Experimentos mentais, 1: a bala

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Estavam bem no momento de transição entre a noite fria e a manhã ainda em compactos de neblina. O comum entre eles era que ambos estavam na floresta. A diferença entre ambos é que um tinha um revólver e o outro tinha um crânio prestes a ser perfurado. Mas a diferença mais radical entre ambos era que um teria um dia (talvez semanas, anos) a mais para se perceber como pessoa no mundo, e o outro não tinha mais do que alguns poucos minutos. De fato, mal esse pensamento se formou e logo ele estava de joelhos, costas voltadas contra o outro, nuca contra o cano da arma. Ele poderia estar com os olhos abertos, ou poderia estar com os olhos fechados. Qual maneira seria melhor de terminar? Com os olhos abertos, a última lembrança seria a da floresta: a imagem de árvores, folhas, um verde transitando para o azul infinito do céu, novamente sendo aspergido de luz pelo sol. De olhos abertos, talvez ele ficasse simplesmente mesmerizado, como se estivesse num navio, olhando por uma janela, e vendo uma ilha passar, antes de rumar novamente para o infinito do mar. Com os olhos fechados, poderia ver aquele ponto vermelho formado quando a luz atravessa a pele que cobre os olhos, refletindo nos minúsculos capilares, irrigando tudo de vermelho. Se está vermelho, pensaria ele, então ele ainda estava vivo. Com os olhos fechados, talvez predominassem as lembranças de seu passado, suas memórias. Mas ainda havia seu corpo. Ele poderia, seja com olhos abertos ou fechados, sentir a neblina pela última vez, ou pela primeira vez, tão distante tinha estado de simplesmente sentir as coisas a seu redor, como costumava fazer na infância. A bala atravessa seu crânio, desarranjando tudo que encontra pelo caminho, cortando pele, osso, membranas, primeiro dizimando sua capacidade de ver (lobo ocipital), depois destruindo toda a misteriosa e complexa arquitetura do órgão supremo, seus ventrículos, suas dobras, as fibras que encabeiam e conectam toda a estrutura e suas partes, sua intrincada rede de vazos, finalmente saindo pela frente, obliterando para sempre seu senso de self, sua capacidade de pensar e se separar do mundo, mesmo nunca deixando o mundo. A descrição foi em câmera lenta, como se a bala fosse passando de compartimento em compartimento, como alguém saindo de um cômodo da casa para outro, apagando as luzes no caminho. Na verdade, tudo se apagou num instante de uma violência atroz e estúpida. Um pedaço de chumbo e um pedaço de carne envolta num casulo calcificado. A partir desse momento, nada mais importa para esse ex-ser. Toda a beleza, todo o potencial de descobertas, toda a curiosidade permanentemente insuflada pelos enigmas do mundo desaparecem por completo. O tempo, para esse ex-ser, não tem mais nenhum sentido. O tempo continuará a ser o que sempre foi e será: infinito. Não há mais nenhum plano, como se ele estivesse vendo as imagens formadas por um drone se movimentando ao redor do eixo de seu corpo, registrando de cima. Não. Isso é coisa para o cinema. O cinema não existiria se não houvesse essa ilusão, essa ilusão de um olho que a todo momento precisa estar vendo alguma coisa. O cinema e sua dependência do olho jamais será capaz de penetrar na escuridão de um cérebro destroçado. E, por conseguinte, os telespectadores jamais serão capazes de parar de enxergar e, por fim, como sempre ocorre, parar de sonambularem, pulando de imagem em imagem. Sonhamos, sonhamos e sonhamos. Nenhuma bala será capaz de interromper esse delírio.

Absurdos cotidianos

Quando várias pessoas fazem a mesma coisa, e essa coisa chega a ser uma coisa maluca, elas têm noção da maluquice? Viver em sociedade é, em parte, compartilhar de uma loucura coletiva. Mas disfarçada, mascarada, deturpada. Assim, no decorrer de um dia, anestesiadas pelo repetitivo, as pessoas vamos passando por situações absurdas, testemunhando coisas absurdas e fazendo coisas absurdas das quais sequer temos a menor consciência. Não dá tempo. Não é preciso. É tudo óbvio. Você tem medo do que poderia encontrar se parasse para pensar? Ops, “pensar”…

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Pois veja. Hoje eu estava na fila de uma quitanda. Muitas frutas ao redor. Como consequência, algumas abelhas. O cara atrás de mim, distraído, identifica uma abelha. Ele, tão natural quanto o sol nascendo e se pondo, dá uma petelecada e mata a abelha. Em seguida, pega o celular. Liga para alguém. E diz: “Ei, posso ir almoçar aí com vocês hoje? Eu não como muito, não se preocupe”. Aí fiquei pensando: seria essa uma pessoa confiável? Honestamente, acho que não. Nunca se esqueça de uma coisa: o diabo está nos detalhes.

