Doença da fala

Às vezes, quando chego em casa à noite, após interagir com outras pessoas, em particular no ambiente profissional (no meu caso, atuando como professor), sinto como se precisasse apagar tudo o que aconteceu durante o dia. É uma espécie de incômodo. Algumas vezes sinto como se não tivesse sido autêntico em minhas interações. Não disse o que gostaria de dizer. Ou então sinto como se não pertencesse de modo algum ao ambiente em que estive até chegar em casa. Como se aquele ambiente não fosse autêntico, como se muitas pessoas não fossem autênticas – ou, pior, podem até ser que sejam, o que torna a coisa ainda mais assustadora para mim. Talvez tenha a ver com certa aversão ao teatro que tenho, digo, essa teatralidade repleta de platitudes que outros dizem quando estão em grupo.

Fico agitado nesses casos. É como se algum tipo de harmonia do meu ser tivesse sido prejudicada. Já usei esta metáfora antes, mas agora o faço novamente com uma nova aplicação: é como se a água de uma poça (ou, se quiser, a superfície de um rio calmo e estável) tivesse sido agitada, e leva-se um tempo até que ela novamente volte à sua posição inicial.

Acredito que as pessoas possam adoecer pela palavra. Especialmente em profissões como a de professor, nas quais a matéria do trabalho é justamente a palavra. Não há a opção de ficar calado no seu canto: você é convocado a falar. Melhor, isso está implícito (ou ridiculamente explícito, na verdade) na natureza do próprio trabalho de professor. Há também o desgaste físico envolvido em falar o tempo todo, entre tantas outras auguras da vida docente, mas acho que o mais complicado mesmo é o desgaste mental.

Porém, ontem tive um pequeno insight, se posso dizer assim. Sempre interpretava minha sensação de mal-estar, da água em distúrbio da minha “poça mental”, como um defeito meu. Por ser às vezes um pouco obsessivo, é claro que fico repassando o que eu disse ao longo do dia, e julgando o que teria sido correto (impecável, no fundo) dizer. Provavelmente, outras pessoas com quem interagi sequer se lembrem de ter me ouvido falar, quando muito de avaliar o conteúdo do que eu disse! Mas, tirando isso, há algo mais elementar: a coerência entre o que falo e no que acredito de verdade.

Também acho razoável pensar que é praticamente impossível falarmos exatamente o que estamos sentindo ou no que acreditamos. Há sempre um desvio nisso aí. Porém, e este foi o pequeno insight, e seu eu primeiro descobrisse no que realmente acredito e, por um segundo, imaginasse um mundo real em que eu pudesse falar a partir desse lugar de quem acredita naquilo que está falando? Será que teria alguma crença fundamental a partir da qual estruturar a fala? Não parece tão simples. Até porque só descobrimos alguma coisa sobre nós, inclusive no que acreditamos, quando falamos! E também não é nada prático, tampouco saudável, ficar pensando e estruturando um discurso para falar, um que representasse fielmente o que acredito. Isso implicaria numa postura diante das outras pessoas em que estas devessem ser passivas e eu fazendo um monólogo unilateral (longe de mim essa postura; acho, inclusive, o contrário: interlocução descentralizada, mas desde que com pessoas genuinamente interessadas e, sobretudo, preparadas ou competentes).

E há ainda um complicador adicional. Profissionalmente, quando falo, não falo, em tese, de crenças pessoais, mas sim de um conhecimento que me transcende, isto é, que não é, propriamente, meu. Ninguém vai assistir uma aula… bom, ninguém em meu círculo de relações ou de experiências… por conta de que sou eu quem vai falar. O aluno sequer sabe qual será seu professor, ou tem muito pouca, se alguma, interferência na escolha do professor. Ele está lá para aprender sobre uma “matéria” da psicologia, no meu caso, psicologia do trabalho. Então, temos também essa possível diferença entre opiniões e fatos, entre teoria e crenças, e assim por diante. Mas não gostaria de complicar muito meu insight, se não ele vai acabar se perdendo.

Voltando ao que pensei: ainda dentro desse exercício mental livre, que mundo seria esse, ou melhor, o que me impede de estar nesse mundo, em que eu pudesse falar, de fato, no que acredito? Bom, talvez eu fosse rejeitado, processado, estigmatizado…talvez. Ou talvez eu fosse aceito, até mesmo acolhido, quem sabe até com alguma excentricidade… muito embora não se trate de nada fora do comum, mas simplesmente de dizer coisas que não se distanciem muito daquilo que eu acredito ser (digamos, meus valores ou expectativas).

Para ser honesto, tive esse insight assistindo ao meu comediante predileto (embora não seja muito culto em termos de comediantes), George Carlin. Eu assisto repetidas vezes (já perdi a conta) algumas das peças que ele apresenta em seus shows. Tem coisas que ele fala e que eu acredito com todo o meu ser. Mas tem coisas que ele diz (dizia, na verdade; ele teve uma carreira de uns 40 anos como comediante, mas faleceu em 2008) que hoje soariam muito, mas muito, controversas. Seja como for, o ponto que me atraiu foi de que a postura dele era a de alguém crítico da cultura de seu tempo. Aparentemente, ele não tinha um lado (político, por exemplo) em detrimento de outro. Ele passava a imagem de estar assistindo à distância. Para ser mais exato, ele costumava falar que havia comprado um ticket para o “freak show” que era a vida cotidiana (a cultura norte-americana de classe média) de seu tempo. Genial, absolutamente genial, e, pelo menos na aparência, indiferente à opinião das outras pessoas. Seria essa uma forma para existir: não acreditar no que se vê e, como resultado, usar de comédia e sátira para se posicionar diante do show de horrores da vida em grupo?

Bonus: um vídeo de George Carlin, dos poucos com legenda em português. Neste, ele discute algo um pouco diferente das “free floating hostilities” que ele costuma fazer em seus shows. Este é mais filosófico, por assim dizer. Para mim, impecável!