Alguém sabe por quê?

polaroid 18

[The polaroids of Andrei Tarkovsky]

Porque são melancólicos todos os bichos atrás das grades, melancólicos, melancólicos os macacos mendicantes da Indonésia, e ainda os que sobraram no zoológico bombardeado em Al-Bisan, como também é melancólico um poliedro de vidro sobre a asa de um Messerschmidt feito de chumbo, e melancólico o Lúcifer de Franz von Stuck, com os mesmos olhos leitosos de um androide de Blade Runner, como também melancólicas, melancólicas, as garotinhas de Lewis Carroll, as crianças armadas nos campos do norte do Iraque, a menina Rosalia nas catacumbas de Palermo, e ainda as cento e oitenta e seis velas pelo aniversário de dez anos dos cento e oitenta e seis anjos da cidade de Beslan, além do mais, ainda porque são igualmente melancólicas as santas nas caves iluminadas dos sobrados, e as cruzes de beira de estrada, e as polaroides de Tarkovski, aquela obsessão de Tarkovski pela Rússia, aquela obsessão pela névoa que uns chamam de estilo, e no fundo, no fundo, é uma bruta saudade de casa, e porque mais, porque também são melancólicas, melancólicas, as bonecas nas redomas de Farnese, e todas as mulheres do Dr. Charcot, e todas as mulheres de Hopper, e ainda porque, entre outras coisas, também é melancólico o pequeno príncipe no deserto, lá onde uma vez Santo Antão enfrentou e venceu seus demônios, como, além disso, é melancólico, entre outras coisas, o velho piano polido, com um candelabro de cada lado, na casa de campo do poeta assassinado, hoje museu em Valderrubio.

Título original: “Nós, os melancólicos”, de Mariana Ianelli. Peguei daqui.

Lapsos obtusos (2)

(…continuidade do post anterior)

E) O domínio do código linguístico dá-lhe muito poder. Veja esta articulação de letras que estou fazendo. Considere o ‘contexto’ em que ela ocorre (ambiente virtual). Suponhamos que eu tivesse algum tipo de clarividência ou talento para articular esses caracteres de um modo superiormente criativo, diferente. Em algum ponto, por exemplo, alguma ‘empresa de conteúdo’ poderia querer me contratar. Por quê? Porque eu saberia articular o código.

e.1. Claro, eles poderiam me ‘contratar’ porque tenho amizade com algum dono de ‘empresa de conteúdo’, ou porque, de algum modo, o conteúdo do que escrevo fosse atrair clientes e, claro, dinheiro. Não há clientes, nunca; há dinheiro.

e.2. Mas será que vivemos, genuinamente, num contexto em que ‘empresas de conteúdo’ contratam pessoas e serviços por conta…do ‘conteúdo’? Difícil dizer. Algumas, talvez sim;

e.3. Mas o ponto que quero dizer é que dominar a linguagem (ou UMA linguagem) é o começo da aquisição de poder. Se você olhar o que você escreve como fonte de poder, você vai entender que o que você escreve (ainda mais se você for professor-pesquisador-“autor”) pode estar do lado da ação, e não da reação – ou seja, você pode, com o que escreve, realmente inscrever algo na realidade. Mas, para mim, o mais importante é:

*) O que o outro te diz (como texto ou não) é algo arbitrário; a diferença de uma pessoa ‘proficiente’ e de outra que não é consiste em que a que é consegue sintonizar um determinado ‘espírito de época’ (ou de grupo);

**) Se o que o outro te diz é algo arbitrário, então você tem certa autonomia, como ser-no-mundo (sujeito), de contrapor um código ao outro. Se um parecerista, por exemplo (no mundo acadêmico) lhe diz algo, a única diferença entre ele e você é que ele aprova ou não seu artigo; de seu lado, você pode fazer a letra dele valer tão ‘nada’ quanto a sua! Ou: o que o outro te diz tem quase o ‘mesmo valor’ do que aquilo que você diz. Então, por que há diferenças entre ‘textos/pessoas’? Pense…

