Experimentos mentais, 4: O penguim

Uma cena do documentário Encounters at the End of the World (2007), do magistral Werner Herzog

Naquela manhã, como em muitas outras, ele havia acordado no meio de outros pinguins. Mal podia se mexer e logo esbarrava no companheiro do lado. Na verdade, jamais se poderia determinar quem havia se mexido primeiro. Dava no mesmo, no fim. Um mexe aqui, outro é mexido lá. Vice-versa. Uma grande massa que, se pudesse ser vista de cima, seria confundida com uma poça de petróleo. Quando o sol começa a despontar no horizonte antártico, nem parecia o sol todo majestoso que, na altura do equador, é tão voraz que parece querer engolir a Terra. Em fez disso, ali era um sol tão vestigial que mais parecia uma luzinha de poucos watts sofrendo para vencer a invasão da noite escura com tênues penumbras de clareza. Graças à mecânica dos corpos, ao frio que se torna menos frio, e à luz pálida que é logo refletida pela neve infinita, os pinguins começam a se mover. A massa preta vai se transformando em pontos pretos, que então vão se espalhando e se espalhando a ponto de a neve ficar parecida com a pele de um dálmata. A dinâmica toda é acionada pelo estômago, como sempre ocorre nesses casos. O estômago sincronizado desses pinguins faz pernas e barbatanas logo entrarem em ação. Os pontos pretos seguem um vetor predominante rumo a um penhasco, do qual pulam e se lançam como balas de canhão no mar revolto. Hora de arranjar comida. E assim essas aves, com a rapidez com a qual transitam da terra para o mar, tornam-se peixes ágeis e graciosos, cortando a água como lâminas. Mas ele não fez nada disso. Não, não. Inicialmente, ficou parado no mesmo ponto onde havia estado a noite toda. Na correria, foi chacoalhado um pouco para frente e para o lado, mas se recompôs. Tinha os pés firmes e bem posicionados na neve, a esse ponto já meio derretida em volta deles. Seus olhos ovais, combinando um preto com marrom, fitam perdidos a paisagem à sua frente. Uma paisagem hoje idêntica à de ontem, e de muitos dias antes. E, provavelmente, idêntica a de muitos dias a porvir. Branco à direita, à esquerda, na frente e atrás dele. Com um detalhe: lá à distância, atrás dele, a neve transita em declive, sendo então possível vislumbrar os contornos de uma linha de montanhas. De resto, o branco triste, frio, estéril e vazio. Ele fica olhando o nada por quase uma hora. Aqui e ali, mexe um pouco as barbatanas, como se estivesse imaginando o mar, ou combatendo algum inseto. Do nada, se vira no sentido oposto àquele trilhado pelos companheiros logo mais cedo – ou seja, o sentido das montanhas. E começa a andar. Simples assim: anda, anda, anda e, ao fazê-lo, vai balançando as barbatanas para se equilibrar, como se estivesse conversando em voz alta e gesticulando contra os próprios pensamentos. O corpo, embora siga mais ou menos em linha reta, oscila em torno de seu eixo, parecendo mais uma marcha do que uma caminhada. De passos curtos e rápidos vai seguindo pelo manto branco de neve. Segue em direção às montanhas. Vai num caminho sem volta, sozinho, longe para sempre de seus companheiros. Um caminho em cujo fim certamente encontrará a morte. Torna-se, irrevogavelmente, um simples pontinho na imensidão do cenário. Um simples pinguim, ora andando, ora dando barrigadas na neve para acelerar o ritmo, rumo ao branco profundo, ao silêncio, ao esquecimento.