Psicólogo não é demógrafo

Considere o seguinte. Você tem uma série de informações demográficas sobre um indivíduo X. Digamos, você sabe onde ele mora, seu gênero, seu status socioeconômico. Se você considera essas informações em agregados populacionais, você pode, com alguma segurança, extrapolar “outcomes” sobre esse indivíduo X. Por exemplo, pode estimar que a probabilidade de ele ascender socialmente é de média para baixa. Você não precisa entrevistar essa pessoa ou conhecer sua história pessoal para realizar certas extrapolações.

Em certo senso comum psicólogo, o próprio psicólogo recorre a variáveis sociodemográficas para ajudar a explicar algum fenômeno psicológico de interesse. Na sua versão mais distorcida ou empobrecida, o psicólogo usa jargões como “O sistema faz esse indivíduo X ser excluído ou ter menos chances de sucesso”. O sistema, sempre o sistema.

Se você faz análises de amplos sistemas, como o “capitalismo”, e você assume premissas ou pressupostos sobre como esse “sistema funciona”, você não precisa se dar ao trabalho de tentar explicar a singularidade. Aliás, esta última chega a ser até mesmo vista com suspeita. OK, você pode dizer que estou entendendo errado. Que existe uma “dialética” entre “universal e particular”. Que o primeiro se expressa no segundo, e vice-versa. Claro que isso acontece – nenhum singular ocorre no abstrato.

Mas acho que existe uma fronteira aqui, cujo reconhecimento com certeza viria a calhar em algumas situações, quando psicólogos são, na prática, cópias distorcidas de demógrafos.

Há também o oposto, claro: psicólogos agindo como cópias de jornalistas. Fazem perguntas óbvias para as pessoas, perguntas cujas respostas esse psicólogo, ingênuo ou incompetente em domínios teóricos, já tem antecipadas. A pesquisa se transforma, assim, num simulacro. Para não mencionar as dificuldades metodológicas envolvidas, como viés de resposta da parte do entrevistado/participante. Vieses de resposta significam, basicamente, que o participante de sua pesquisa “veste a camisa de sujeito de pesquisa” e fala o que você quer ouvir ou o que ele acha que é o apropriado a dizer nesse contexto.

O autômato, usado por E. T. A. Hoffman (um autor citado por Freud) é uma excelente excursão sobre a idéia de ventrículo, de marionete, de um indivíduo puramente movido por signos culturais unidirecionais

Meu ponto, porém, é o seguinte. Cada pessoa é uma unidade singular (atenção: não sou “seguidor” de Leibniz; continue lendo). Um sistema aberto, em constante interação com seu meio e imersa no fluxo do tempo irreversível. E qual meio é esse? Gostaria de destacar um em específico: a cultura. Muitos (psicólogos) tratam a cultura como uma “variável”. Nada mais ingênuo do que isso. Pode servir, como no caso do demógrafo, para extrapolar alguns “outcomes”, mas a cultura não é “só” isso.

A cultura é o meio humano por excelência. Sua estrutura básica são signos. Por exemplo. Imagine um jovem tendo de escolher um curso superior. Ele vai ser “influenciado” pela materialidade de sua existência, por certo (se a família tem ou não dinheiro, por exemplo). Mas ele vai ser influenciado em um nível muito mais profundo: o próprio significado de um curso superior. Inicialmente, a pessoa é constituída de fora para dentro, por assim dizer. Há signos culturais que, de forma poderosa e quase invencível, promovem certas trajetórias em detrimento de outras. Há signos culturais que impedem ou dificultam certas trajetórias.

Porém, se essa pessoa quiser, de fato, emergir como singularidade, ela terá de revisitar os significados (signos) que a cultura lhe forneceu e que apareceram como caminhos a seguir. Revisitar significa que essa pessoa precisará produzir signos ela própria. Como diz o poeta, “Fazer algo com aquilo que fizeram de mim”. Apropriar-se de sua própria singularidade. Produzir signos é equivalente a produzir sentidos, tingindo afetivamente os significados (signos socialmente compartilhados). Aliás, não é à toa que Vygotsky, que estudou sentidos & significados, priorizou a ARTE como objeto fundamental de análise!

Uma pessoa jamais será uma imitadora perfeita de vozes, para usar uma expressão de Thomas Bernhard. Mas ela pode viver sua vida como uma sonâmbula ambulante, como na poderosa narrativa de Hermann Broch. O sonâmbulo vive dentro de um sonho. Esse sonho é, claro, o sonho narrado por signos culturais, que buscam instituir, ainda que de modo fluido e revisável, formas de vida consideradas legítimas. Se uma pessoa fosse uma perfeita imitadora de vozes, ela simplesmente seria previsível por meio de variáveis demográficas, como eu disse no início. Não precisaríamos de psicologia, oras.

E ela não é tal sonâmbulo justamente porque é capaz de produzir sentidos. Ao psicólogo, portanto, abre-se um campo de investigação enorme: como fazer a pessoa encontrar-se com ela mesma, na sua trajetória concreta de vida, atravessada que é, como um peixe num aquário, pela cultura (= a água). Aliás, David F. Wallace escreveu uma fantástica crônica sobre os peixinhos nadando inconscientes da água. Vale muito a leitura.

Volto a falar da importância de reconsiderarmos o conceito de singularidade, de pessoa, de ser de carne e osso cujas experiências jamais poderão ser terceirizadas, sob o risco de essa pessoa passar o resto de sua vida nadando em uma água da qual não consegue ter a mais remota ideia. A psicologia no nosso país passou por transformações fundamentais. Hoje é uma ciência muito comprometida com as condições materiais e sociais que “geram” ou “determinam” certos fenômenos psicológicos. Mas, como um rebanho, alguns estão indo ou já foram longe demais. Simplesmente, apagaram a individualidade, soterrando-a em jargões “sistêmicos” e discursos, na melhor das hipóteses, super entediantes e, na pior das hipóses, cínicos. Aliás, nesse sentido, lembrei-me agora de outra leitura fundamental: Crítica da razão cínica, do Peter Sloterdijk.