F) Você pode ser ‘influente’ (sentir-se ‘autor’) em alguns contextos específicos (o imbecil do professor, ‘doutor e concursado’ que acha, por conta disso, que é ‘alguém’, pode simplesmente ‘se fazer de difícil’ em ambientes restritos como uma sala de aula). Há uma espécie de micro-sociologia do poder. Cada ambiente, por mais sem ar que ele seja, é uma ‘esfera’, onde ali vive e ‘prospera’ uma pequena colônia de seres. O problema é que, mesmo com o blá-blá-blá do mundo interconectado, cada um vive em esferas, as quais variam de diâmetro uma das outras – mas são todas, no fundo, pequenas.

f.1. Exemplo: um homem agressivo, troglodita, pode fazer da casa (esposa + filhos + animais) sua ‘esfera’ e sentir que ali, nesse espaço restrito, ele é ‘alguém’: pode mandar e desmandar, pode humilhar e pode ‘promover’. No trabalho, ele pode ser um verdadeiro “inútil”, desprezado por todos os colegas;

f.2. Espaços privados como esses tendem a assumir grande relevância quando a vida social é esvaziada. Quando o troglodita acima vai ao espaço social mais amplo, ele recua como um cachorro com o rabo-entre-as-pernas;

f.3. Outro exemplo: o professor que usa de seu ‘poderzinho’ para fazer alunos vulneráveis fazerem o que ele acha ‘científico’: aplicar questionários, transcrever entrevistas, ler o artigo dele (professor), e sem contra-partidas pedagógicas, e assim por diante;

f.4. Um exemplo final, sem conclusão: os ditos ‘anões’ ou ‘nanicos’ nas campanhas eleitorais: quem são eles? Moro num Estado pequeno; vi mais de 400 candidatos a deputado estadual/federal. Ora, por acaso eles acham que a ‘casinha’ deles, onde eles mandam com voz grossa e ar empolado, é a minha?

>>> Gregos, vocês tinham razão: a economia deveria ser algo do privado, da casa. Um desastre quando os pequenos ‘deuses de 3 súditos’ inventam achar que são alguma coisa na vida ‘além-esfera’ da cazinha deles…

Lapsos obtusos (1)

A) Por vezes, imagino o prazer indescritível de um escritor que, enfim, acha a combinação perfeita e implacável entre forma e conteúdo. Já sentiu algo próximo do vislumbre desse momento, quando o sentido (pessoal) transcende, mas incorporando, o significado (coletivo, instituído)?

B) Em eleições gerais – por exemplo, como as para presidente, você consegue entender como a democracia, pelo menos à brasileira, é um impropério. FHC, nosso antigo presidente, diz que quem vota no PT é “desinformado”. Fazia tempo que não me lembrava do velho FHC, mestre em metafísica sociológica, a sinalizar a todos nós o quanto ele sabe, o quanto ele está próximo à “verdade” e nós não. Ou ele realmente estaria?

C) O que significa, essencialmente, o mito de Narciso, aquele lindo rapaz que, deslumbrado com sua própria miragem refletida na água, nela morre? Por que ficar às voltas com o mesmo, ou a mesmidade, é algo mortífero? Por que dar as costas para a alteridade (como se isso fosse possível) é o primeiro passo para a loucura, para o monólogo interior, o qual leva a uma ausência plena de tensão, motor de qualquer mudança?

c.1. Não seria porque o mesmo faz sentido? Mas, se sim, então o sentido é uma pequena ilhota, um ponto nulo na imensidão de um mar grávido de possibilidades (desculpem a redundância!), mas cansativo? Pois ‘infinitas possibilidades’ é algo belo no discurso, mas pesado na prática. A fisiologia é a melhor medida para avaliar o quanto somos: 1) escravos (no sentido de Hegel); 2) livres. Podemos preferir o conforto da ilhota-sentido ao inigmático (e mítico) mundo aberto.

c.2. Não seria porque, como indivíduos, embora influenciados pelo ‘social’ (blá-blá-blá), conseguimos capturar, controlar, segurar e ‘sistematizar’ algo da existência quando giramos em torno de nós mesmos? Pergunto ao espírito de Nietzsche: é pecado negar a vida? É pecado simplesmente reduzir a velocidade, o ritmo, a amplitude dos investimentos em coisas e seres que, no fundo, você despreza completamente?

c.3. Ficar ‘em torno de si mesmo’ é anti-natural, alguém poderia dizer. O mesmo não gera a diferença. Um homem não gera um filho sem uma mulher. O filho é a síntese dialética, o produto dos opostos. O que poderia gerar um self sem o outro, a alteridade? Mas qual o problema de Narciso morrer? Não sei, talvez haja algo que estou deixando passar…

c.4. Paradoxalmente, ‘sair de sei’ dá trabalho; na verdade, isso é, precisamente, o que define ‘trabalho’

