Imortalidade

Como explicar a imortalidade para pessoas simples? Você conseguiria fazer isso sem usar jargões religiosos ou filosóficos? Parece difícil, não? Pois o diretor Béla Tarr conseguiu, e de uma forma tão simples que você mal consegue acreditar. E ela está bem na abertura de seu Werckmeister Harmonies. Há mais de dez anos eu havia comentando um outro filme seu. A cena em questão está abaixo.

Como você pode ver, a escolha do diretor para tocar no tema da imortalidade foi o movimento dos astros, mais exatamente a Terra, com nossa Lua rodopiando a seu redor, e o Sol, ao redor de cuja órbita dançam todos os outros astros. Tentei assistir pequenos vídeos científicos ilustrando extamente esses mesmos movimentos, mas não é a mesma coisa. Nunca havia pensando na imortalidade desta forma, embora certamente essa intuição já estivesse dentro de mim. Talvez de todo mundo.

Em um momento da encenação, János Valuska, o ator representado aqui por Lars Rudolph, solicita o seguinte a seu espectador: Tudo o que peço é que você dê um passo comigo rumo à infinitude, onde a constância, a quietude e a paz reinam no vazio infinito. E apenas imagine que, nesse silêncio sonoro infinito, há uma impenetrável escuridão por toda parte.

Somos apresentados ao reino do vazio infinito. O Cosmos, que é, sob qualquer ponto de vista, um “ambiente” extremamente hostil. Essa hostilidade, e os limites aparentemente intransponíveis que ela impõe aos bilhões de planetas apenas na nossa galáxia (a Via Láctea), são, hipoteticamente, uma das razões por que nunca tenhamos sido contatados por outras formas de vida inteligente (assumindo, é óbvio, que elas existam). Esses diversos mundos são como ilhas isoladas umas das outras, cuja distância (cada vez se ampliando mais) e condições inimagináveis de seu entorno tornariam qualquer viagem, mesmo de civilizações supostamente mais sofisticadas que a nossa em termos de sustentabilidade energética, um beco-sem-saída.

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E então o ator introduz o Sol, dizendo: A luz brilhante do sol sempre irradia seu calor e luz no lado da Terra que está voltado para ele naquele momento. E nós estamos aqui, em seu esplendor. O nosso sol é um “farol” que ilumina o mar escuro. No caso da Terra, porém, ele a ilumina apenas em uma de suas partes de cada vez, as quais assim se revezam entre luz e escuridão. Mas há um acontecimento fantástico representado pela nossa Lua, que provoca uma “indentação” na esfera ardente do Sol. No início, essa indentação é pequena, mas ela vai ficando maior e maior. E então um evento dramático ocorre: a Lua bloqueia a luz solar. Temos um eclipse, que, como ocorreu recentemente no hemisfério norte, pode ser total.

Na Terra, o fenômeno provoca um espanto em todo o reino animal: O céu escurece, e então tudo fica completamente escuro. Os cães uivam, os coelhos se encolhem, os veados correm em pânico, correm, fogem em desespero. E nesse crepúsculo terrível e incompreensível, até os pássaros… até os pássaros também estão confusos e vão pousar. E então… Silêncio Completo.

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Imagine um período em que não tínhamos o conhecimento científico para explicar esse acontecimento. Nossos ancestrais devem ter se apavorado até os ossos. O que era aquilo? O primeiro humano que testemunhou esse evento deve com certeza ter imaginado que o mundo acabaria. Que a terra se abriria sobre seus pés, que era o fim. Imagine o desespero, sentir a escuridão engolindo sem aviso o dia, assistir os animais se recolhendo em debandada, a temperatura cair, o silêncio, a escuridão do universo enfim triunfando sobre nosso pequeno ponto luminoso no nada. Tenho certeza que esses primeiros seres pensantes devem ter vivenciado isso tudo como uma experiência profundamente religiosa, mesmo antes de religiões terem sido criadas oficialmente.

E como eclipses não ocorrem a todo momento, e considerando que os primeiros seres pensantes não tinham ainda uma cultura escrita e outras formas de transmissão, é provável que tais experiências de terror nunca tenham sido documentadas. Talvez alguns vestígios aqui e ali, feitos em alguma pedra. Realmente, não sei. A raridade (do ponto de vista da temporalidade de uma vida humana) de um eclipse tornava cada novo acontecimento um acontecimento novo, e igualmente desesperador.

