Atávicos

Vejamos alguns paradoxos do ser humano a respeito da liderança. Algo que você talvez não vá encontrar em algum manual (fake, como quase tudo que fracos escrevem para fracos) de liderança.

1) Algum grupo irá respeitar seu “líder” se ele revelar-se fraco, se ele expor a raiz dos problemas que ele, no seu íntimo, sabe que está enfrentando? Não. Se um líder expor as minúcias das várias alternativas possíveis, dos dilemas imanentes às decisões e das situações conflituosas em que geral se vê envolvido como líder, ele não será compreendido. Será visto como um fraco.

2) Se um líder pede feedback, ele se enfraquece. Ele delega ao outro, que, no seu íntimo, é também um fraco, na verdade, um covarde às sombras do líder (alguém a quem ele pode culpar caso algo saia errado, tamanha a alienação de seu próprio desejo, sua incapacidade de correr riscos e errar por si). O líder lidera quando gera no seu liderado a sensação de que ele, liderado, está em dívida. A liderança está do lado de quem gera a dúvida, e não de quem é duvidado.

3) A distância, certo “segredo”, certa incógnita, certo ar de incerteza, isso tudo fomenta a liderança. O “semblante de saber”, a suposição de que se sabe, mesmo quando não se sabe absolutamente nada, é um manancial da liderança. Achamos pessoas afetivas fracas (a afetividade implica alguma transparência, algum nivelamento, alguma mensagem de que o líder é um “igual”, sofre como, os outros…); tendemos, atavicamente, a admirar, a nos submeter, a nos curvar (sem admitir) perante tudo o que se aproxima, minimamente, da soberania.

Tudo isso que estou dizendo parece ser mais verdadeiro hoje do que talvez tenha sido no passado. Por alguns motivos. Primeiro, porque vivemos numa cultura da infantilidade, uma cultura bebezona, acovardalhada. Décadas de feminismo tornaram homens e mulheres muito mais frágeis, muito mais distantes de alguns dilemas inexpurgáveis da existência. Segundo, porque liderar tornou-se uma tarefa complexa, e a complexidade demanda risco, virilidade, aposta.

Se você não dobrar o outro, ele te dobra. Não há relação harmônica, não há nivelamento dos conflitos. Pensar isso é alienar-se a seu próprio poder. Líderes que vão ao fracasso, e que levam seus liderados ao fracasso: paradoxalmente, pelo seu instinto atávico, é a isso que se lança o ser humano comum. Todas as teorias de liderança que não reconhecem isso caem na vala comum do espírito acorvado de nossa época.

Mas, sabe o que é pior? O governo dos iguais. Sabe por quê? Porque ninguém é igual ao outro. No plano moral, até podemos ser iguais. Mas, no plano prático, da capacidade/potência sobre o mundo, somos bem diferentes, isto somos!

E nada mais ultrajante do que uma pessoa que sabe qual é seu desejo. O líder é alguém que deve, imperativamente, saber sobre seu desejo. Mesmo que se engane. Mas nada equivale ao poder de um sujeito desejante, a despeito de tudo, a despeito de todos. E repare o seguinte: quando você se sentir fraco perante alguém, isto é sinal de que o desejo desse alguém é mais visível e delineável que o seu. O desejo dele é tanto que ele deseja por você.

Oh, nossa humanidade… tão atávica, tão estúpida. Mas estamos ainda na Terra, não? O que isso revela, desse ponto de vista da liderança? Muito!

Frases (excursos absurdos – parte 2)

“Deixe sua vida para os órgãos. Em seu silêncio aleatório e fisiológico (regrado por leis e submetidas a certa [ou boa] margem de erro), independente, pois, do que você faça, eles te mantém vivo ou lhe reservarão uma morte abstratamente perversa, mas sem maldade.”

“Às vezes, o habitat mais sublime, mais deleitoso, seria o buraco na terra – exatamente como faz o avestruz com sua cabeça encoberta, problemas resolvidos, consciência segura.”

“O brasileiro é, sempre foi?, um deslocado. Quando fora do país, mantém-se um estranho, achando tudo estranho e, com “jeitinho”, buscando entender ‘qual é a dos gringos’. Quando no país, se acha um esperto”.

