Fragmentos dispersos, 8

O demônio do meio dia. Já tive a experiência de ficar deprimido em um clima frio. Neve. Pouquíssimo sol. Escuridão engolindo tudo. Você vendo pessoas, corpos quentes, mas isolados uns dos outros. Você é mais um no espaço. E também já passei pela experiência de ficar deprimido em ambientes muito quentes. Aquele sol estalado. Ruas secas. Poucas árvores. E as poucas árvores cheias de areia seca cobrindo as poucas folhas verdes. Casas desordenadas, com cores discrepantes. Transições entre classes sociais sem aviso, e abruptamente. Cavalos na rua, com pessoas sem camisa. Torradas pelo sol. O ar-condicionado artificial, gerando tremores no corpo, quando tudo o mais está engolido numa bola de luz. Não sei o que é pior, sinceramente. Há um livro, famoso pelo que sei, O demônio do meio-dia. É sobre depressão. Interessante a imagem, não? Uso associação livre, pois não li o livro, exceto algumas páginas. Acho um livro muito grande para falar de depressão. Você é enxotado logo de cara. Um deprimido não quer atravessar mares infinitos de páginas para saber porque sofre. Você precisa nadar muito, quase como um atleta, para chegar ao outro lado da margem e descobrir o que lá existe. Mas a imagem é boa. Pois imagine um demônio, figura por excelência da noite, aparecer exatamente ao meio dia. Se for onde moro, ele vai aparecer naquela hora em que tudo parece grudado no lugar. Vai aparecer bem no momento do excesso de luz. De transparência. É muito ruim a luz perpétua, pois ela não deixa nenhum espaço para nossos segredos, para as penumbras das possibilidades de novos sentidos. Não. A luz perpétua de um meio-dia praticamente na linha do Equador irradia obviedade, quase um tapa na cara, uma obscenidade. Um demônio nu. Mas, talvez justamente por isso, profundamente, terrivelmente assustador. Aterrorizante.

O chamado. Às vezes me enrolo como se fosse um novelo de linha. Vou me enrolando ao redor de meu próprio eixo que, sei lá, fica tão pesado que não consigo compreender. Então, tudo começa a espiralar, a girar de dentro para fora, e de novo de fora para dentro. É um peso muito estranho. Quero fugir. Claro, no fundo não aguento meu próprio peso. E o movimento de se lançar e se enovelar novamente cansa. Cansa dolorosamente. Mas para onde fugir? Há, confesso, uma circularidade, como num jogo de espelhos. Circular. O narciso olhando sobre sua imagem projetada na água? Pode ser. Acho que nunca havia realmente sentido, visceralmente, essa metáfora. Movimentos repetitivos. Como se fosse um código de computador, programado para executar, ad nauseam, a mesma rotina. Que bom deve ser um código de computador. Sem consciência. Apenas a repetição, a repetição, a repetição até que algo externo lhe impeça de continuar. Repetição. E você consegue fazer muita coisa sem sair do lugar. Você consegue pensar muita, mas muita! coisa, sem pensar. Basta que se lhe apresente uma imagem, um pensamento, uma “tese” infantil gravada na ponta de uma flexa enterrada na sua carne. Uma infecção. Pois uma infecção nada mais é do que um organismo tentando se reproduzir (replicar, duplicar, repetir), como se os recursos fossem infinitos, e outro organismo tentando impedir isso de acontecer, mesmo que, no processo, este último organismo acabe prejudicando a si próprio. Ambos os organismos…agindo e reagindo conforme foram programados. Ambos lutando, não por alguma utopia abstrata, mas meramente para se manterem exatamente como são. Mas voltando ao novelo de linha. Há uma saída, uma grande e enigmática saída. Quando saio da repetição, ou quando pego essa repetição (que está “dentro de mim”) e saio na rua, e, de certo modo, sinto o “mundo”, algo ocorre. Um sinal de vida se enuncia. É como uma semente no chão, enterrada sozinha, no escuro úmido. Quando ela é irradiada pelo sol, “algo” a faz querer sair da terra. Algo a faz se mexer, a romper a unidade de seu próprio “ser”, fechado e encapsulado. Eu sinto a mesma coisa. Mas, ao mesmo tempo, fico com um enigma: que força é essa? Como posso me abrir a ela? Para onde ela poderia me levar? O que preciso fazer? Na escuridão do solo, na clausura da casca da semente, há um sinal de vida, um despontar sobre o desconhecido, para cima, para a luz, para o vento, para o aberto. É como um cheiro de comida gostosa no ar, que deixa um gato intrigado e lhe sugere uma direção. Mas, para onde?

