Qual o sentido?

Por estes dias estava com algumas ideias na cabeça para um post. Uma, era sobre o sentido de ver a vida pelo retrovisor, vamos dizer assim. Qual o sentido do passado? Estava pensando que podíamos vê-lo quer como nostalgia, é claro, mas também como lembrança (com conotações afetivas isoladas dentro do nosso psiquismo – de tal modo que a gente se lembra dos afetos envolvidos, mas, misteriosamente, nos tornamos como um duplo em relação a eles: sentimos mas não nos afetamos como se estivéssemos ainda lá, naquela imagem vivida no passado), ou como objeto de luto.

Tudo isso foi disparado quando um colega, em relação a um assunto profissional específico, me disse, “well, then move on“, ou algo assim, ou “past through”. Ele não tinha ideia do impacto que isso teria em mim, tampouco eu próprio. Mas, dentro de mim abriu-se esse insight de que podemos de algum modo nos separar, de fato, das experiências vividas no passado e “nos movermos para além delas”, ou, em bom brasileiro, “tocar a bola”.

Mas é sobre a outra ideia que gostaria de falar um pouco mais. Estava refletindo, dia desses, sobre uma situação bizarra, embora provavelmente real, que me veio à mente: como uma pessoa, particularmente uma mulher (não sei por que, mas a imagem feminina incorporou esse pensamento em mim), consegue justificar o fato de estar com alguém? Para ser mais específico, fiquei pensando: como algumas mulheres permanecem casadas com algumas figuras aí da nossa vida política, pública, atual (não me interessa citar nomes, afinal, eles são completamente irrelevantes, especialmente essas pessoas em quem estou pensando)? Como elas justificam seu amor? Teriam elas a capacidade de enxergar algo de bom nessas pessoas com quem estão vinculadas?

Não creio que seja amor. Ou até pode ser, eventualmente. Mas não creio, mesmo, que seja amor. Ocorreu-me, num viés um pouco sombrio, admito, que essas pessoas conseguem justificar, racionalizar, a situação; por extensão, ocorreu-me que todo mundo consegue justificar tudo, pois a linguagem tem uma ampla maleabilidade, permitindo a construção de histórias que, sem uma análise em perspectiva, parecem verossímeis. Acho, inclusive, que tais histórias despertam algum nível de dependência primária dessas pessoas, dessas mulheres, no meu raciocínio (pense, por exemplo, nalgum presidente da república em algum país, ou então em algum ator de cinema, ou jogador de futebol, ou então em qualquer personalidade de moralidade muito duvidosa: não são pessoas solitárias; em geral, são casadas, sem mantêm em algum relacionamento; ou seja, contam histórias, constroem narrativas, à noite, em casa).

Mas, enfim, meu ponto todo é chegar a uma incrível coincidência do destino. Assisti o filme A hidden life, o último do diretor Terrence Malick. O personagem principal tem uma profunda convicção: a de que não é moralmente correta a guerra de Hitler, e ele simplesmente se recusava, como cidadão austríaco convocado para a guerra (e obrigado a tanto, sob risco da pena capital), a ir para o front de batalha e jurar, ainda que “só para inglês ver”, lealdade ao ditador. Ele colocou tudo, absolutamente tudo, em segundo plano em relação a essa convicção, especialmente mulher e filhos. E a mulher aceitou, compreendeu e entendeu essa escolha.

Ao mesmo tempo, o filme provoca sobre uma questão mais ampla: qual o sentido da vida? Bom, eu não tenho pretensão de discutir em profundidade o filme aqui, pelo menos não por hora. Só achei, como disse a pouco, uma tremenda “coincidência” ter me deparado com essa narrativa que constroi uma história que tem o total apoio, no caso, da mulher do protagonista, apesar da imensa perda a que ela é sujeita. Ela acreditava na narrativa do marido, e o apoiou até as últimas consequências.

Claro, neste caso fica “fácil” analisar as coisas, pois temos o feedback histórico e sabemos o que aconteceu com Hitler e sua guerra. Sabemos, agora, que a decisão do personagem faz algum sentido moral mais amplo, e que, de algum modo, a mulher dele havia percebido isso (estou apenas supondo; afinal, um casal, no arranjo do amor, talvez funcionasse dessa maneira, com um apoiando o outro na radicalidade de sua individualidade, sem jamais esperar que o outro “pense” na situação daquele que não está abarcado por essa radicalidade). Mas a mulher sabia, à época? Haveria como ela ter a ideia mais ampla, universalmente falando (humanidade) do que estava em jogo com Hitler, a Alemanha, o resto do mundo?

Voltando a meu raciocínio inicial, e aproveitando a metáfora: saberiam essas mulheres desses personagens de nossa vida pública atual algo que não sabemos? Estariam elas enxergando algo mais amplo, ainda que inconscientemente? Não, eu duvido. E, de novo, o filme é claro nesse sentido: acreditamos em qualquer coisa, não vamos muito além em defender valores e moralidade de alcance, digamos, universal. Justificamos tudo, na pequenez mais abjeta. Achamos que nossa vida vale muito, que, portanto, tudo o mais é “só para inglês ver”, e que pequenos deslizes aqui e ali não representam a escória do que pode se tornar um ser humano, mas apenas algo “menor”, não importante. Achamos que pessoas orientadas por valores universais são idiotas, e que uma vida é muito mais importante que um ideal ou do que a cumplicidade com algum preceito ético kantiano, imperativo.

O valor de uma vida, na nossa sociedade atual e na concepção dessas mulheres (só as estou utilizando, repito mais uma vez, alusivamente), é o valor de uma narrativa, de uma crença, cujo conteúdo de verdade não sabemos ao certo, exceto que são verossímeis em um dado contexto. Especialmente narrativas ao redor do corpo (prazeres, conforto, segurança, aparência). Mas nunca, ou só em casos excepcionalmente raros (como ilustrado pelo personagem no filme do Malick), um ideal é ‘confirmado’ com o corpo. Em última instância, só sabemos o quanto estamos dispostos a sustentar um ideal quando, no mesmo ato, estamos dispostos a ‘financiá-lo’, por assim dizer, com esse mesmo corpo mimado que serve de palco para nossas narrativas atuais, capazes de justificar as maiores atrocidades, os mais insuportáveis absurdos.

Cito a frase com que o filme é encerrado, e que é muito bonita, e que deixo registrada, quem sabe, para a ela voltar algum dia. É de George Eliot:

..for the growing good of the world is partly dependent on unhistoric acts; and that things are not so ill with you and me as they might have been, is half owing to the number who lived faithfully a hidden life, and rest in unvisited tombs.”