D) Eu poderia (acho!) ficar olhando para um cachorro durante a eternidade. Mas me custa ouvir 10 minutos de conversa enfadonha de um outro ser humano. Freud, velho Freud, seria por que o ‘outro’ (cachorro) não é uma alteridade no sentido estrito e, portanto, não exige e não é exigido? Ou seria esta maneira de ver algo desatualizada com o que está envolvido na relação afetiva entre humanos e animais?

d.1. Talvez a fórmula de Glenn Gould, segundo a qual, para cada X  horas com um outro ser humano, é preciso ficar X vezes N horas sozinho (onde N varia de pessoa a pessoa, mas, segundo ele, ou para ele, era algo bem alto), se aplique a animais: eu, para cada X horas com seres humanos, preciso ficar, no mínimo, X vezes 1 com os animais, ou 10 sozinho.

Força

Qual o conceito de força? Por exempolo, baseando-nos na três leis de Newton, a força é uma grandeza capaz de vencer a inércia de um corpo, modificando-lhe a velocidade. E o faz tanto em termos de magnitude como de direção.

Vencer a inércia.

A força está na origem do movimento. Bom, poderíamos nos perguntar pela ‘metafísica da força’: para onde ela aponta? Pois, além de magnitude, a força possui direção. É um vetor.

A metáfora da força não poderia ser mais potente. Nosso corpo, para começo de conversa, exerce força – desde o movimentar-se até, menos obviamente, a força que exercemos sobre outras pessoas, tanto na forma de afetos (afetar) como de ideias (influência sobre a vontade, por exemplo).

A própria saúde, entendida em sentido amplo, é devedora de nossa capacidade de estar na origem de movimentos que, de outro modo, não teriam lugar. Ação é saúde. Fazer. Mudar. Afetar.

Outra força ‘subjetiva’ fundamental é o desejo. Nos colocamos em movimento quando desejamos algo. O desejo, como falta, leva à busca por um objeto que, na hipótese de conseguirmos, nos traria satisfação, felicidade. Prazer.

O desejo é o que nos leva a vencer a inércia.

Sem desejo, seríamos ‘coisa afetada’, e não ‘coisa afetante’. Sem desejo, beiramos ou cotejamos com a depressão – entendida como a ausência de movimento, como um retorno do self (do eu) sobre si mesmo, na forma de ressentimento, lamúria, não-ação.

Na psicologia do trabalho, por vezes desejo e força são tratados como sinônimos de motivação. Esta relaciona-se aos motivos, à direção e à persistência de uma ação. Uma pessoa des-motivada não se põe em ação.

O desejo, como força psíquica, é, a um só tempo, profundamente pessoal, singular, e também o desejo do outro. Ir no sentido do desejo do outro é tentar decifrar uma força que coloca o sujeito em movimento. A atração, por exemplo, tem esse efeito.

Mas ir no sentido do próprio desejo equivale a descobrir os motores do que impulsiona nossa ação. Nossas supostas ‘necessidades’ (embora desejo não deva ser confundido com necessidade).

Para mim, a grande questão é: como situar seu desejo num labirinto em que alguém já imaginou as saídas e alternativas. Desejar é, em certo sentido, transcender, transgredir o tabuleiro pré-determinado em que fomos lançados. O desejo é, na linha do que falei em meu post anterior, enlace entre o eu e o outro, entre o conhecido, o possível, e o improvável, o imponderável. Desejo e risco.

Vamos para os EUA?

Hoje quero comentar uma banalidade que me veio ao espírito por conta de um episódio, de uma ocasião de que fui testemunha de ouvidos. Realmente, prepare-se: é um post no ótimo estilo “non-sense”.

Claro que não tenho números exatos. Porém, quantos brasileiros gostariam de mudar-se para os EUA? Arrisco dizer que esse número não deve ser baixo.

Os EUA são, ainda, o sonho da pequena classe burguesa brasileira – e, com isso, não me refiro apenas à óbvia classe média, mas mesmo a certa sub-classe (em termos econômicos). Não o lumpen, mas um grande grupo social semi-qualificado.

