Romance

Ok, estou empolgado, então, vou aproveitar. Estou lendo, nos últimos tempos, romances russos do século dezenove. Aí, como ali se fosse o caso da janela (ver post abaixo), fico com a tentação de ficar contemplando o passado narrado pelo autor e pensando, Poxa vida, como esse pessoal de antigamente era estranho. Por exemplo (todos os livros são do Dostoievski): parecia que as pessoas viviam em função da imagem social que elas tinham – se eram bem vestidas, se o corte de cabelo era adequado, se o jeito e os modos eram os mais nobres, se a mulher era virginal e prendada, etc. Parecia que, ao menor deslize, a vida de uma criatura poderia cair em completa ruína, como quando, por alguma razão, a mulher se casava e então o marido a “devolvia”, ou então se um homem, por qualquer razão, levasse um safanão de outro. Também, causa, hoje, a mim pelo menos, certa vontade de dar risada quando, na descrição de vários casos, o autor menciona que a dama tal declarou seu amor infinito e irrestrito ao cavalheiro tal, ou vice-versa.

Mas eis que se pensarmos bem, estaríamos nós livres de excentricidades parecidas, mutatis mutandis, o tempo que nos separa, neste caso, do século dezenove?

É por certo tentador, e até lugar-comum, pensar em como, nas mesmas circunstâncias, seríamos lidos ou avaliados por nossos conterrâneos a daqui, digamos, mais 200 anos. O que eles pensariam, caso, por alguma curiosidade muito específica, lhes caísse no colo um desses nossos romances escritos atualmente, repletos de menção a celulares, computadores, e o diabo?

Mas o ponto que queria deixar registrado, como sempre para mim mesmo, é que não precisamos esperar tais duzentos anos para projetar algumas conclusões óbvias. Por exemplo, embora os rituais possam ter mudado alguma coisa quanto a sua aparência, o fato é que ainda nos movemos por aquilo que os outros pensam de nós, sendo ‘os outros’ não o vizinho (embora, em geral, o vizinho pese muito, assim como a família expandida), necessariamente ou tão somente, mas praticamente uma instituição social. Não nos julgam, talvez, pelo jeito que nos vestimos (embora acho que julguem, sim), mas, se você for homem, pela carreira ou profissão que você tem, pelo carro que você dirige, pelo tamanho da sua casa, etc. Uma forma cabal para descobrir nossos valores instituídos, e nem sempre tão óbvios (embora, com certeza, muitos o sejam) é observar o que as mães esperam para seus filhos e, se for o caso e especialmente, suas filhas. Converse com uma mãe, aí na sua localidade. O que seria um “bom partido” para essas mães, no caso de terem filhas, ou uma “moça decente”, se tiver um filho? Haveria uma mãe, de classe média vamos dizer, esperar que sua filha se case com alguém que é caixa de supermercado e saiu da escola ainda no primeiro grau? Você aí pode me dizer que, Poxa, mas uma moça de classe média, que tem ali sua formação superior e já está de alguma maneira inserida no mercado de trabalho, teria lá ela o que para conversar com alguém que atua, de fio a pavio, como caixa de supermercado, e, nas horas vagas, frequenta uma igreja evangélica qualquer? Ah, mas não é assim tão simples, não é? Acho que somos muito previsíveis, passe o tempo que for.

Quanto a mim, e ao que gostaria por fim de registrar novamente, é que precisamos ter muito cuidado, examinar com atenção (sem, claro, acabar sendo um obsessivo nisso), o quanto nossas decisões ‘pessoais’ são movidas por esse circuito social em que queremos, no fundo, absolutamente uma única coisa: reconhecimento (psicanaliticamente, arrisco dizer, tal coisa única seria amor).

Mas, todos sabemos, eu acho que todos sabemos, que o amor próprio, ou o auto-conhecimento não é o suficiente; precisamos do amor dos outros e, ato contínuo ou mesma coisa, de re-conhecimento. Há muito romantismo, mistificação, na ideia de que alguém pode fincar-se em si mesmo o baluarte de sua segurança ontológica, ou seja, seu porto seguro existencial, onde se sente bem, centrado, autêntico, coerente e etc.

De fato, claro que tais pessoas existem, e não nascem por aí facilmente; talvez uma em algumas centenas de milhares. Alguns atalhos existem para essas pessoas também, é claro, como uma herança sólida e estável (cortar o cordão umbilical da dependência financeira já é um passo, necessário, mas não suficiente, para alcançar o status de dandi, isto é, alguém com luz própria). Luz própria, ser seu próprio sol, etc., são coisas muito difíceis e que implicam, para além de uma suposta herança, alguma disposição muito radical de espírito. Se você considera alguém como Nietzsche, por que não, talvez se tenha aí alguma ideia desse tipo de pessoa, um individualista radical, quase estético, mas brilhante – sentado, portanto, sobre sua luz própria, seu próprio pensamento externalizado e materializado em obras.

Mas veja, apenas por alusão que, em vida, Nietzsche ainda não era o que ele se tornaria depois, então, ele estava em algum ponto cego no jogo do reconhecimento social e ainda assim, ou por causa disso, persistiu. Em suma, parece que, passe o tempo que passar, ainda estaremos dentro de uma moralidade assentada na necessidade de reconhecimento. Se não há, digamos, um parentesco universal que nos una e iguale; se não há, também, uma única religião que nos torne a todos filhos e irmãos (apesar de que qualquer sistema religioso deturpado, como é a maioria, acaba sendo um dos mais poderosos instrumentos de naturalização ideológica); então, precisamos criar e viver dentro de sistemas que estabelecem critérios mais ou menos aceitos acerca de quem é quem, quem tem valor e quem não, quem merece ser amado e quem não.

Se você, como eu, não tem fortuna alguma, mas apenas a si mesmo, imerso aí em algum micro-sistema de valores e recompensas (o meu é o mundo acadêmico), então, boa sorte: como numa pirâmide, indo de baixo para cima, a base (mais larga), mesmo o meio (ainda relativamente largo), representam o olhar do outro, dos sistemas variados de distinção e valorização; a pontinha, bem lá em cima mesmo, no cume, e olhe lá, como alguém quase afogado dentro de uma sala fechada e cheia de água, só com um centímetro para respirar e esticar o nariz, há a chance de alguma vida que rompa, pelo menos quanto ao essencial, com esse marasmo cultural, social e etc. que nos envolve a todos, que conduz nossas vidas e, para piorar, nos engana ao nos dar a impressão de que somos nós que pensamos com a cabeça própria (na verdade, a rigor, não é ‘culpa dele’ — já pensou viver, com 7 bilhões de outros humanos, cada um sendo mais original e ‘radical’ que o outro?).

Sério, sendo honesto para mim mesmo: a única forma de manter tal pico de lucidez e, vá lá, originalidade, é se amando muito, não necessariamente (embora possa sê-lo, claro), de modo narcísico, mas se amando como um ser absolutamente irrepetível e singular, sob qualquer ponto de vista, inclusive cósmico. Se você não aguentar viver turbulências infinitas, então cale-se, deixe esse ar blasé de lado, tente colocar em si alguma pitada de cinismo, e mergulhe proficientemente nesse mar de previsibilidade dificílima que é a vida moderna. Não é fácil ser uma pessoa, isso que quero terminar dizendo.