“Talvez alguém não consiga entender que pode haver prazer e um fim em si mesmo na conversa mais desinteressada do cotidiano, ainda que inglês… e num ônibus indo para um destino que foi ‘explicado’ pela internet ou pela agência de turismo da esquina…”.

“Se fosse sua filha, você responderia…”.

Devaneio x criatividade (excursos absurdos – parte 1)

Quantas vidas imaginadas e possíveis nós temos? Já pensou que a cada momento deixamos de fazer muitas coisas – apenas as imaginamos? Qual a finalidade da pura e descolada imaginação? Onde ela nos leva? Qual a diferença da “boa” imaginação para o devaneio? O devaneio é perda de tempo, movimento livre da consciência perdendo-se a si mesma. Não há escrúpulos no devaneio: a consciência simplesmente “se deixa ir” em imagens aleatórias, sobrepostas, fundidas, combinadas num fluxo até mesmo coerente mas em si mesmo “inútil”.

O devaneio é diferente da criatividade. Nele, a consciência se perde; na criatividade, ela se reencontra com o mundo. Desloca-se do cotidiano e retorna a ele, transformada. No devaneio, imaginamos uma série de “e se”. O devaneio nega a vida. Foge da vida. Cria cenários fictícios, prazeres desencarnados. Deve-se evitar o devaneio. Em seu lugar, colocar ideias com algum valor simbólico – portanto, algo conectado com o outro, com as outras pessoas – com a cultura, por exemplo.

Exceto se o devaneio for uma “perda de tempo” – por exemplo, quando estamos viajando (trem, ônibus, avião…) e não temos o que fazer (dormir, por exemplo). O devaneio é imaginário. Embora fazendo uso do simbólico (cenas, palavras, sons, etc.), ainda assim ele não tem plausibilidade, não se liga à vida real da pessoa. No campo do imaginário, não há corpo, não há tempo, não há o outro concreto, só o outro e mundos imaginários.

Ação e inação

Por que não fazemos como o personagem de Melville, o escrivão Bartleby, simplesmente dizendo “prefiro não fazer” aos pedidos dos outros? Por que simplesmente não interrompemos a ação, nosso agir? Ou, inversamente, o que nos leva a querer fazer coisas, a simplesmente querer sair da cama pela manhã? A sobrevivência, a “busca por sentido”, a vontade? O medo das consequencias do não-fazer? O desejo?

Ah, o desejo. A busca por preencher, ilusoriamente, o que falta. O trabalho de cultura, como diria Freud: o trabalho de Eros, de ligação, de enactment. Algo particularmente humano, entre tantas características já catalogadas, é o fato de estarmos na origem de algo, o fato de sermos o agente cuja ausência mostraria a restrição da matéria: sem o homem, rios correriam às cegas, seguindo combinações perfeitas de forças naturais; sem o homem, pedras seriam apenas pedras, e não prédios, pontes, objetos de arte. Sem nossa ação, a eterna repetição do mesmo.

Ainda assim, me pergunto: mas qual a “essência” da ação (desculpe ser platônico). Bom, a ação pode ter sua essência fora do homem (embora ainda dentro da cultura). Por exemplo, na tradição, no hábito, no costume. Pode estar nalgum imperativo categórico, nalguma ética transcendente ou universal à qual nos sujeitamos para haver o espaço da convivialidade (o certo, o errado)… A ação pode estar “dentro” do sujeito, em sua vontade, na sua disposição, personalidade, “desejo de potência”… A origem da ação pode ser instintiva, baseada em necessidade. Pode também ser religiosa – Deus seria contra a acédia, a apatia, a inação.

A ação pode estar ligada a um ideal. Ajo inspirado e orientado por esse ideal. A “perda de ideais” seria um caminho para o niilismo de tipo nefasto. Posso também agir como um “sujeito coletivo”: a ação política, esse tipo de agir profundamente humano, pelo qual se compartilha o destino comum, o fato de se viver junto de outros. Uma ação política teleológica, utópica.

A lista seria extensa. A lista do porquê agimos, do porque nos embrenhamos nesse trabalho de cultura pelo qual nos humanizamos (e pelo qual sobrevivemos – um “trabalho de natureza”, por assim dizer).