Mas é da classe média que temos o sonho mais vívido de mudar-se para os EUA. De viver lá… lógico que seria bom!, mas, em isso não sendo possível, ao menos de lá estudar por um tempo, de conhecer o país a turismo, de consumir as coisas vendidas em seu imenso mercado.

Os EUA, como ideia (não como império bélico-econômico), são ainda uma miragem. Um sonho: o lugar das possibilidades. Para as ciências “hard”, um paraíso; para a psicologia (sobretudo a “psicologia científica”), não deixa a desejar, obviamente…

Há um aspecto subjacente a esse desejo de ir ou de morar nos EUA. O fato de ser o país em que as coisas “funcionam, dão certo”. Ora, mesmo após tamanha e recente crise, o país está dando mostras de já estar com um nível respeitável de crescimento econômico!

E quem não gosta de coisas que funcionam? De “journals” que publicam rápida e eficientemente? De um sistema institucional e jurídico (e, claro, econômico) funcional, confiável?

País de gente grande. Ir e voltar dos EUA, sobretudo se “a negócios ou estudos”, é sinal de que o neófito volta com “know how“, pronto para encarar a realidade “tupiniquim”.

[Aliás, a própria designação “tupiniquim” é ideológica e moralmente carregada, ok?]

Imagine. Se você faz um pós-doutorado nos EUA, você é, na volta, visto como alguém que foi para um país “sério”, profundo, que o marcou com as insígnias da “competitividade” (“Essa pessoa só pode ser boa, indo para os EUA…”).

Se vai para um país europeu, volta “filósofo”… E as estereotipias não param por aí.

O tempo todo, consumimos a ciência produzida nos EUA (dizemos que “adaptamos” o que se produz por lá para o contexto local, mas isso é ficção…); consumimos suas séries (eu mesmo, adoro!); consumimos seu “way of life”, seu modo de encarar a vida, de povoar e colonizar a Terra.

Alguns aí podem me acusar de retrógrado. Podem me dizer que parei, me fixei, nos anos 1970 ou antes, quando o “americanismo” era uma bandeira da esquerda “mais genuína” dos países “colonizados e subdesenvolvidos”, Brasil incluso.

Mas, fato é o seguinte: estou cansado, estou farto, estou enjoado de nossa tendência cultural a nos dimininuir como país e cultura, embora possamos ser tudo isso: atrasados, “gente não séria”, país de oportunistas, de gente sacana, de cretinos.

Virar um Policarpo Quaresma? Não, não falo disso. Virar um turista pragmático, que para lá viaja (neste ponto, espero que tenha ficado claro que uso os EUA como metáfora!) e usufrui do que seu cartão de crédito pode pagar ou financiar? Não. Não falo disso.

Falo em sermos menos idiotas. A impressão que tenho é de que miramos esses países como instâncias superiores de vida. Em parte, isso é fantasia. E, com isso, justificamos a lambança que achamos por bem administrar em nossa vida cotidiana, em nosso país, nossa cidade.

Saber e ignorância = a relação proporcionalmente positiva

Quero propor uma analogia. Eu a ouvi uma vez, e me veio à memória hoje. Está vendo as esferas acima? Pois imagine que cada esfera representa o quanto você conhece. Seu grau de conhecimento.

E imagine que todo o espaço ao redor da esfera represente o desconhecido.

Pronto. Agora considere o seguinte. Quanto maior o tamanho da esfera, maior a área em que ela “toca” o desconhecido. Portanto, quanto mais você sabe, mais você tem a clareza do desconhecido.

Isso explica porque algumas pessoas, que pouco conhecem, se acham as mais “entendidas”. Não é por maldade ou porque são empoladas: é porque elas, simplesmente, não conhecem, não sabem. Ou, se conhecem, conhecem pouco. Conhecem quase…nada!

A arrogância, a visão dogmática, tacanha, o caráter filisteu, reacionário, mesquinho, ignóbil, nada mais é, pois, do que pura e simples manifestação da ignorância, de uma “esfera” de saber minúscula.

Não vamos, portanto, inverter a ordem das coisas, ok?

O que há a ser (ainda) dito?

Às vezes, quando estou um pouco chateado, considero que temos pouco a acrescentar ao falatório geral. Se pensar, ‘tudo’ o que somos, enquanto seres linguísticos, já foi antecipado em ‘discursos’ (falas organizadas) que nos precedem. Trata-se do campo do ‘dito’.