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Situação de grupo. Estou no meio de algumas pessoas. Há uma sala. Na porta, a identificação do sentido daquele espaço. Então, há certa compreensão de que o lugar é “sério”, “científico”. Aqui e ali, alguns elogios, falas mansas, amistosas; e sobretudo, há sorrisos. Bocas se contraem, dentes aparecem. Sons estridentes sobem ao ar, rodopiam, e mal têm tempo de se dissiparem e logo aparecem mais sons, mais estridência. Eu só vejo essas bocas, esses ruídos. Pessoas mortas rindo juntas, desconectadas de suas bocas. Seus espíritos estão em lugar muito distante – mas, infelizmente, suas bocas estão aqui, ruidosas, falsas. Quando a mente de uma pessoa coincide completamente com o que está de fato acontecendo chamamos isso de “gozo”, ou, em alguns casos, de orgasmo (fusão mente/corpo). No resto do tempo, imposturas. Somos como multidões de insetos cuja existência apenas se justifica quando, aleatória e singularmente, ocorre uma junção entre movimentos físicos e uma das n possibilidades (infinitas) de combinações geradoras de uma outra vida.

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Do nada, enquanto falava, olhei para minha mão direita. Para o braço direito. Estranho. Do nada, o pensamento que tive foi: uma mão de um cadáver. Não me parecia uma mão, um braço, vivos. Pálidos. De um branco parecendo leite velho. É engraçado porque vi a mão e o braço como pertencentes ao mundo, não a mim. O eu, essa unidade plena, simplesmente não reconheceu uma parte do corpo como sendo dele, ou melhor, ele. Um escárnio disparou imediatamente no espaço abstrato do eu. Ora: que mão cadavérica é essa? Que desgraça!

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A cada interação, um amontoado de análises póstumas. Ajo num ambiente, falo algo, “ensino” algo. Crio uma narrativa. Depois, quando já estou em casa, repasso a coisa inteira. Me atenho a detalhes. Que diabos de vida é essa? Há uma audiência de carne e osso diante de mim mas é como se eu estivesse interagindo com espectros que já estão todos determinados no palco da minha consciência escrupulosa. Quem é o objeto do escrúpulo? Eu! Estou falando para mim, depois me avaliando, me ponderando, me retificando. Mas esse é apenas um pedaço ínfimo do que realmente aconteceu. Pois pense na imensidão de coisas que estavam passando pela mente das outras pessoas que me escutaram. Cada uma delas pode ter pensado coisas completamente diferentes, se atentado para detalhes ínfimos que me escaparam completamente. Talvez, no fundo, o objetivo seja justamente esse: ao focar nos meus detalhes, desprezo a constelação de infinitos outros possíveis. No fundo, um encontro (uma aula, que seja) é extamente isso: um encontro de infinitos.

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É assim. Performo no ambiente. Lanço uma “grande sacada” e espero, emocionado até, uma ressonância, uma confirmação. Me empolgo com o que lancei no ambiente. Acho-o mágico, transformador. Até sinto calafrios quando lanço a coisa. É como se fosse o lançamento da resposta para um enigma qualquer. Porém, tudo está certo, tudo está resolvido…só faltou “combinar com os russos”. O outro não entendeu nada do que eu esperava que ele entendesse. Frustração? Sim, mas também vergonha. É como se, calado na maior parte do tempo, eu resolvesse me levantar, ir até a margem do mar, numa manha fechada pela neblina, e concentrasse todo o meu ser, toda a razão de estar vivo, e gritasse a grande sacada. E então, nada. Os navios ali parados, cheios de pessoas, escutaram um ruído, mas não ouviram nada. Afinal, por que ouviriam? O que há de novidade num ruído qualquer numa manhã qualquer num dia qualquer? Eu, que gritei, me sinto como um membro de alguma espécie cujo ápice da vida fosse esse grito. E que, sem retorno do mundo, ou independente desse retorno, agiu como deveria. Só que, diferente desse membro dessa espécie, eu esperava por uma conexão, por uma fusão total, pela qual toda a espera, toda a concentração de meu ser na consumação desse grito, desse ruído produzido, enfim gerasse algo, me arrancasse desse desespero de ter de gritar.

