Fragmentos, 2

Caráter. Talvez muito pior do que a emergência de um líder autoritário ou de caráter duvidoso é sua base de sustentação. Afinal, nenhum poder é poder em si ou absoluto. No caso da política, em sociedades democráticas, o poder central emana de um ato discricionário, tomado em um momento particular, com implicações institucionais. Coloca-se um igual a nós (em termos de direitos naturais) em uma posição, em um papel, cuja essência advém de sua ritualística jurídica e institucional. É por isso que, vezes ou outra, ouvimos o ocupante momentâneo de tais posições dizer que “o Estado sou eu” –obviamente, em sentido figurado, pois o Estado não é, apenas, aquele corpo que, naquele momento, se reveste de poder. Enfim, esse poder é concedido. Pois então, as coisas podem ser resumidas no seguinte: o que faz uma multidão anônima endossar e continuar apoiando uma pessoa que, não sendo mais do que um ocupante de um papel, propõe a destruição dessas mesmas pessoas? Cometemos um imenso, gritante, erro ao resumir tudo à análise da figura do tal líder, personalizando, pois, algo que não é pessoal. Se você pensa que, no fundo, todo o fenômeno incorporado na figura de um líder é, em essência, manifestação de um coletivo anônimo, então as coisas ficam dramaticamente piores, pois, se um líder, num dado momento e substituível, é apoiado não importa o nível moral de suas ações, então isso diz da qualidade geral do povo.

Faladores. Está me ocorrendo o seguinte. Passei a ouvir algumas pessoas. Digo, na mídia; ou comentadores no YouTube. Ao ouvir, automaticamente, começo a achar falhas nos discursos. Por vezes, falhas lógicas; noutras, alguns pontos cegos (para não chamar de falhas) psicológicos. Como quando a pessoa fala de algo nos outros mas não percebe a mesma coisa, ou ainda pior, nela. Trata-se de algo que me deixa chateado, isso de não “comprar” totalmente o discurso. Por vezes, chateado porque, poxa, eu gostaria de me espelhar (embora possa o estar fazendo). Gostaria de encontrar o discurso “perfeito”. Por exemplo, escuto o psicanalista e penso: Mas que diabos esse cara tá falando? Como se pode olhar tudo, ou quase tudo, por um mesmo crivo? Depois, vejo o filósofo; ou se trata de um ser, este um que ouço algumas vezes, que criou uma bolha ou realidade própria, ou é um farsante, vendedor de livro com ideias requentadas. Na matriz de um discurso: o “eles não sabem nada”; a crítica que pulveriza as diferenças, talvez por se achar que se tem perspectiva melhor de análise, mais verdadeira, do que os outros. Mas me chateia ainda mais em perceber, sentir, que quem fala está, no fundo, projetando seu “eu”, tentando, ao falar, não mergulhar no caos do discurso que recebe e que nos fragmenta a todos. Falar, externalizar, virou sinônimo de resistir no grande mar das narrativas. Seria falar um remédio? Não sei, acho que as redes sociais realmente amplificaram esses faladores. A pessoa, quarentenada dentro de casa, com uma câmera, interagindo com 30, 40 mil pessoas, começa facilmente descolar da realidade, e leva um monte de gente fanática por um discurso que as coloque na passividade diante de “um Eu que fala” e, ao organizar narrativas, abre vias prêt-à-porter para os afetos perdidos, tristes, impotentes. Talvez seja melhor ficar com a chateação. Primeiro, porque isso me impede de colar em um discurso e virar algo como um seguidor cego. Simplificador radical de realidades. Segundo, porque talvez eu esteja em busca do “meu” discurso, um que conecte minha boca a meu coração. Será que esses faladores encontraram esse elo?