Em relação ao dito, podemos ter pelo menos dois caminhos igualmente viáveis. Num deles, o de reproduzir. É o papel do ventríloco. Talvez nenhuma reprodução seja fidedigna, no sentido em que um tocador de CD reproduz este último (‘n’ vezes igualmente). Mas há ótimos reprodutores entre os humanos…copiadores (não tão criativos quanto um Vermeer, mas há…).

O outro caminho é trabalhar sobre o dito, e então produzir alguma ‘fala’ – num sentido mais propositivo, ativo, em vez de ser no particípio passado (‘dito’). Criatividade, singularidade, ou individualidade, inovação: sinônimos para esse fenômeno de criar o novo a partir do velho.

Na linguagem dos negócios, inovar é propor um novo produto ou serviço (ou procedimento, etc.) que se diferencie, dialeticamente, em relação ao que já existe. Pode ser uma ruptura, mas, decerto, rupturas nunca são radicais. Um poderoso computador de hoje não ‘rompeu’ radicalmente com princípios básicos de lógica (pelo que conheço!).

Talvez a mimêses aristotélica, de que já tratei uma vez por aqui, tenha um valor importante de reprodução: nós aprendemos algo quando imitamos alguém (veja a importância dos modelos em psicologia).

Mas chega um momento em que queremos sair da pura mimêses: é aí que podemos desejar sair do ‘dito’ para o ‘dizer’. Mas dizer o que? Algo que sentimos que precisa ser dito de outro jeito (redescrição pragmática)? Algo que nosso desejo nos impele a dizer (o prazer de dizer, o prazer de conexões de novos pensamentos, etc.)? As ‘lacunas’ do ‘dito’ (mote em ciência: justificar um trabalho com base nas lacunas existentes na literatura…)?

Não penso no nível profissional – o dizer profissional, digamos assim. Penso no sentido existencial. Dizer enquanto uma expressão de si.

Numa cultura individualizante como a moderna (a nossa!), o dizer está intrinsecamente associado ao self, ao eu. Fomos levados à ilusão de que, ao dizer, dizemos algo de idiossincrásico, revelamos nosso eu. Mas não conseguimos enxergar que nosso ‘eu’ é, antes de mais nada, uma produção coletiva. Um ‘eu social’, na melhor das hipóteses, iludido pelo invólucro do corpo (de fato, cada um tem um corpo diferente do outro!).

Sociólogos não cansam em relativizar nossa iniciativa e autonomia/autenticidade. Nosso discurso, o que dizemos, é produto de nossa classe social, de nosso nível social, do dialeto do grupo a que pertencemos, dos acessos a bens culturais que temos, e assim por diante. Uma visão de cima para baixo.

A psicologia, ao contrário, nos insinua que temos de encontrar nossa “voz interior”, temos de dar expressão a uma singularidade que é nossa, que nasce de nosso sofrimento de estar no mundo (e o sofrimento é profundamente singular), dos arranjos que fazemos com o princípio da realidade (x o princípio do prazer).

E então?

Uns se contentam em reproduzir, sem saber que o fazem. Outros, em fingir que são ‘autênticos’, ‘diferentes’. No meio disso tudo, algo inegável: temos de nos fazer com o discurso, com o repertório, a herança linguística que recebemos da história (História?).

Parênteses. Freud uma vez escreveu, a propósito não me lembro de quê exatamente (não importa!), que o indivíduo é uma espécie de ‘nada’, uma instância provisória aprisionada na jaula da espécie. Quando goza, é um prazer ínfimo concedido pela Natureza para que se sinta estimulado a procriar. Em termos da espécie, o indivíduo (=no sentido biológico), é paradoxalmente necessário e irrisório, dispensável.

Em relação à linguagem, talvez algo similar se processe. A Linguagem (com L), existe independentemente de nós como indivíduos (embora não como espécie, onde ela se circunscreve e faz … sentido). Porém, paradoxalmente, ela, a Linguagem, precisa de nós, como indivíduos, para a reproduzirmos e produzirmos. E, para nós, é como se não houvesse fuga: não há outro jeito senão falar ser falado (estar no contexto do ‘dito’). Afinal, o que seria de um indivíduo que optasse por “não falar”?

