Experimentos mentais, 2: Embaixo da carroça

Era uma manha chuvosa. Ele estava quase meio corpo enterrado na lama. Estava de quatro. Suas pernas e braços com certeza estavam na lama. Disso ele tinha certeza. Além da chuva havia neblina. Seus dentes também tinham um pouco de lama, ele agora pensava. Estava com fome. Sim, era em parte pela fome e em parte pela chuva que ele estava ali embaixo daquela carroça. O cavalo ao qual a carroça estava atachada era um animal maltratado. Não que isso fosse relevante para sua presente situação. Aliás, ele nem achava que cavalos deviam ser bem tratados, estar vistosos. Pelo menos não os cavalos dos plebeus. Sim, ele era um plebeu. Na verdade, na sua mente, ele era alguém que não vivia no castelo. Só isso que ele sabia com certeza. Sua condição não era um tema de reflexão. Até porque, o que sabia ele? Ele nem sabia que podia saber algo. Ou que havia algo para se saber. O sol nascia, ele tinha fome, buscava comida, como agora, e voltava para o monte de palha cheia de merda de galinha na qual dormia. Ele tem vontade de abrir a boca. E abre a boca bem aberta, torcendo a cabeça para cima, revelando para o teto de madeira da carroça seus dentes destroçados. Podres. Um podre obsceno. Ele olha para o teto da carroça e, sem saber o porquê, imagina que houvesse ali um espelho. E no espelho ele vê um espectro, uma figura disforme, uma coisa que, mesmo não tendo consciência de si, parece perguntar ‘O que é isso?’ E fica entretido por algum tempo nessa penumbra fantasmagórica de um espelho que não existe, de uma pessoa que não existe para além das fronteiras da fome. A fome. Essa dor estranha no meio do corpo. Era mais desconfortável que a lama misturada com estrume na qual estava banhado. Olha pelos vãos da roda da carroça. Olha para o céu, e uma gota graúda de chuva lhe acerta bem um dos olhos. Leva a mão enlameada em ato involuntário até eles. Só piora o estado de um dos olhos. Mas que importa. Ajusta o olho que ainda está aberto e enxergando e o direciona para o pequeno público que perambula por ali. Ele está à espera do fim da feira. Era uma feira medieval. Rudimentar e agrária como poderia ser uma feira medieval. E uma feira de um burgo pobre e desgraçado. Ainda por cima, ele tinha nascido ali. Sempre esperava até o fim da feira, e sempre achava um pedaço de nabo quebrado, sujo e duro. Ou um caule perdido de alguma cenoura há muito já longe dali. Hoje com essa chuva, pensa ele, o caule estaria completamente empapado. Mas ele comeria mesmo assim. E é isso mesmo o que no fim acaba acontecendo. Agora sentado embaixo da carroça e não mais de quatro, come os talos de nabos e cenouras. Não é muito. Mas o suficiente para acalmar essa dor que aparece umas duas vezes ao dia e que desaparece assim que ele come coisas como caules e talos. E assim passa mais uma manhã. Como essa, mais umas duas ou três, antes de ele ser esmagado pelas rodas de outra carroça num dia sem chuva.