P.S.: já ficou preso num looping, ouvindo a mesma música repetidas e repetidas vezes? Por que fazemos isso? O que queremos repetir, no fundo?

O tamanho

Considerando todas os planetas e estrelas, a parte observável do universo, e toda a dark energy, tudo o que não é visível no universo, a quantidade estimada total de energia que ele contém é equivalente a:

[67 000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000 toneladas de TNT; ou 67 trilhões trilhões trilhões trilhões e trilhões de toneladas]

Esta seria também a medida de quanto o universo pesa.

Enquanto isso…

Estamos preocupados com quanto nós pesamos. Com o quanto temos no banco. Com o número de sapatos que temos. Com o quanto nossa vida, de um modo geral, vez ou outra, ou sempre, parece excessivamente pesada, difícil de carregar.

Proibido fumar

Creio que tenha sido Paulo Maluf, quando era prefeito da cidade de São Paulo, quem tenha decretado uma lei proibindo as pessoas de fumar em locais fechados. A revolta foi tanta que até uma música surgiu tratando disso. Na época, eu estava provavelmente entrando na adolescência. Desse período e fato, hoje me lembro só de uma estranha sensação. A coisa não fazia muito sentido para mim, à época. Não porque tivesse alguma opinião sobre os malefícios do cigarro ou sobre “fumantes passivos”. Nada disso. Só achei o assunto coisa de gente esquisita. Bom, vai ver é exatamente isso que crianças e jovens adolescentes achem hoje em dia de toda essa conversa de políticos ou profissionais da atuando em saúde pública.

Pulando para os dias atuais, acho que temos uma nova epidemia. Mas não de cigarro. Antes, você andava pela rua e era fácil ver pessoas fumando. Muitas delas, dependendo de seu local. Até comerciais de cigarro havia na TV aberta. O cigarro era associado com liberdade de escolha, status, ousadia, especialmente por parte das mulheres.

Nossa epidemia atual, que tem o diferencial de incluir até mesmo crianças, é a do celular, do smartphone. Basta você sair de casa. Pode pensar no lugar que for. Ali haverá quase 100% de pessoas mergulhadas em seus aparelhos. Estes dias, vi uma pessoa na garupa de uma moto segurando seu celular e, sei lá, falando com alguém no aplicativo de comunicação, ou ajudando o motorista a se localizar (olhando no mapa apresentado pelo celular). Se você for na praia, lá estarão eles. No supermercado, idem. Durante uma reunião, claro. Na sala de aula, infelizmente. No médico, então, aí é certeza quase absoluta de encontrar pessoas atarracadas com seus aparelhos.

E sabe o que é interessante? Bom, da mesma forma que no final dos anos 1980 e início dos 1990 ninguém achava estranho outros fumando…dentro de um avião!, ou em um restaurante fechado… hoje também a maioria parece não notar ou então se importar com essa nova epidemia. Inclusive, até mesmo riscos para a saúde o celular pode provocar – por certo, e falo isso por experiência, para os olhos. Para não mencionar o impacto sobre a atenção.

A situação é tão bizarra que, vez ou outra, leio matérias de jornalistas que fizeram algo absolutamente impensável, oh!, ficar uma semana sem celular/internet. Hoje mesmo ouvi uma matéria dessas. O casal resolveu chamar até a operadora de internet para vir desconectar o modem. E então a criatura passa a descrever o que seria a reinvenção da roda: como fazer compras, como chamar o médico, como encontrar um endereço, etc.

Existe, ou existia, um campo de estudos sobre cognição expandida. Segundo alguns dos insights de que me lembro dessa perspectiva, nós tendemos a externalizar partes que antes eram de nosso próprio cérebro/mente para máquinas ou objetos externos. Há nisso, é claro, o potencial de uma simbiose proveitosa para o humano. Por exemplo, contar é muito mais fácil com um pedaço de papel, ou mesmo com os dedos, do que apenas com cálculos mentais (pelo menos, para a maioria da população). O papel, a caneta, o lapis, são externalizações que nos permitem conduzir nossas operações matemáticas. O cérebro em perfeita harmonia com o resto do corpo, e com a concretude ao redor.