Não falar equivaleria a ser ‘dominado’ pelo outro (alguém fala, você só escuta, não reage). Se não falo, devo, ao menos, “ler”. Em alguma medida, ler é uma atividade passiva. Ler o mundo da passividade do lar, digamos nesta metáfora, é negar o mundo, negar a fala. Optar pelo silêncio.

Ou o silêncio seria uma forma de resistência?

Para encerrar. Nossa relação existencial com a linguagem é paradoxal e ambigua: ela nos ultrapassa, nos ‘anonimiza’ (nos torna anônimos, indiferentes, insignificantes), mas, ao mesmo tempo, é por meio dela, no jogo de suas forças, que encontramos algo que poderia se aproximar de uma ‘singularidade’ (na coletividade). Calar-se, como defesa, implica talvez num medo do sujeito em relação à perda de si na linguagem (‘tudo já foi dito’ pelo Outro). A perda nas conexões infinitas da linguagem.

O sujeito, diante da existência (simbólica – pois o ‘real’ do corpo é uma ‘coisa em si’), só existe se ele aceitar tecer, sustentar, iludir-se, etc., em conexões finitas, em possibilidades limitadas, e, como tais, insignificantes, mas, paradoxalmente, necessárias: para ele, indivíduo, como também para a ‘espécie’ (humana).

Ponto cego

A pessoa se sente “superiora” à outra: no seu íntimo, sabe que tem mais bom gosto, que sabe comer melhor, que conhece os melhores livros de literatura, os melhores vinhos, que tem o estilo de vida mais “nobre”. Deste lugar, olha o interlocutor como um pobre-coitado, sem estilo, vulgar – e imbecil.

Perante o outro, justificamos nossa vida como uma vida mais bela de ser vivida. Perante o outro, mas tendo apenas nós próprios como interlocutores, sentimos que tudo em nossos hábitos é justificado, valoroso, digno de credibilidade, autenticidade e verdade. A vida e os hábitos do outro são catalogados com os mais variados adjetivos, que vão do excêntrico ao ridículo.

Se o outro é um religioso fervoroso, e nós sequer religião temos, nos sentimos superiores: estamos do lado da razão, situados naquele ponto geográfico elevado em que as nuvens da confusão não nos atingem. Dali pensamos enxergar com exatidão a realidade: por exemplo, de que não há Deus, de que não há nada que faça com que nossa vida material e simbólica seja tolhida no presente em nome da eternidade a porvir.

Se o outro é um relapso à mesa, nos sentimos melhores, pois, ao contrário daquele, não nos entupimos com mussarela barata, carne gordurosa, doces absurdamente açucarados. Não comemos arroz em doses cavalares, nem farinha no café da manhã. Nos sentimos melhores porque comemos comida vegetariana, não jantamos pesado à noite, e porque consumimos água mineral de boa marca e preço elevado.

Se somos doutores por boas universidades, e passamos em frente a alguma dessas escolas particulares, com seus outdoors iluminados prometendo um “futuro profissional de campeões”, nos sentimos como a reencarnação de Aristóteles ou outros “iluminados” do passado, e, entre canto de boca (ou com a boca escancarada de dentes a gritar dentro do próprio carro), falamos “o que tem na cabeça os que estudam ali”. Sentimos como se estivéssemos diante de alunos de segunda classe, cidadãos de segunda classe, se enganando com uma formação mesquinha e seus R$ 199,99 de mensalidade por mês!

Se temos um currículo com algumas “dezenas” de artigos, nos sentimos intimados por nós próprios a nos achar especiais, e a ter todo tipo de direito de julgar a “vulgaridade intelectual” daqueles que têm apenas nome e formação estampados em seu Lattes, quando muito com algumas apresentações em congressos ou artigos publicados em revistas duvidosas, de Qualis inexistente!

Os exemplos poderiam se multiplicar. Na sua essência, teriam em comum o aspecto diletantista, a mentalidade conservadora, o desejo de status e toda a liturgia envolvida no processo de construção de uma consciência separatista, sujeita e disposta aos extremos para, se possível, exterminar o outro e a diferença.

Mas não é disto que quero falar. Quero falar de um fenômeno bem mais mundano e que pode ajudar a entender esse tipo de situação. Refiro-me aos pontos cegos que nós todos temos, e, como tais, não nos damos conta.