Fallen Angels

A música da esplêndida cena final do filme de Wong Kar-wai (1995).

Fim do mundo e propósito do trabalho

Assisti recentemente uma série animada, Carol and the end of the world (Netflix). Ela me foi indicada por um amigo que, como eu, estuda trabalho. O plot geral é o seguinte. O mundo está prestes a terminar. Um misterioso planeta gigante está em rota de colisão com a Terra, e acompanhamos a estória da protagonista, Carol, mais ou menos seis meses até a catástrofe.

A cada episódio vemos algo já bastante batido em produções apocalípticas desse tipo. Cada pessoa se entrega a realizar as fantasias mais malucas que você possa imaginar, e toda a estrutura societária de comportamentos prescritos é basicamente apagada. De fato, aqui também assistimos a um mundo sem fronteiras, limites, proibições, pre-conceitos, papéis esperados e assim por diante.

O cenário é de desolação: prédios abandonados, ruas vazias, um estado de quase-anarquia, só que sem baderna (o que é interessante). Uma terra pré-apocalíptica com uma surpreendente dose de convivialidade. Talvez a revolta, a desordem e a bagunça tenham ocorrido antes. Afinal, só temos acesso aos últimos seis meses. Não sabemos, pelo que me lembre, quando a realidade de que um planeta se chocaria com a Terra se tornou evidente.

Mas o áuge da série, e é por isso que a comento aqui, é o lugar que ela reserva para o trabalho. Imagine se soubéssemos que deixaríamos de existir dentro de seis meses. A última coisa que você consideraria seria trabalhar. E eis que, no meio do caos e da destruição, um prédio se destaca, imaculado, duas torres, incorporando a mais fina das engenharias de offices dos EUA.

Somos então apresentados a um escritório de contabilidade. Mais taylorista impossível. Mais impessoal impossível. Mais rotinizado impossível. Porém, é quando ela descobre esse último refúgio da corporate America que Carol se transforma. Ela parece encontrar novamente seu propósito de vida e seu sentido.

Os totens do ambiente corporativo, como uma máquina de fotocópia ou uma jarra de café, são elevados a um status de objeto de desejo para Carol. Todo o massacre da banalidade de um escritório contábil, com sua obsessão por relatórios fixados em casas decimais, é apresentado em reverso. O escritório é transformado num refúgio contra a falta completa de sentido diante de uma eminente extinção planetária. Diante de coisas grandes, como diria Nietzsche, o mais confortável é se fixar em coisas ínfimas.

Quando os gestores perguntam quem gostaria de continuar a trabalhar noite adentro fazendo hora extra, eles o fazem na forma de oferta, não de obrigação. Quer dizer, ficar de fora de fazer hora-extra era o que ninguém queria. Isso seria o desespero. Continuar trabalhando, como máquinas, era o que, paradoxalmente, fazia aquelas pessoas “humanas”. Entre aspas pois, na verdade, a robotização é criticada, e aos poucos vai sendo minada pelas iniciativas de Carol (por exemplo, ao lembrar do nome de cada funcionário). Mas aqui a robotização tem como base a incapacidade de reconhecer o fim do mundo, literalmente.

Porém, é preciso estar às vésperas do fim do mundo para se esquecer das questões fundamentais e mergulhar no trabalho, usando-o como um álibi, como um substituto, como algo que as pessoas fazem, mesmo não precisando (como na série), no lugar de fazer o que realmente importa? Pessoas que usam o trabalho como álibi são como Sísifo, quando este se preocupa com a tarefa de subir e descer a pedra, e não com o sentido mais amplo de sua própria condição: alguém castigado a esse trabalho repetitivo pela eternidade afora.

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Dois colegas e eu estamos trabalhando numa ideia que pode explicar a questão acima. Trata-se de pensar no propósito do trabalho em dois planos possíveis. No primeiro, temos o propósito NO trabalho. Aqui, o trabalho é apenas uma dentre as várias esferas de vida de uma pessoa. Ter propósito nessa esfera em particular é importante ou mesmo fundamental. Afinal, passa-se muito tempo de vida nela. No segundo plano, temos o propósito DO trabalho. Aqui, trata-se de uma dimensão mais geral, envolvendo não um trabalho em particular (um emprego, uma ocupação, uma atividade), mas o propósito de ter de trabalhar no fim das contas.