Similarmente, no início, éramos forçados a manter uma agenda de telefones. Um caderninho, o que fosse. Os primeiros celulares, mesmo sem grande memória como as dos aparelhos de hoje, já nos havia permitido dar um primeiro salto do caderninho para o chip. Mas a evolução desses aparelhos foi tamanha que hoje eles representam o que certamente um computador da NASA representava no passado, ocupando às vezes prédios inteiros. O ponto que gostaria de fazer não é o da nova estética que está sendo criada pelo smartphone, como quando estamos falando com alguém e esse alguém está, em vez de prestando atenção em nós, falando com outro ser humano quilômetros longe. Não. Falo dessa etapa, ainda desconhecida em termos de suas consequências, em que externalizamos praticamente toda nossa vida mental, inclusive nossa sociabilidade, para um aparelho – que, supostamente, nos coloca em contato com outros seres humanos.

É como se estivéssemos numa imensa nuvem de fumaça, mas desta vez não literal, como estavam as pessoas na época em que fumar em público e espaço fechados era cool. E, repito, agora usando uma expressão de George Carlin: nobody seems to notice; nobody seems to care.

Mais do que 100% de identificação

Amei o vídeo abaixo. E não falo “amei” no sentido coloquial que às vezes as pessoas usam essa expressão, no fundo querendo dizer nada. Eu realmente amei, de paixão, o vídeo (o texto, na verdade). Até hoje, nessas explorações aleatórias que faço pela internet, não havia achado uma peça que representasse exatamente o que estou vivendo já faz algum tempo. Lembro de que, em outra crise profunda que tive, “descobri” Schopenhauer e Nietzsche. Eles me ajudaram a atravessar uma dor profunda, dando-lhe algum sentido. Agora, estou em uma nova situação de dor profunda (e sem encontrar sentido), a mais longa que já tive, um inverno longo, longo, mais longo de que tenho lembrança. O tipo de inverno que deixa tudo branco, indistinto, indiferente, gerando, como está no vídeo, calos que me impedem de sentir, ao toque, o mundo e suas texturas. E a maior agonia é que, até aqui, não havia encontrado alguém para dialogar – uma pessoa, ou um autor morto (ou vivo, não importa). O vídeo, e seu texto, não chegam a ser o interlocutor definitivo, mas é o mais próximo com certeza. Engraçado que eu, sempre aos fins de ano (quando, normalmente, estou de férias), acabo citando produções desse canal. Mas este, poxa vida. Gostaria de traduzi-lo e ampliar seu alcance, mas acho que pode haver restrições de direitos autorais. O vídeo, porém, tem legenda em inglês, o que ajuda a disseminá-lo. Mesmo assim, cito alguns trechos a seguir, em tradução livre. É uma peça de arte, sensibilidade, precisão e amor.

Quando você era criança, você era cheio de entusiasmo e sensibilidade. O mundo é pequeno, e seus olhos são grandes. Mas quando você vai envelhecendo, tudo se torna maior, e você praticamente fica do mesmo tamanho – no máximo ganha uns centímetros. O caos, a complexidade, e a impossível obscuridade do mundo te cercam e te tomam à medida em que seu senso de significância e segurança diminuem até virarem um minúsculo ponto. Você segue adiante, segue o fluxo. Você faz coisas, realiza coisas, você obtém coisas. Mas nada nunca mais resolve a questão – aquela inquietação profunda, agitação e desolação. Você se acha sempre no mesmo lugar, independentemente do quão forte você tente ou longe você vá. Pessoas queridas morrem, corações se quebram, coisas horríveis acontecem – você percebe cada vez mais as coisas horríveis que poderiam e vão acontecer. Tudo se torna um pano de fundo esfumaçado para os implacáveis problemas do dia-a-dia.

Finalmente, você aprende a como lidar com tudo isso. Você se torna anestesiado. Indiferente. Você faz de tudo para que nada realmente te afete. Não é uma decisão consciente. Você nem se lembra de tê-la tomado. A vida dói ao toque, e então, obviamente, você para de segurar nela com tanta força. Agora, quase nada te afeta muito, mas você também não sente muito mais as coisas. Não é exatamente apatia – pelo menos não no sentido tradicional dessa expressão. Não é exatamente depressão. É alguma outra coisa; alguma coisa entre ou externa a esses termos. Não é um sentimento de que você está em um tipo de areia-movediça, mas muito mais o sentimento de que as coisas estão “okay”, enquanto você está sentado sobre a areia de uma linda praia.