***

Agir implica em um trabalho de tornar-se adulto: agir, em vez de esperar que o outro aja por mim, ou então para que eu mesmo não me torne um objeto da ação do outro, passivamente. No primeiro caso, há certo desejo de fusão com o outro, protetor, provedor. A criança só começa a “sacar” que tem de correr atrás do próprio alimento quando a mãe não corresponde mais a um tipo de amor fusionado, de nutrição irrestrita.

Inação implica, também, num bloqueio da capacidade inventiva do sujeito, pela qual, criativamente, ele reinventa novos objetos para sua experiência. Quando inativo, o sujeito se torna um objeto junto a outros objetos. Pois um objeto é, precisamente, aquilo cuja ação não parte espontaneamente de si. O inativo vê tais objetos como “entidades dadas”, dispostas no mundo, e não como instrumentos maleáveis, pivôs da externalização de si em novos “possíveis”.

Lealdade

Assisti novamente ao curta que postei aqui, intitulado Adam and Dog. Sua essência é o tema da lealdade, da gratidão, retribuição, algo que lembra o conceito de ‘graça’ discutido por Marcel Mauss. Na configuração da graça, o que recebo do outro gera entre mim e ele uma dívida simbólica que é alheia à axiologia econômica. Em outras palavras: há um processo de doação de si que transcende a lógica econômica.

O cão é leal a Adão, mesmo este tendo sido expulso do paraíso. O cão é grato a Adão por este tê-lo acolhido antes, com carinho e alimento. Enquanto todos abandonaram Adão (e Eva), inclusive os animais do Paraíso, o cão, praticamente sem titubear, volta à floresta, retoma o graveto que havia guardado de suas diversões com Adão, e segue este último.

É desoladora a imagem de Adão e Eva saindo do paraíso. Sozinhos. Desamparados. O cão, na animação citada, reata, religa, resgata o princípio da graça e da dádiva inerentes na própria concepção de Paraíso. Ele não deixa o primeiro casal sozinho. Com seu gesto, mantém um elo entre homem e animal que está na origem da Criação.

Em que consiste a lealdade nos dias atuais? A que ou a quem sou leal?

Talvez um nietzschiano diria que a lealdade comporta algo de passivo, de submissivo: sou leal ao mestre, ao amo (na estória do Senhor e do Escravo de Hegel). O escravo precisa do senhor para manter sua própria identidade cativa, ao passo que o senhor se alimenta do escravo, numa perspectiva dialética, para que seu próprio ser tenha sentido. Pode ser, claro, que o cão precisasse do homem (Adão) para manter sua própria posição submissa (antes a submissão do que o abandono, o desamparo).

Mas a lealdade, e novamente remeto ao vídeo, contém algo de corajoso, de audaz. É uma retribuição que funda uma ética da troca, da solidariedade, da companhia. O companheiro retribui, gerando em quem dá o ensejo da re-retribuição. Fecha-se o elo da parceria, da amizade. Neste tipo de amizade, cada membro é reconhecido em seu papel alternado: quem doa e quem recebe; quem recebe e quem doa. O dom, neste caso, não pertence a nenhum dos dois, mas à relação.

É isso. Lealdade. Amizade. Retribuição. Dívida. Graça.

O turista e a ambivalência espaço-lugar

Um lado de ser turista é chato. Aborrecedor. Arrumar, desarrumar malas, ir de hotel em hotel, frequentar o transporte público (trens e avião, no meu caso recente), verificar a todo instante se os documentos essenciais estão consigo, ocupar-se da conversão de moedas e da troca de línguas e dialetos. Também é chato, ao ser turista, participar (por diversos motivos que vão desde logísticos a financeiros…) de um certo reducionismo que consiste em enquadrar um lugar (uma cidade, por exemplo) a paisagens turísticas: quando na cidade A, visite os locais A1, A2…; quando na B, os B1, B2, B3, e assim por diante. Nesse sentido reducionista, o turista pode ter a sensação estranha de que não está saindo do lugar: apenas está trocando as imagens, vendo-as do mesmo ponto.

