“Viver para a pança”

É uma frase do colossal Anna Kariênina, de Tolstói. “Viver para a pança” significa viver conforme suas próprias necessidades, isto é, conforme o que é bom para mim. Outra forma de falar de egoísmo? Talvez. O personagem, quando diz isso, contrapunha ao ‘viver da pança’ o viver para o ‘espírito’, para o ‘outro’, para Deus.

Viver para a pança é viver conforme a imanência, conforme o acordar-trabalhar-gozar-dormir. O “gozar”, aqui, pode ser uma ironia, embora, para alguns poucos, sublimar seja possível e a “pança” fique em segundo lugar ou em outro lugar que não no centro do coração.

Viver para a transcendência, e o que isto significa? Claro que falar em Deus, no contexto da obra mencionada de Tolstói, talvez não seja em sentido figurado – talvez seja, realmente, Deus. Para Tolstói. Para nós, e tentando não incorrer num egoísmo metafísico (que substituiu Deus/vocação por … uma profissão, como dizia Weber), Deus é o não-eu. Mas é muito complicado porque, muitas vezes, pensamos em Deus-não-eu como um conjunto “dialético” com o eu: ainda aceitamos o eu, ainda o reconhecemos em sua singularidade e valor.

O não-eu não é, obviamente, a loucura. Talvez seja o inconsciente, para alguns; ou então outras versões de inconsciente, que, embora não metabolizado na linguagem da psicanálise, refere-se a tudo aquilo que é o não-eu e que, não obstante, “tem de” ser lidado no âmbito do eu.

Paradoxalmente, o não-eu é “condição” para o eu, ao menos em nossa subjetividade/cultura moderna.

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Post scriptum: Freud, Marx, os grandes “pensadores”; os templos magníficos, as torres e castelos ainda existentes, resquícios-relíquias de um tempo “sagrado” (quando Deus ainda estava no mundo, bem vivo, digamos assim, ao contrário de Nietzsche); as grandes idéias em suma: o que são sem a pança? Marx sem a revolução é literatura; Freud diante da “pedra do real”, insuperável e intransponível, é literatura. A literatura é a perversão institucionalizada do signo.