[…]

No fim, a vida move em estações. Não é sempre que estamos energizados ou animados ou principamente sintonizados com o bem. Não conseguimos ser sempre afáveis e receptivos. Nem sempre conseguimos ser brilhantes e transbordar vida. Mas, assim como o solo coberto com neve em uma paisagem invernal contém a habilidade de produzir vida quando a estação muda, assim também você tem a habilidade de fazer germinar uma nova vida quando o momento chegar. Você ainda tem seu mundo interno, suas faculdades, sua perspectiva, sua criatividade, e sua habilidade de adaptar e resistir. Se você não esteve sempre aqui [nessa situação], você provavelmente não estará sempre nela. E mesmo se você estivesse, você ainda conseguiria se adaptar, e você vai ficar okay. Seja em estações de luta, ou em uma experiência de uma vida inteira sentindo a frieza do universo, por meio de sua perspectiva e escolhas individuais, você ainda será capaz de te propiciar conforto, significado, o calor da fortitude invencível. Talvez tudo que tenhamos seja isso – o verão invencível dentro de nós -, mas talvez isso seja tudo de que necessitamos.

Nota. Vale o destaque: “No meio do inverno eu, finalmente, descobri que há em mim um verão invencível” (Camus).

Ansiedade

Para mim, e apenas para mim, qual o significado de ansiedade? Vou tentar captar algumas coisas que, da minha perspectiva, seriam a essência dessa palavra. Vou evitar, tanto quanto eu puder, de usar termos ou conceitos ou ideias de alguma corrente da psicologia, um hábito meu. O de racionalizar.

Um contexto em que ela surge é quando há uma única opção a alcançar, e uma em que minha posição não é assegurada. Vejamos um exemplo. Suponhamos que eu tenha entre 5 e 15 segundos, no máximo, para conseguir apertar um e outro botão do teclado do computador e conseguir me inserir em algo, atingir um resultado que é exato, matemático. Ao mesmo tempo, incontáveis outras pessoas estão tentando a mesma coisa, no mesmo tempo e com os mesmos números de botões. Eu posso estar sozinho em casa e ainda assim essa situação coloca em andamento meu sistema simpático. E, ato contínuo, minha atenção fica amedrontada e cometo erros que, em outras circunstâncias, não cometeria, ou o faria menos estupidamente.

Mas, ao não conseguir o resultado descrito na situação acima, aí é que tudo começa. Sou tomado por uma estranha sensação. Neste momento em que escrevo, não consigo achar uma palavra para representá-la. Mas consigo ver alguns de seus sintomas. Por exemplo, quando não consigo alcançar o resultado esperado, procuro resultados substitutivos. E, com isso, acabo inclinado a tomar decisões prejudiciais ou menos favoráveis para mim mesmo. É como se meu limiar de tolerância ou exigência diminuísse e, como numa forma de punição, eu aceitasse – na verdade buscasse – uma posição inferior àquela que eu teria caso o resultado inicial desejado fosse alcançado. É como se, ou o ideal acontece agora, ou mais tarde não vale mais. Prefiro um resultado substitutivo que sirva como a antecipação, graças à força de meu próprio controle, de algo ideal/desejado que não consegui agora.

Também fico inquieto. E surge uma sensação de tudo-ou-nada. Até mesmo de catástrofe. Procuro formas de dissipar essa inquietação. Faço várias coisas. Algumas vezes, resolvo comer em excesso, embora isso seja raro. Agora imagine que a situação descrita no segundo parágrafo ocorra todo dia. E considere que, mais dias não que sim, eu não consiga o que desejava, naquelas circunstâncias de concorrência. Aí vai havendo um crescendo, um acúmulo, de tensão. Vai se avolumando uma ideia dolorida acerca de meu valor. E aí surge novamente a ansiedade. Seria, ao invés, desespero? Bom, esta última palavra já é algo próximo de um conceito (eg., Kierkegaard), e expressei meu desejo de não adentrar por conceitos.