Garçons falam inglês na Itália, em Praga; falam francês em Londres, italiano em Portugal. E não têm problemas com isso, pois, no fundo, estão dentro de um mesmo gênero de linguagem: o de atender turistas (o que há de tão variável na atividade de servir uma bebida?). Você sempre pode comprar um souvenir, em geral made in China – um telefone ao estilo inglês para usar como “cofre”; um quadro de algum pintor famoso da cidade; a foto da rua em que certo outro escritor ilustre nasceu (compra-se a réplica da placa da rua…). Nesses momentos, você está participando da redução da cidade e do lugar. As galerias de souvenirs aos pés do Vaticano só são diferentes das de Praga ou Lisboa na medida em mudam-se os objetos a serem representados. Como disse, aqui se tem a impressão de que nada está efetivamente mudando

O turismo movimenta bilhões de dólares todos os anos: hotéis, restaurantes, empresas de máquinas fotográficas (!), agências de turismo, prefeituras…uma legião de agentes econômicos capitalizando cada pedaço das cidades. É o reino (usando linguagem recente) das indústrias criativas.

Mas há um outro lado do “ser turista” que é bem interessante. Em particular, gostaria de falar da ambiguidade ou ambivalência que essa “atividade” despertou em mim no que diz respeito à relação espaço-lugar.

O espaço é disposição “natural” de coisas. Circula-se pelo espaço. Passa-se um tempo num espaço. O espaço é impessoal. Em contrapartida, o lugar é investido afetiva, social, culturalmente. O turista está em contato com o espaço, mesmo que esteja diante de um monumento ou coisa do tipo “repleto de história”! O nativo, por seu turno, vive num lugar, mesmo que não se circunscreva a ele (lógico que, mesmo sendo habitante, ele viaja, se desloca de um canto a outro, etc.). O lugar compõe sua identidade, dá-lhe estabilidade.

Viver em trânsito em diversos espaços (por exemplo, sair de seu país e ficar um tempo “viajando” por aí) tem seu limite. Não creio que alguém consiga ter sanidade mental simplesmente não parando em lugar algum, vivendo como se fosse um turista permanente. Por outro lado, a relação com o lugar pode ser asfixiante, pode nos levar ao desespero. Obviamente, o lugar depende de um espaço; mas depende também de uma narrativa, de uma história, de um “dizer” sobre o espaço. Por mais que falemos de globalização, a verdade é que os lugares têm sua marca própria. E ela frequentemente absorve os nativos. E o ser humano tem a impressionante característica de viver o local como se ele fosse o limite último de todas as coisas (mesmo que, conscientemente, ele saiba da “imensidão” do espaço que “existe por aí”…). Para captar e viver a narrativa que circula pelos lugares de pertencimento é preciso tempo, exposição e, claro, domínio da língua (num nível que vai muito além da linguagem do garçom, recepcionista etc.).

Então, o turista vive uma situação indefinida, entre o espaço e o lugar. Como turista, tento observar e “entender” o que os nativos estão fazendo. Pelo fato de ser ocidental, de ter sempre vivido em cultura ocidental, consigo reconhecer certos sinais que me dão alguma orientação (quem não reconhece um McDonald’s, independentemente do lugar em que está?). Em outros casos, é difícil entender – e, se tentar observar com um nível cada vez maior de detalhes, menos consigo entender, apreender. Por exemplo, um vendedor de souvenirs de Roma pensa a mesma coisa sobre sua atividade como o faz o vendedor de souvenirs em Londres? Na verdade, como turista, temos de fazer imensas generalizações; não conseguimos olhar no detalhe. Não conseguimos apreender o lugar e suas narrativas. Isso é desconcertante e agoniante.

[To be continued…]

Grupo de referência: miopia necessária?

Uma rápida reflexão, de passagem mesmo, sobre a importância, por vezes implícita, de nossos grupos de referência. Um grupo dessa natureza é, segundo a psicologia, aquele a cujos padrões recorremos para medir nossas próprias conquistas, nosso próprio comportamento, também nossos ideais (valorizamos aquilo que nosso grupo de referência valoriza). Contrariamente, tememos ou desmerecemos aquilo que nosso grupo de referência desmerece ou não valoriza.