No caso da série, o que vemos é uma ênfase no absurdo que é tomar o propósito DO trabalho de modo puramente automático. O trabalho é um álibi porque ele, em sua globalidade, apaga qualquer outra esfera de vida da pessoa. No caso da série, essas outras esferas são obviamente reelaboradas, pois diante da morte (sua, mas também do planeta inteiro), quais são as prioridades? Qual esfera de vida deveria tomar a dianteira? Realizar aqueles “projetos” que nunca foram realizados porque nunca havia tempo, já que só se trabalhava? Ou simplesmente mergulhar no niilismo, do tipo: Já que o mundo vai acabar, ‘que se dane tudo’?

Obviamente, o fim do mundo é só uma metáfora. Pois, no plano pessoal, por mais improvável que possa parecer no momento, nossa vida pode acabar a qualquer instante. Num piscar de olhos. A morte não é um “evento” solene, algo que só acontece após uma longa preparação, tipo uma festa de casamento ou uma formatura. A morte é banal, assustadoramente banal. Então, ela pode acontecer sem a menor pompa. Dessa perspectiva, é como se todos nós estivéssemos esperando pelo “fim do mundo”. É que não pensamos nisso. Claro, isso é até importante para nossa saúde mental.

O propósito DO trabalho é uma dimensão fundamental do significado do trabalho. Se as pessoas parassem realmente para pensar sobre ele, em vez de só se preocuparem com o propósito NO trabalho (“Ah, hoje tenho que terminar aquele relatório”, “Meu chefe me reconheceu hoje”, etc.), poderíamos ter uma mudança societária ampla. Na verdade, eu até acho que as pessoas pensam nele, só não de modo totalmente consciente. Uma forma de indicar que elas intuitivamente pensam (ou sentem) é o número cada vez maior de sofrimento, adoecimento, suicídio, apatia, desmotivação e depressão no trabalho. No fundo, tudo isso é sintoma, a mania de coisas não resolvidas de verdade voltarem a assombrar as pessoas.

Realismo não-humano

Gosto de divagar. Acho que você já deve ter percebido isso a esta altura. Pois bem. Enquanto estava correndo estes dias, um pensamento ficou passando pela minha mente o tempo todo. Na verdade, dois pensamentos. São duas frases que li em algum lugar e que, por alguma razão, acho que têm relação uma com a outra.

A primeira é a seguinte. Se uma árvore cai na floresta, mas não tem ninguém (nenhum humano) para ouvi-la caindo, pode-se falar em som?

A segunda é esta. “Deus”, essa palavra e tudo que vem junto dela, existiria sem nossa presença (humana)? Ou foi apenas com o aparecimento de humanos que Deus começou a ser considerado? Esta última eu lembro a fonte: o escritor Jon Fosse. Não é uma citação literal, mas a ideia é mais ou menos essa mesmo.

Em ambos os casos, há um problema realista. Sobre o quanto a realidade (um som, Deus) é congênere com a espécie humana. Um ruído de uma árvore caindo – sem um humano por perto, o que ele seria? Digo, não a ausência de um humano em particular por perto, mas a espécie humana inteira. Se só houvesse chipanzés ao redor da árvore caindo, estes, no máximo, só procurariam não ficar embaixo dela. Obviamente, talvez não haveria associações de um ruído a um som e a uma constelação de possibilidades para esse som (eg.: por que a árvore está caindo? Qual o tipo de árvore, a julgar pelo som?). Nestas horas, lembro da minha cachorra. Quando ela está dormindo, e crianças fazem barulho na rua, é como se ela nem notasse. Como se lhe fosse totalmente indiferente. Claro, há alguns sons que são gatilhos para ela. Mas eu fico admirado com a suavidade do sono dela diante de sons que, para mim, seriam absurdamente revoltantes (tenho insônia, e parte tem a ver com a personalização extrema de ruídos).