É muito fácil colar em um conceito para evitar de pensar. Admito que faço isso. Não é interessante que conceitos possam ser usados para que não pensemos? Sinto estar mesmo entrando na estrada da racionalização. Antes de sair dela: conceitos são o que, exatamente? Bom, em muitos casos, conceitos são vozes. Essas vozes têm respaldo na realidade, digamos, em alguma evidência empírica? Às vezes, sim; noutras, são só vozes de outras pessoas, criadas por seus pensamentos, suas experiências e sua coragem de criar.

Voltando à experiência. O que eu tenho até aqui? Posição não assegurada, em contexto de concorrência ou ganha-perde (sem meio-termo). Resultado não alcançado. Desejo de controle (ou perda de controle: veja a reação fisiológica). Obsessão por querer que algo aconteça agora. Inquietação.

Seria o corpo uma forma de entender isso? Talvez. Pensei nisso porque, nos momentos de ansiedade, o corpo me entrega. Ele não “performa” como esperado. Ele vai praticamente na contra-mão do que o pensamento esperava. Adianta o pensamento “comandar” o corpo? Respiração, meditação? Aliás, não haveria algo estranho justamente aí, no comando/controle do corpo? Pois, a rigor, tirando o sistema nervoso central (SNC), o que é o corpo? Um sistema organizado, interconectado, que age por meio de sinalizações elétricas/químicas e hormonais. Orgãos e glândulas. Receptores e decodificadores intracelulares. Ação-reação, física, química e, óbvio, biologia.

Não seria justamente o meu SNC, aka minha mente, que, no fim das contas, impõe uma ridícula parnafernálhia de controle sobre o que ela acha que pode controlar, o corpo (pelo menos o corpo ainda saudável)? Aqui poderia entrar pelo caminho de outra teorização, uma relacionando crenças (mentais) e efeitos corporais (mecanismos de tradução entre estímulos, chegando ao comportamento observável). Mas também não vou por ele. Sabe por quê? Bom, primeiro porque não quero racionalizar, como já disse. Depois, e talvez mais importante, porque o SNC e o sistema nervoso periférico (SNP) desenvolveram-se em relação a um ambiente.

Mas vamos mais além disso, pois não penso só no ambiente natural (e tampouco no mental). Quero ir mais além: por que diabos uma criatura impotente, como é o animal humano, não teria pavor (o que é bem diferente do medo de um predador, digamos), não se sentiria esmagado pelo simples fato de estar vivendo aqui na Terra e sabendo quem ele é de fato? É o único, o único!, animal que de fato sabe quem ele é no plano geral do ecossistema terreste e, por enquanto, na parte do cosmos que chegou a conhecer. Então, parece ser parcial (para dizer o mínimo) a teoria puramente adaptativa de explicação do fato de um sistema biológico ter se formado em reação a um meio que lhe era, efetivamente, hostil, e que agora está em um outro ambiente, e tudo que é “hostil” esta na cabeça da criatura. Isso seria pura e simples psicologia, e há muitas, mas muitas, outras camadas na complexidade do vivente. À psicologia, especialmente a de tipo cognitivo-comportamental, devemos deixar a ansiedade e o medo. Já é muito. Mas é absolutamente pouco também.

Deixe-me voltar ao eixo para fechar isso. Creio conhecer bem o mecanismo pelo qual o sistema simpático é ativado. O ponto de interesse é o automatismo com que ele acontece, quanto mais porque, em geral, não corro risco de vida algum – exceto risco narcísico? OK, de novo, aí está um conceito. Aliás, outro conceito para explicar o tal automatismo seriam as crenças estruturantes e também automatizadas. Mais racionalizações! Há, como eu já disse, talvez ou sobretudo um “risco existencial” também. Mas isso todo mundo tem, rico ou pobre, e nem por isso estão aí ansiosos (brincadeira, pois é claro que muitos, mas muitos!, realmente estão ansiosos por aí). Se você tirar qualquer sistema metafísico da jogada, é claro que está todo mundo exposto a esse verdadeiro, absoluto risco existencial real. Portanto, no campo mais amplo da reflexão, não seria um começo aceitar esse risco, depurá-lo das experiências banais cotidianas, e entender onde concretamente eu estou, sou e posso fazer? E eis que aqui deixo outra imensa racionalização, mas que pode ter alguns componentes de verdade. Haveria, pois, o pavor/terror (plano existencial), e haveria a ansiedade/medo (plano individual, cotidiano).