Um grupo de referência está ligado à nossa socialização primária – não se refere à “sociedade” mais amplamente falando. Conhecemos as pessoas de nosso grupo de referência, muitas vezes convivemos, no dia-a-dia, com elas. Um exemplo pode ocorrer no trabalho: as pessoas com quem trabalhamos por vezes tornam-se nosso grupo de referência, mas pode também ser nossos amigos, acho que até mesmo nossos familiares.

Se, em meu grupo de referência, as pessoas valorizam certos “outputs”, a tendência é que eu também o faça. Existe certa pressão de grupo para isso, mas também certa identificação de nossa própria parte: voluntariamente, digamos, nós aspiramos coisas semelhantes, e, mais importante, nos comparamos – eis aí um mecanismo psicológico-chave na nossa relação com nossos grupos de referência! Esse mecanismo tem um efeito interessante: ele faz com que nós e nosso grupo de referência nos tornemos, ao mesmo tempo, similares e diferentes. Seria mais ou menos a mesma coisa que acontece em nosso processo de constituição identitária – somos iguais/semelhantes a certas pessoas, e diferentes de outras.

Em situações de ambiguidade, tendemos, mais do que habitualmente, a recorrer à visão, à métrica, oferecida por nosso grupo de referência (ou aquela que imaginamos/percebemos).

Bom, eu disse tudo isso para completar agora: ao mesmo tempo em que é importante se fixar em certos padrões de grupos de referência, a certas balizas, especialmente afetivas, representadas por esses grupos, também representam um risco à individualidade. Nesse sentido, sigo aprofundando meu post anterior, no qual discuto a “incapacidade de ficar só”. Pois grupos de referência, além de instáveis, podem nos desviar de nossos próprios projetos.

Nos grupos de referência, ao sermos acolhidos ou ao nos espelharmos, visamos a algum tipo de reconhecimento. Porém, grande projetos de vida nascem do interior, nascem da solidão interior: eles miram paisagens mais distantes; desejam altitudes mais elevadas, onde o ar é mais rarefeito e onde não há muitas outras “formas de vida” em que se inspirar. Esse mergulho interior é, na verdade, uma reelaboração criativa do que recebemos do mundo.

Claro que tal projeto não “nasce da cabeça” do indivíduo; mas há uma certa dinâmica, segundo a qual, do mergulho em si, e da visada beyond ou au-delà de nossos grupos de referência, nascem obras significativas para si e para o mundo. Só para fechar com um exemplo de Nietzsche: ele dizia (mais ou menos, estou escrevendo só de memória) que precisamos tirar, no mínimo, 300 anos de pele histórica de cima de nós (haja acúmulo de “outros significativos”, de legados de grupos de referência…) para podermos enxergar as coisas com mais clareza. Ou então que precisamos subir em alta altitude, ver de cima, com o olhar das aves de rapina (que, até onde sei, não costumam “andar” em bandos)…

 

A incapacidade de estar só

Um amigo, que é religioso (mas racional), me disse, em uma visita que me fez neste final de semana, que uma boa descrição do inferno é quando não se sente a presença de Deus, ou se sabe que Ele não está presente. Metaforicamente, o inferno é a condensação de escuridão viva, vazia, a solidão absoluta – uma forma suprema de desamparo.

Gostaria de refletir um pouco sobre isso. Não de uma perspectiva teológica, sobre a qual nada mais conheço desde que abandonei o seminário, mas psicológica.

O desamparo, e a solidão em que ele está envolto, pode ser apresentado como a mais pura percepção da consciência sobre sua própria finitude. O desamparo, portanto, é corolário de perceber-se indivíduo, “desligado” de alguma “totalidade” – o inverso do pensamento oceânico discutido por Freud. Religião, como se diz, implica em re-ligar, em repactuação constante em torno de Deus unitário (ou em torno da Santíssima Trindade, para os cristãos). Não estranha, portanto, que diversas comunidades religiosas vivam, ainda hoje, um sentimento comunitário, uma espécie de fogueira a aquecer na escuridão e no frio do atomismo social, da serialização individual.

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Não é à toa também que, na ausência da religião (ou como seu sucedâneo), haja a presença da República. Para mim, que não sou erudito o suficiente, tenho como exemplo disto a França, onde a República assumiu, em sua história, um papel de fiador social muito poderoso. Na ausência da República ou de uma religião forte, resta aos indivíduos o Estado. Sem este, a barbárie, como se sabe após séculos de pensamento político (filosofia política).

