Experimentos mentais, 1: a bala

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Estavam bem no momento de transição entre a noite fria e a manhã ainda em compactos de neblina. O comum entre eles era que ambos estavam na floresta. A diferença entre ambos é que um tinha um revólver e o outro tinha um crânio prestes a ser perfurado. Mas a diferença mais radical entre ambos era que um teria um dia (talvez semanas, anos) a mais para se perceber como pessoa no mundo, e o outro não tinha mais do que alguns poucos minutos. De fato, mal esse pensamento se formou e logo ele estava de joelhos, costas voltadas contra o outro, nuca contra o cano da arma. Ele poderia estar com os olhos abertos, ou poderia estar com os olhos fechados. Qual maneira seria melhor de terminar? Com os olhos abertos, a última lembrança seria a da floresta: a imagem de árvores, folhas, um verde transitando para o azul infinito do céu, novamente sendo aspergido de luz pelo sol. De olhos abertos, talvez ele ficasse simplesmente mesmerizado, como se estivesse num navio, olhando por uma janela, e vendo uma ilha passar, antes de rumar novamente para o infinito do mar. Com os olhos fechados, poderia ver aquele ponto vermelho formado quando a luz atravessa a pele que cobre os olhos, refletindo nos minúsculos capilares, irrigando tudo de vermelho. Se está vermelho, pensaria ele, então ele ainda estava vivo. Com os olhos fechados, talvez predominassem as lembranças de seu passado, suas memórias. Mas ainda havia seu corpo. Ele poderia, seja com olhos abertos ou fechados, sentir a neblina pela última vez, ou pela primeira vez, tão distante tinha estado de simplesmente sentir as coisas a seu redor, como costumava fazer na infância. A bala atravessa seu crânio, desarranjando tudo que encontra pelo caminho, cortando pele, osso, membranas, primeiro dizimando sua capacidade de ver (lobo ocipital), depois destruindo toda a misteriosa e complexa arquitetura do órgão supremo, seus ventrículos, suas dobras, as fibras que encabeiam e conectam toda a estrutura e suas partes, sua intrincada rede de vazos, finalmente saindo pela frente, obliterando para sempre seu senso de self, sua capacidade de pensar e se separar do mundo, mesmo nunca deixando o mundo. A descrição foi em câmera lenta, como se a bala fosse passando de compartimento em compartimento, como alguém saindo de um cômodo da casa para outro, apagando as luzes no caminho. Na verdade, tudo se apagou num instante de uma violência atroz e estúpida. Um pedaço de chumbo e um pedaço de carne envolta num casulo calcificado. A partir desse momento, nada mais importa para esse ex-ser. Toda a beleza, todo o potencial de descobertas, toda a curiosidade permanentemente insuflada pelos enigmas do mundo desaparecem por completo. O tempo, para esse ex-ser, não tem mais nenhum sentido. O tempo continuará a ser o que sempre foi e será: infinito.