Enfim, estou só tateando, como se tivesse com um pauzinho fazendo desenhos na areira. Só me ocorreu colocar o corpo em questão, como uma hipótese. Mas por que ela surgiu, essa hipótese? Por que desejo escrever algo? Olha aí o pensamento novamente (a tela em branco “exigindo” ser preenchida, como se houvesse alguém ou algo aqui a me exigir qualquer coisa em meu próprio blog). Por isso pensei no corpo? Sim, talvez. Ou foi só para preencher o espaço mesmo. Engraçado, pois agora mesmo chegou uma informação que me deixou ansioso (e eu sei que nada que eu fizer vai mudar o curso que já está tomado…). E quem reagiu primeiro? Meu corpo. Acho que essa é a deixa para eu parar por aqui.

Fragmentos dispersos, 7

Travas mentais. Tive um insight em que penso ter resolvido a questão de que tratava no post anterior, sobre o impacto de um dia de trabalho. Sei que isso não é nenhuma originalidade (veja o conceito de “compartimentalização” por aí), mas pouco importa, desde que funcione. E, até aqui, tem funcionado. É algo bem simples: basta colocar uma espécie de trava na mente. Um tipo de comando em que você se auto-impede de trilhar alguns caminhos de pensamento. Por exemplo: ao chegar em casa, basta colocar uma trava no sentido de impedir o pensamento de ficar remoendo o dia, reensaiando formas de agir diferente nas situações a, b ou c. O dia passou, o dia acabou, ele não existe mais. Todas as impressões desse dia passam a ser fragmentos sem sentido de coisas já vividas. Não podem ser revividos. Não podem ser reproduzidos. Não tinham, para começo de conversa, nenhuma finalidade ou objetivo ou propósito de seguir determinado curso. Foram coisas aleatórias. Umas, agradáveis; outras, nem tanto. É como tomar uma chuva. Você chega em casa e logo troca de roupa. Não fica sentado no sofá com as roupas molhadas pensando que deveria ter levado um guarda-chuva. Você simplesmente chega em casa, tira a roupa, o sapato etc. molhados, toma uma ducha quente e toca a vida. Você nem pensa mais que tomou uma chuva no caminho da casa. Por que não poderia ser a mesma coisa para as atividades e os (maus) encontros durante um dia?

Peak performers. Ouvi um gestor de um grande fundo de investimento falar que ele estava profundamente interessado em “casos exepcionais”. Deu o exemplo de uma cantora norte-americana que fez um sucesso estrondoso com seus shows em 2023. Tal gestor diz ter levado a filha para o show dessa cantora, meio que dando a entender que, como pai, gostaria que a filha aprendesse “com a melhor”. É interessante. Um acontecimento que nunca me esqueço, duas décadas atrás, é quando tive minha primeira experiência como “terapeuta”. Foi durante o estágio do quinto ano da faculdade de psicologia. A paciente tinha uma questão com mulheres em revistas de moda. Dizia achar aquelas mulheres verdadeiros modelos, e que se ressentia profundamente por não ter o rosto, o corpo, o talento daquelas mulheres. Isso de algum modo me inquieta até hoje, essa secular tendência de as pessoas olharem apenas para os top performers, para os extremos de sucesso em cada campo artístico, profissional, pessoal. O tal gestor de fundos de investimento quer que sua filha só olhe para cima, só olhe e só intencione o melhor. Não, não, o melhor não. O excepcional. Todo o resto é só isso: resto e mediocridade. Não haveria nada a se aprender com aquela zona, em um gráfico de distribuição normal, que fica entre os extremos. Quer dizer, nada de bom com os 68,2% do meio (figura; [fonte]). As exigências estão ficando mais rígidas, e agora estaríamos apenas interessados nos 0.1%. Nos anos 1990 alguns psicólogos e sociólogos franceses chamavam o fenômeno de culto da performance ou da excelência. De lá para cá, o fenômeno só tem se intensificado. Não é interessante? Quanto mais o mundo caminha para números surreais (atualmente, mais de 7 bilhões de humanos vivem, e bilhões mal ganham o suficiente para ficarem vivos), mais vamos puxando para o 00000000000.alguma coisa do lado direito da figura abaixo?