Sobre Deus, bom, até onde sei, antes da espécie homo, não há nenhum monumento construído, nenhum livro sagrado escrito, nenhum ritual coletivo, muito menos guerra e morte por causa Dele. Animais nasciam, cresciam e morriam, e tudo ficava por isso mesmo. Aliás, por cinco vezes a vida foi praticamente riscada do mapa, de plantas a animais gigantes como dinossauros. A Terra, durante essas extinções em massa, já foi acertada por meteoros, sangrada de dentro por lava, chocada contra sua própria pele por conta de placas tectônicas em deslocamento na superfície, chuva de ácido e todo tipo de desgraça. Diante dessas catástrofes, nossos furacões e tempestades não chegam a ser nem um resfriado para um planeta com bilhões de anos e, portanto, uma longa ficha médica. Não creio que nenhum desses animais, no nível que fosse de suas capacidades sensitivas, tivessem cogitado que tudo aquilo que lhes acontecia era por causa dos “castigos” de um Deus irritado com a fraqueza espiritual desses seres. Eles simplesmente se foram para sempre. E se foram na ignorância, pois viviam no realismo da “coisa em si” (seus corpos, a Terra).

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Com o “giro subjetivo” na filosofia, da antiga para a moderna, o sujeito (humano) passou a ser a fiação do conhecimento. A subjetividade é uma espécie de base epistemológica fundante, por meio da qual a natureza é filtrada. A justificação do conhecimento passa pelo sujeito. Quando digo ‘sujeito’ não penso em uma pessoa de carne e osso. Mas em um tipo de plano. Como disse uma vez o filósofo Richard Rorty, é óbvio que havia ovos de dinossauros antes dos humanos (algo assim, me perdoe a paráfrase). E, obviamente, tais ovos não tinham relação causal nenhuma com humanos, até porque nem existíamos. Porém, tais ovos, hoje com nós humanos por aqui, “são” isso: ovos. E sabemos, a partir de vários vestígios deixados por aí, os tipos de ovos que existiam, a relação desses ovos com o tipo de animal, e assim por diante. Quer dizer, eles continuam a ser as mesmas “coisas” que existiam antes de estarmos (humanos) por aqui. Mas eles, paralela e incomensuravelmente, são partes de narrativas que nós humanos construímos e que integramos em sistemas de crenças, relações, significações.

Quer dizer, ao mesmo tempo, “ovos” são ovos (com o sujeito na jogada) E são “coisas em si” independentes de humanos. A finalidade de denominá-los de “ovos” (deve haver alguma raíz latina ou grega por detrás) é baseada em seu propósito: classificá-los, estudá-los e, no final, manipulá-los tendo em vista objetivos humanos. Ao passar pela “subjetividade”, os ovos são subjetivados para dentro (para a cultura e usos humanos; eg.: ovos de páscoa), e objetivados para fora (para a produção de frangos, por exemplo – isto é, para uma mudança concreta na coisa em si).

Portanto, tanto o som como Deus, de acordo com esse raciocínio, poderiam ser ambas as coisas. Primeiro, coisas-em-si; segundo, objetos, no sentido de se oporem (em relação dialética, em que um depende do outro) ao sujeito (sujeito<>objeto). No caso de Deus, porém, você já deve imaginar a complicação, pois, para começar, não o vemos (não há imanência). A menos que se considere Deus como “tudo o que há” – uma espécie de “transubjetividade” sobre a qual assenta a própria condição do Universo. Quer dizer, em escala infinita, a mesma função desempenhada pela subjetividade na construção do conhecimento humano.

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É sabido que Kierkegaard desenvolveu sua filosofia ao redor de uma explicação racional para a questão divina. Por mim, termino com uma ideia simples dele: a de salto. Pois pode ser disto mesmo que se trate: de um salto do realismo humano para um “realismo não-humano”. O momento em que mergulhamos e nos dissolvemos na coisa-em-si de nossa máteria, nos igualando finalmente a ela, talvez com um pouco mais de conforto do que tem ocorrido há bilhões de anos com outros seres vivos.

Paradoxos da internet

Há não muito tempo atrás, se você estivesse na fila do banco, ou esperando por um atendimento médico, você não tinha muita opção que não aceitar o tédio da espera. Não havia opção de mergulhar no celular e desaparecer em algum reino virtual totalmente desconectado com a sua experiência real e presente: estar entediado enquanto espera. Nessas circunstâncias, e em muitas outras, o celular é um poderoso instrumento de fuga. Pense num adolescente se reunindo com seus colegas. É muito comum cada um mergulhar no celular enquanto estão junto de outros. Por quê? Porque é o jeito como adolescentes modernos estão “lidando” com a ansiedade de estar em grupo.