Uma forma perigosa (em termos psíquicos) de desamparo é quando a consciência “desampara-se de si mesma”. Quando não encontra, em si mesma, o estofo  necessário para uma vida significativa (com sentido). Esta situação seria o equivalente do “inferno sem Deus” que meu amigo me descreveu. O inferno dentro de si – isto é, a escuridão interior. Claro que falo de uma escuridão em sentido metafórico.

A solidão, o desamparo da consciência (a descrença em si, a incapacidade ontológica de identificar um solo em que pisar, com “objetos bons” internalizados, como diria M. Klein), reflete na incapacidade de estar só. Para fazer face ao vazio interior, diversos “recursos” estão à disposição da consciência: fluxos fantasiosos de pensamento; imaginação megalomaníaca ou então auto-punições severas; adicção; ansiedade [por definição, um medo sem objeto, difuso]; etc. E não necessariamente estamos falando de psicopatologia – quando muito, de uma psicopatologia não severa. O indivíduo, incapaz de ficar só, luta como pode para adaptar-se ao ambiente.

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O desamparo, mesmo sem recorrermos a uma linguagem religiosa, é, em suma, a necessidade de ter de viver uma vida na finitude de um corpo e nas restrições impostas, contingentemente, pelo mundo. É a agonia, a percepção do tempo que passa e a incapacidade da consciência ligar-se a objetos externos, e de ligar objetivos externos.

Para encerrar, e voltando à metáfora de meu amigo, acho que não precisamos ir muito longe, na teologia ou algo assim, para compreender o que é o “inferno”, esta construção enigmática que, entre outras coisas, simboliza a incapacidade de estarmos sós, com nossas consciências, e “desligados” de outra realidade/objetos/pessoas.

Níveis de existência

Escrevo aqui de algum ponto abstrato no espaço. Não vou lhes dizer em que ponto estou, exatamente. Hoje gostaria de fazer uma rápida reflexão sobre os níveis em que podemos estar confinados em nossa existência.

O nível mais básico é o fisiológico. Cada vez mais me convenço de que é a fisiologia, como um sistema autônomo (ou quase) e integrador de diversos sub-sistemas, que governa nossa vida. Há, basicamente, a fisiologia (entendida aqui, genericamente, como um macro-sistema), o cérebro e a cerebralidade (cultura, signos, sentidos, etc.), e o ambiente (físico). A fisiologia é o corpo primitivo: o sistema cárdio-respiratório, cárdio-vascular, digestivo, etc. Mesmo as partes “primitivas” do cérebro, cujo valor é de auto-regulação fisiológica.

A existência, no nível fisiológico, é governada por leis e quase-leis. No primeiro caso, temos as associações e correlações entre propriedades, substâncias, “entidades” – e que podem ser (e o são, mesmo com certa margem de erro e arbitrariedade) explicadas pelas ciências médicas e biológicas (e físico-químicas) em geral. No segundo caso, o das “quase-leis”, estamos em áreas fronteiriças, áreas ambiguas, reversíveis e etc.: na área da mente, dos sistemas influenciados por esta – em suma, estamos no campo das interpretações (e fantasias) do cérebro.

Portanto, um outro nível de existência é justamente o que se deriva, ou está associado, à área regulada pelas quase-leis. Alguns filósofos denominam este campo como aquele regulado pelas razões (diferentemente das leis, mencionadas a pouco). Trata-se de um nível no qual podemos inferir influências recíprocas entre ambos: o macro-sistema fisiológico e o sistema mental (neurológico, se se quiser). Aqui ainda estamos num campo em que há elos de compromisso entre os vários níveis.

Mas há um terceiro nível (haveria muitos outros a descrever, conforme o sistema linguístico escolhido), e o denomino de nível da pura arbitrariedade do signo. Já falei disto aqui, em outro momento. Bom, nesse nível o que encontramos são elaborações muitas vezes desprovidas de qualquer base empírica (e há, contra amadores de plantão, sim, uma base empírica – a fisiologia está aí para nos confrontar exatamente com isso!), mas que, indiretamente, podem mesmo levar a arranjos empíricos. Um exemplo deste nível pode ser encontrado na publicidade, na vida quase “paralela” em que vivem “astros e estrelas” de televisão, ou mesmo muitos de nossos conhecidos, até mesmo nosso vizinho ao lado!