Nos achamos muito inteligentes, mas pode ter certeza de que alguém vai se achar ainda mais inteligentes do que nós. Podemos nos julgar melhores entendedores de vinho (diante de algum coitado que bebe “sangue de boi”, como se diz), mas haverá alguém que não teria qualquer peso de consciência em nos rotular de bárbaros ou de plenos ignorantes petulantes sobre vinhos! Podemos nos dar de entendidos perante um público de ignóbeis, nos dizendo entendedores e sabedores desse autor X (europeu ou norte-americano), mas, se por acaso caíssemos nos círculos efetivamente letrados, seríamos confundidos com algum garçon ou serviçal, fuzilados pelo esnobismo daqueles que, por condições materiais objetivas, tiveram o privilégio de poder dedicar suas vidas à aquisição de valioso e exclusivo “capital intelectual”.

A nossa vida é repleta de pontos-cegos, mas não temos consciência deles. Devido a esse problema, digamos, “óptico”, criamos as mais delirantes e inebriantes teorias sobre nosso próprio auto-valor (em geral, sempre nos justificando superiores). No fundo, precisamos dessas teorias próprias para esconder o fato de que somos todos insignificantes, sempre alocados em algum lugar numa hierarquia imaginária de valores e perfeição. Os que tentam escapar ou negar tal hierarquia criam outra estória para si mesmos, como se sua “marginalidade” contivesse, a contrario, tudo o que as pessoas imersas no mainstream não conseguem ter. Então, se não temos dinheiro, dizemos que a vida não é consumismo mesmo, e que os valores estão em outro lugar. Se não temos um Lattes digno de respeito (pelos critérios vigentes), então criticamos a produtividade, ou então nos escondemos atrás de uma suposta “superioridade daquele que só escreve quando tiver a ideia brilhante e revolucionária”.

Todos temos nossos pontos-cegos. Só torço para que esses pontos-cegos não se acumulem tanto naquelas pessoas em posição de gestão (pública e privada). Pois, nesses casos, sempre temos o ingrediente essencial para o surgimento de novos ditadores, psicopatas políticos, hipócritas, cínicos e inseguros de toda ordem – mas com poder, o que é sempre uma pólvora prestes a explodir. Enquanto seres-pequenos, como eu, você, tivermos nossos pontos-cegos, tudo bem, exceto certa comicidade nas relações cotidianas que fatalmente nasce dessas coisas.

Explicações

Tome-se os livros de Thomas Bernhard. Por exemplo, O NáufragoO Abatedor de Árvores (aliás, uma trilogia, da qual cumpre acrescentar Os Mestres Antigos). Estou fascinado por esses livros. Em cena, os temas do fracasso, do suicídio, do caráter artificial da vida cotidiana, da vida tout court.

Num ensaio de Lars Iyer, este observa (confiando na minha memória!) um aspecto que me chamou a atenção: o como Bernhard se fecha a toda possibilidade de uma alteridade, de um outro que faz compensar a vida.

Seria a negação da alteridade um moto para lamuriar pela vida? Pois o solitário inventa seu próprio cárcere – na ausência do amor, só nos resta reclamar (veja um livro recente e no mesmo veio: Asco, de autoria de Moya).

O que há no amor?

Por que um casal resolveria unir-se, se a vida a 1 é mais barata, mais simples, do que a vida a 2? Pois, a 2, tudo é duplicado: as coisas boas e as coisas ruins. Por exemplo: sozinho, se adoeço, me cuido; em casal, o outro pode adoecer, além de mim: trabalho em dobro! Dividir 2 leva a 1. Então, por que o “sacrifício”?

Olho à distância, com certo prazer sádico, casais, famílias, sustentando filhos. Por que tais filhos? Não há como explicar a aventura da paternidade/maternidade se não pelo amor. O amor é a pura e simples realização de TUDO sem pensar em nada em troca (contra certa visão de senso-comum de que temos um filho para “nos enxergar e nos reproduzir” nele).

Então, a base da reclamação, da lamúria, é pura e simplesmente a incapacidade ou a escolha de não amar.

