Seres não pensantes

A vida na Terra, desde seu surgimento, é uma série de singularidades que nunca mais vão se repetir. Neste exato momento, um número quase-infinito de eventos estão acontecendo. Destes, pouquíssimos serão lembrados, sequer reconhecidos. E infinitos eventos ocorreram no passado.

Porém, cada evento singular é passível de ser identificado, descrito, até mesmo documentado. Se houver um Deus, com certeza ele representa as infinitas possibilidades de acontecimentos singulares, e cada uma dessas infinitas possibilidades são não apenas por ele antecipadas, mas especialmente acolhidas e dignificadas.

Nos recôndidos mais distantes da história, animais circularam por esta Terra. Cada um viveu esse mistério que é a vida. Interagiram com o ambiente, extraíram deste os recursos para se manterem vivos, interagiram entre si, muitos se reproduziram, outros vagaram solitários por vastidões sem fim. Olharam para as estrelas, mesmo que delas não tivessem a menor consciência. Do Cosmos receberam os raios do Sol, laboriosamente convertidos em formas de energia por eles assimiláveis, transmitidas em uma cadeia de minúsculos seres construída sobre milhares e milhares de séculos.

Os que tinham coração, este lhes bombeava um sangue viscoso e nutritivo. Um músculo insistente, que ora batia acelerado, fazendo seus detentores subirem planícies e colinas íngremes, ora batia como se fosse parar, deixando o organismo naquele estado de vigília, uma zona entre a vida e a morte. Os que tinham cérebro, este lhes integrava todas as maravilhas físicas e cósmicas que irradiavam por todos os lados e que, graças a alguns desses cérebros, eram enfim apreendidas naquilo que realmente eram. E mesmo os cérebros que não faziam isso também tiveram seu papel, ajudando essa multidão anônima de seres a relembrarem o local onde nasceram ou então onde estavam as frutas mais doces.

Os que tinham um sistema nervoso, e imagino que fossem muitos, podiam sentir o que nós humanos chamamos de dor. Mas pouco importa o que nós humanos chamemos essa reação que faz evitar algo. A dor é a universal que nivela todos os organismos vivos minimamente complexos. A dor é sempre vivida de modo singular. Ninguém ou nada pode sentir dor por procuração. Essa mesma dor tem como complemento o prazer, mais uma palavra humana que basicamente descreve uma sensação física que tende a induzir a repetição de um comportamento. Na vasta maioria do reino animal, essa repetição está na base da transmissão de algumas células que têm o pontencial de gerar outros seres iguais aos exemplares originais.

Tenho um imenso interesse por animais não conscientes. Eles são a ESMAGADORA regra deste planeta, jamais a exceção. A única exceção é uma espécie que só se tornou dominante por causa de um órgão pensante. O pensamento é a ruptura com o imediatismo da existência. Pensar é romper com o mistério da vida. Para esse cérebro pensante chamado de “humano”, qualquer mistério é uma fonte de questionamento, um tópico de investigação. Um ainda-não que, em questão de tempo, será dissecado em explicações racionais.

Os animais não conscientes são os verdadeiros “donos” deste planeta. Até porque chegaram primeiro. Infelizmente, não bastassem as diversas extinções naturais em massa, estão sendo submetidos a novos níveis de tortura e destruição pela espécie que tem um cérebro pensante, a única efetivamente capaz de produzir o mal absoluto por escolha própria. Tal espécie se arroga o poder de tutelar os animais não pensantes, destruindo-os, seja como meio de alimentação, lazer/diversão, “avanço científico”, ou pura maldade (= algo que não precisava acontecer, mas acontece porque o humano assim o deseja). Não há quase mais nada “selvagem” na natureza. Em cada canto mais remoto deste planeta haverá a presença da espécie pensante – que se adapta até ao fundo do mar, tamanha sua astúcia e resiliência.

Na base do exponencial desenvolvimento tecnológico da espécie pensante estão seus próprios interesses. Bombas atômicas foram inventadas não para defender o planeta de um eventual meteoro ou de “alienígenas”, mas para reforçar o poder de uma tribo sobre a outra. As sofisticadas técnicas de previsão do tempo não servem, primariamente, para proteger animais não pensantes de esbarrarem com eventos climáticos catastróficos. Servem para prever ações pela espécie pensante a fim de proteger suas plantações e propriedades. A espécie pensante chegou mesmo a inventar deuses, acreditando que, após esta vida, haverá um paraíso onde alguns viverão eternamente. Por certo porque não consegue conceber que uma tal “maravilha” deva morrer e ser esquecida para sempre.

A espécie humana melhorou inimaginavelmente suas condições de vida. Mas faz tudo pensando em si mesma. Do ponto de vista do planeta, essa espécie é completamente supérflua. Se não tivesse surgido, tudo estaria na mesma. A espécie humana não fez nada de significativo pelo planeta, exceto arruiná-lo. Ou quando cria desgraças para ela própria vir com a “solução”. A espécie humana, do ponto de vista do planeta, não é senão outra mutação fracassada. Os últimos a sair da selva para as cidades, onde usam bonés e armas semi-automáticas, para usar uma expressão de G. Carlin.

Conforto-me com o pensamento de que há um Deus. E, como disse antes, esse Deus está registrando tudo. Esse Deus sabe, no fundo, “o que está rolando”. Ele escuta cada grito, cada vida dizimada, seja por uma pedra aleatória ou por complexos matadouros “humanizados”. Quero crer que esse Deus é tão sintonizado com a verdadeira natureza do Cosmos que é até mesmo capaz de amar cada ser humano individualmente, uma tarefa desafiadora.