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Mas, então, aos poucos, a lua vai se afastando daquele lado da Terra sobre o qual ela estava bloqueando a luz. Assim, a coroa radiante do Sol novamente atinge a Terra, trazendo de volta o calor, o verde e as demais cores. Os animais, que até ali estavam num reino de terror e pânico, à espera do pior, novamente colocam os pescoços fora dos buracos. Talvez, a princípio, ainda desconfiados, mas aos poucos vão retomando suas rotinas, e dentre em pouco já não se lembrariam mais de nada.

Para o ser pensante, porém, talvez não possamos falar a mesma coisa. Algo, por certo, havia de ter ficado gravado em seu espírito. Talvez a lembrança desse acontecimento o tenha transformado de algum modo profundo. Talvez um sentimento de antecipação passasse doravante a fazer parte de sua imaginação. Talvez ele tenha concluído que precisaria “fazer alguma coisa”. Não podia ficar carregando esse peso por onde quer que fosse. Talvez isso tenha lhe manchado tanto a alma que sua curiosidade exploratória tenha despontado com força e fundado seu caráter. Ele precisava descobrir o que era aquilo. Sua tenacidade exploratória passaria a ser proporcional a seu medo e a seu desamparo. Assim, uma profunda disciplina talvez tenha surgido, a disciplina que muitos milênios depois chamaríamos de disciplina científica. Na sua base, o terror, o desamparo, mas também a esperança, o desejo de se antecipar ao Cosmos. Ou ao menos de dar-lhe uma explicação, um sentido – isto é, um pequeno conforto, ainda que isso lhe revelasse a profunda contradição de sua existência, a contradição entre finitude e eternidade.

Como conclui nosso personagem: Emoções profundas penetraram em todos. Eles haviam escapado do peso da escuridão. O peso da escuridão: eis aí algo de que não se sai ileso. Aquela escuridão que nenhuma lâmpada pode combater, nenhuma vela, nenhum fogo ou tocha. A escuridão que escapa dos limites das espécies vivas. A escuridão impenetrável do Universo, que está “ali” a poucas centenas de kilômetros de nosso planeta. Com esse pensamento, certamente a espécie pensante não teria outro destino diferente do misticismo. Inicialmente, um misticismo delirante, algo que nosso cérebro nos permite de produzir. O delírio nada mais é que a representação mental, e sua relativa autonomia, de um acontecimento no mundo físico, pensamentos gerando pensamento e, no mesmo processo, sendo mascarados como pensamentos. Aos poucos, porém, o delírio vai cedendo, tanto na medida em que os humanos vão aprendendo a se sintonizar com o mundo físico mediados por instrumentos, como na medida em que eles vão construindo sistemas filosóficos – estes últimos, embora não necessariamente conectados imediatamente com o mundo físico, exploram cenários mentais possíveis para o lugar dos humanos em tal mundo físico e, mais importante, colocam-se a si próprios como pensamentos (sobre pensamentos).

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A escuridão nos amedronta e nos fascina. Na caracterização de Béla Tarr, porém, como você deve ter visto no vídeo acima, ela é também profundamente magnânima, num sentido transformador para um ser pensante. Pois se formos capazes de apreciar, mesmo que de modo indireto, o movimento dos planetas, as forças incalculáveis que estão em sua base, a harmonia resultante dessas forças, o simples fato de haver planetas com esse tipo de sincronicidade e perfeição… se formos capazes de penetrar nesse mistério, que é afinal materializado aqui na Terra na forma de reações e afetos, então isso nos abre a possibilidade de resgatarmos o sentido real de nossa capacidade reflexiva, seja na ciência ou em qualquer outra esfera. Aqui sim é o “universal” se manifestando no “particular”. A opção de um ser pensante por viver sua vida toda apartado dessa constatação, mergulhado em trevas e escuridão, em delírios individuais e coletivos, é a maior ironia, o maior “desperdício” a que nos encurralou nosso próprio cérebro.

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Na verdade, o movimento da Terra, da Lua e do Sol é muito mais complexo. Tudo tem a ver com o ponto de referência escolhido. Se você tiver interesse, assista o vídeo abaixo e se surpreenda!