Isso não deveria ser surpresa, afinal, a internet como um todo tem se transformado no avesso do que psicólogos da abordagem cognitivo-comportamental denominam de “exposição” – se você tem ansiedade em relação, digamos, a dirigir, sua tendência natural é evitar dirigir. Porém, a única forma de superar essa ansiedade ou medo é…dirigindo. Assim, a exposição gradual, assistida por um terapeuta, isto é, de algum modo protegida, vai, progressivamente, expondo a pessoa a essa situação real e, com o tempo, seu medo de dirigir diminui.

Considere agora algo menos concreto como dirigir. Suponhamos que seu filho ou filha tenha ansiedade em relação a estar no meio de outras pessoas. Em vez de se expor à situação real de estar com outras pessoas, por exemplo na escola, seu filho tem à sua disposição o mar de possibilidades irreais da internet: jogar online, conversar com dezenas ou mesmo centenas de “amigos virtuais”, etc. É claro que ninguém vai sugerir que a solução é ficar longe da internet. Porém, não há como negar o paradoxo: ao mesmo tempo em que ela nos permite infinitas possibilidades (no virtual), ela acaba reduzindo as possibilidades de ações no mundo concreto.

Assim, outro paradoxo da internet tem a ver com nosso grau de liberdade. Um adolescente hoje em dia tem muito mais liberdade virtual que física. É muito mais provável que os pais de um adolescente o permita “perambular” pela internet em vez de dar uma volta no quarteirão – no Brasil, de fato, em algumas localidades é extremamente perigoso andar na rua. Mas a obsessão com segurança fez com que nos voltássemos sem muito critérios para a internet, em que pese a crescente preocupação com segurança digital e restrição de conteúdos para o público jovem.

Por fim, não menos grave é o estímulo que a internet coloca sobre a ruminação. Como muitos sabem, mensagens negativas atraem muito mais a atenção das pessoas. E a internet, repleta de semi-celebridades dispostas a praticamente tudo para ter uma audiência e faturar, mais uma vez expõe seus exageros. Por exemplo, considere a tendência recente de pessoas exporem seus traumas de infância em redes sociais. De um lado, isso serve para a pessoa “colocar para fora” essas situações, que no passado eram proibidas de vir à luz, serivindo para perpetuar o sofrimento e a discriminação. De outro lado, o paradoxo: quanto mais essas pessoas falam desses traumas, mais a linguagem “psicológica” se perpetua, quando só o que se fala é de ansiedade, depressão, violência psicológica, assédio e assim por diante. Quer dizer, a internet permite uma constante ruminação – e a psicologia já nos mostrou os riscos disso, quando a pessoa só fica pensando no seu próprio problema ou situação, e se torna incapaz de romper a circularidade. Ela se prende em um looping que só intensifica seu sofrimento.

O tédio é super importante, especialmente para um adolescente. É uma experiência de se sentir vazio. Porém, em vez de deixar o tédio “falar” e aprender com ele, nos impulsionando a experimentar, a fazer coisas diferentes, a preencher o vazio, nós o postergamos, mergulhando na internet, surfando de texto e imagem a texto e imagem, sem conexão com o mundo real e, sobretudo, com seu próprio mundo afetivo.

O compartilhamento de experiências é importante. Saber que você não está sozinho, que seu sofrimento não é só seu, ajuda na superação do problema, criando redes de solidariedade e apoio. Mas quando todo mundo amplifica seus problemas, tornando-os tão banais como em um post ou vídeo de alguns segundos em redes sociais, quando a linguagem é tão tóxica e poluente que você não enxerga mais nada além dela, então não podemos desconsiderar que a suposta solução para o problema está contribuindo, via ruminação, para sua própria existência. Não à toa os adolescentes estejam hoje vivendo uma crise de ansiedade generalizada, que vai de par em par com a popularização da linguagem psicológica em todos os recantos da internet.

É preciso haver barreiras. A ruminação da internet torna difícil a criação de barreiras. É preciso riscar uma linha no chão a fim de estabelecer os limites do falar por falar. Se pensarmos novamente nos insights da perspectiva cognitivo-comportamental, a internet está hiperinflando crenças e pensamentos, culminando em potenciais profecias auto-realizadoras. Pesquisadores têm chamado isso de “inflação de prevalência” – quanto mais consciência as pessoas têm, via narrativas plenamente disponíveis, mais elas passam a se definir e a ver o mundo da perspectiva de sintomas e diagnósticos.