em que surfa proficiente e sabichão é a realidade, o pequeno círculo em que ele vive e se da bem. Aquele outro acredita em Deus. Tem um que não para de acompanhar o que sai na mídia, e então deve ver o mundo desse quadrado: a visão de mundo de um jornalista qualquer, com a sorte de ser contratado por algum grande outlet. E há muitos outros que não conheço diretamente, mas estão aí andando pela rua. Eu sempre tive uma imensa curiosidade em descobrir o que as pessoas pensam. E, ao mesmo tempo, um medo incrível de descobrir. Quando entro no mundo de outras pessoas, em geral, me sinto perdido, contaminado. Fico horas para me recuperar. Ou amedrontado, quando me deparo com essas mentes objetivas, aparentemente com o pé no chão, e sóbrias em termos do que merece ser dito, do que merece ser pensado. Gente sem tempo, importantes, reconhecidas. A coisa toda para mim não faz muito sentido, na verdade. Esse budista segue nesta linha já bem surrada: a realidade está fora de nossa mente, e pensamentos são mediações que nos afastam dela. Até entendo um pouco. De fato, se você acompanha a nossa mídia, você acha que está vivendo num mundo surreal. Um Brasil gaiola das loucas. Você se perde facilmente em narrativas. Narrativas baseadas em afetos tristes, sombrios. Mas se você viver sem pensar, ou tentar apreender o real além das representações, o que resta? O vento no rosto? O contato com outro corpo quente (aliás, excelente forma de se conectar com a realidade; para mim, nada mais fantástico que um abraço ou deitar no peito de alguém)? Quer dizer, o mundo das sensações? Realidade não é uma ideia, nem mesmo um sentimento. Nem o espírito. O que é a realidade para quem se droga (legal ou ilícita)? Seria a realidade de verdade? Não, porque a pessoa que se droga mergulha no campo do pensamento e das distorções dos sentidos. Então, realidade está na visão do cara sóbrio? Olha, dependendo dessa “sobriedade”, a coisa é até mais maluca do que a realidade do drogado. Porque a realidade que está aí fora é tão falsa como qualquer outra coisa que poderia estar no lugar dela. Estamos presos nessas versões, inclusive materiais (se você está dentro de uma casa, ela é real no sentido de que há pedras e tijolos, mas é tão irreal quanto uma cabana de palha). Se você tem muita grana no banco, você acha que pode ter a realidade a seus pés. Acha que o dinheiro é realidade, ou melhor, pode se tornar realidade, basta você querer (gastar). Quer o sorriso de um vendedor, eis aí a realidade, basta gastar, etc. Mas esse sorriso é real? Bom, sim, no sentido de que um sorriso está ali na sua frente, você vê. Mas é real como seria o sorriso espontâneo, para alguém que se ama? Até mesmo o sorriso para a pessoa que se ama…seria real? Sorriem para você ou para uma projeção que fizeram sobre você? Entende? Não há como resolver isso, exceto, de repente, fazer tudo exatamente pelo inverso. Enfim, de tudo isso o que mais me assusta são as pessoas convictas. E competentes, pois elas fazem muitas coisas, são boas no que fazem (muitas dessas pessoas). Outras, tão assustadoras quanto, talvez, são representadas por essa massa de gente disforme que anda por aí, inúteis (para quem?) ou úteis (para quem?). Pessoas sentadas sem ter o que fazer em praças públicas; avenidas cheias de carros indo para lá e pra cá, sempre ruidosos, apressados para comprar um bolo ou consertar uma camisa ou chegar cedo em casa para desentupir a pia. Repartições públicas devoradoras de dinheiro de impostos. Hordas enfiadas em lojas, vendendo vassouras, meias, abridores de lata. Passeatas com um carrinho de som e uma faixa pedindo “justiça” ou redução de impostos. Gente e mais gente em cubículos filhas da puta para ouvir um treinamento motivacional no trabalho. Ou em salas de aula, ouvindo professores presunçosos ou alienados com power point repetindo a mesma merda de outros. Horas perdidas em feedbacks com chefes babacas, ou funcionários medíocres. Atendentes de call centers tentando resolver uma dúvida de algum idiota irritado com o tamanho da cueca que veio errado. Pastores em templos de fundo de garagem gritando em ternos ensopados de suor, pensando na grana que vão arrancar dos coitados quase esfomeados, ou como ganhar a simpatia do pastor superior para ver se arranja um buraco melhor pra “orar” (o pastor quer subir na vida). Das conversas sem futuro de garotões querendo passar a lábia nalguma gatinha na balada (tanto tempo para se maquiar, para isso!). Sim, pensar demais te afasta da realidade. Concordo. Mas não acho que os que não pensam estão de algum modo mais próximos da realidade. Só estão mais amassados na máquina de moer carne que os vai expelir no meio do nada daqui a pouco, e de quem nunca mais se falará, exceto por uns parentes de memória fraca. Poeira barulhenta, e as vezes virulenta, violenta e destrutiva que, quer saber, estão por detrás de nossa tão prestigiada “realidade” (não tem como não dar risada, não é mesmo? Especialmente porque estou gritando aqui no nada, talvez só pra mim mesmo. Patético, mas, que posso fazer? Deveria enfrentar a realidade é achar um emprego num jornal ou virar um influencer fracassado no YouTube?).