O amor é, “simplesmente”, o sentimento mais idiota e mais sublime do ser humano. O mote que justifica tudo, os sacrifícios mais extremos e as compensações mais gloriosas. O dar sem esperar nada em troca. No fundo, sem pieguismo, o amor é um drive que substitui ou se sobrepõe ao drive estritamente econômico (pensar em si, maximizar o ganho pessoal). O amor é anti-utilitário, mas, paradoxalmente, é a mola propulsora da economia (veja-se o que se gasta com a criação dos “brilhantes filhos” de cada dia).

Então, o pessimismo, algo que tanto me fascina, me atrai, pode ser explicado pelo avesso do amor. Ou o amor pode ser a invenção mais sublime da vontade (Schopenhauer), destinado a driblar um fato: a morte.

O “eu” para o “outro”

Pense um pouco. Você acha sua vida fácil? Provavelmente, não; certo? A dor, doença, as insuficiências, as expectativas frustradas, as lacunas insolúveis do mundo e etc. Tudo isso é vivenciado individualmente, embora se possa compartilhar alguma coisa. A vida não costuma ser fácil. Se você não é rico, então, teve de construir-se a si mesmo: trabalho, carreira. Seu caminho pode ter sido facilitado por muitas pessoas, mas, ainda assim, certamente você sofreu para chegar aonde está, ainda que não tenha ido longe na vida (ainda).

Mas não é só, ou principalmente, de carreira que estou falando, nem de dor/doenças ou coisas do tipo, e como tudo isso pode tornar sua vida difícil. Estou falando da impossibilidade de transmitir nossa experiência, e, sobretudo, da impossibilidade de impedir o sofrimento do outro. Qualquer tentativa de impedir tal sofrimento implica em viver a vida pelo outro, em colocar-se como a solução para o outro. Uma espécie de muleta imaginária do outro.

A sensação de impotência em relação ao outro é, no mínimo, uma impostura diante de si mesmo. Ninguém deveria sentir-se impotente perante ninguém, a menos que, repito, se coloque no lugar de preencher o outro. Ou pior: a menos que o outro, mirando em seu narcisismo ferido e em sua vontade de amor, lhe provoque culpa, esse sentimento ardiloso que lhe enfraquece. Culpa e desejo de reparação são duas faces de uma mesma moeda. Não digo que não é necessário, para a convivência intersubjetiva, a culpa recíproca; estou dizendo que a culpa, em certas circunstâncias, é uma armadilha.

Em três situações ocorre a sensação de culpa e a possibilidade de captura imaginária pelo outro. Primeira, na esfera afetiva, da sexualidade. Segunda, entre pais e filhos. E, terceira e mais relevante neste post, a relação professor-aluno.

Quando o aluno não aprende, sentir-se-ia o professor culpado? É difícil dizer. Pois a aprendizagem depende, de fato, do professor, mas não só. Alunos relapsos, descompromissados, perdidos em suas próprias angústias, podem, sem qualquer dificuldade, insinuar culpabilidade do professor. Então, o que faz este? Se cair na armadilha, se enfraquece. Se sentir-se unicamente culpado, não conseguirá denunciar a falta no aluno, não apenas nele (professor). Na verdade, ambos, professor e aluno, estão às voltas com alguma falta, e nada deverá superar essa falta fundamental (a incapacidade de aprender, de evoluir, de um lado; e a incapacidade/limites da transmissão, de outro).

Entre colegas de trabalho algo similar ocorre, especialmente quando um desses colegas têm alguma “visibilidade” (está em alguma posição de gestão, por exemplo, ou de pionerismo). Colegas espreitam o tempo todo tentando farejar alguma falha que, a depender de sua magnitude e impacto, não tardará a insinuar em você. Ou então, situação grave, o grupo se alia em torno de uma desmobilização em que ninguém deseja nada, e, portanto, ninguém está exposto à falta (só percebe a falta quem deseja, ou só deseja quem tem falta). Grupos anômicos, afetiva e profissionalmente, são reflexo disso.

Em suma. Não assumir a falta do outro, e, não obstante, continuar a desejar por si e para si, essa é uma linha de ação mais favorável à potência do próprio eu. Então, deixemos o outro com suas angústias; elas não nos dizem respeito. O outro é (supõe-se) um adulto, e adultos são livres e responsáveis por suas escolhas e sobre seu próprio sofrimento. Com isso, gera-se uma ética do individualismo? Não creio em tanto. Talvez, com isso, se gere uma vida mais cruel, no estrito sentido de crua, real. Mais thymos, menos eros!