Esse terceiro nível pode, no limite, levar a imensas zonas de sombras, verdadeiros bunkers no meio da vida social. Vulgarmente, tais zonas podem ser confundidas com processos alienantes, embora “alienação” seja uma palavra metafísica demais para o propósito descritivo aqui. Alguns antropólogos ou sociólogos (ou mesmo psicólogos) poderiam denominar este nível de existência como nível cultural, de classe, de grupo, de sociedade, etc. Acho, honestamente, esse um dos mais complicados níveis de existência, pois ele não tem nenhum referente fora de si mesmo que possa, de modo ad hoc, firmar sua “verdade”. É a prostituição do signo, ligada ao campo do jogo de forças e da potência entre indivíduos e/ou grupos sociais. É neste nível que são afirmadas algumas verdades prêt-à-porter, e que nos dispõem os recursos heurísticos mais banais, no sentido de vida cotidiana.

Acho o terceiro nível perigoso, em suma. Mais e mais tenho achado perigoso o fato de um conjunto cada vez mais amplo de seres humanos, bípedes sem penas dotados de linguagem, constituírem uma manada, cada um sendo uma espécie de “gerador de significados” a ventilar pelo mundo, graças às redes tecnológicas. Eu mesmo, que ironia, estou fazendo isso exatamente nesse momento!

Não misturemos! Um manifesto pela individualidade radical

Primeiro, vejam este vídeo – bem interessante, cuja “filosofia” é de não misturarmos certas coisas, pois não dariam nenhum pouco certo…

Agora, eu gostaria de completar com minha “lista de desejos” do que eu acho que não deveríamos misturar. A premissa básica é: eu sou eu, você é você. Sim, somos seres independentes, embora interligados de algum modo. Mesmo assim, ser independente quer dizer: a) que você, e só você, sente uma dor; b) que só você, e somente você, vai morrer do jeito que você vai morrer; c) que nada, nem com a melhor das filosofias exóticas, pode garantir que você sinta algo que o outro sente, e vice-versa; d) que apenas você sabe o que pensa, acredita nas coisas que acredita (embora viva imerso num mundo de significados compartilhados). Posto isso, passo à minha lista ou (arrisco dizer) “oração” (sim, pois são muito mais desejos do que práticas cotidianas…).

Não vamos juntar, não vamos confundir…

1) Seu fracasso com meu sucesso; ou meu fracasso com o seu sucesso, a menos que eu seja o explorador, ou que eu seja o explorado;

2) Suas experiências pessoais, sobre o que quer que seja, com minhas crenças e valores – por mais que estejamos numa mesma cultura ou sub-cultura, é problema seu aquilo em que você acredita;

3) O caso particular com o caso geral: as regras de sua vida não necessariamente se aplicam à minha; seus medos, suas angústias, sua maneira enviesada de ver a realidade, não necessariamente têm a ver com as mesmas coisas que ocorrem em mim;

4) O seu mundo com o meu, suas fraquezas com as minhas, suas forças com as minhas;

5) Seu delírio com o meu delírio;

6) Sua experiência de vida, sua “senioridade”, com a  minha experiência de vida; você fala de um lugar muito seu, de uma mesquinharia que é só sua, não minha; as minhas, delas cuido-as eu;

7) Seu desejo de agradar, de “ser legal” (para ganhar alguma coisa), com minha ousadia, meu desejo de te falar que “F.U., eu falo o que penso”;

8) Seu gozo com o meu (leiam Lacan para entender);

9) Seus critérios do justo, do certo, do bonito, do feio; suas ideias sobre o que é melhor ou pior – não generalize, indutivamente, a partir de si mesmo. Não se ache um “exemplar” da espécie – lute pela impessoalidade gritante, pelo “imperativo categórico”;

10) Sua hipocrisia com a minha.

Uma coisa eu te digo: como a vida é um grande e insidioso jogo de espelhos. Como nos confundimos, como nos projetamos, nos alienamos, nos “externalizamos” em supostas regras “coletivas”, “compartilhadas”.

Alguém conhece poder maior do que ser um indivíduo?