O galo

Na véspera de natal notei uma diferença ao acordar. Havia, em algum lugar no bairro, um novo visitante, por sinal bastante ruidoso: um galo.

Não há como não ter estabelecido conexões remotas. Praticamente em toda minha infância eu acordava com o som de um galo cantando. O som tornou-se habitual.

Depois de desperto, fui tentar descobrir de onde, afinal, provinha o som e estava o ilustre ‘cantor’. Foi então que descobri que a ave estava na casa em frente ao prédio onde moro.

Achei estranho, pois o galo estava simplesmente solto no quintal da casa, e, ao contrário dos galos que conheci na infância, esse, apesar de caracteristicamente belo (robusto, preto e com cristas vermelhas), estava visivelmente confuso. Então, além de ‘cantar’ com o surgir da alvorada, ele fica fazendo a mesma coisa o dia todo. Acho que ele estava, imaginariamente, conclamando seu pelotão de galinhas, mas não havia sinal de nenhuma… Era um galo sem galinhas, um galo sem galinheiro, um galo deslocado e perdido.

Confesso que, de quarta (24) até hoje (26), o galo me irritou um pouco, pois ele realmente ‘cantava’ muito. Isso só aumentou minha curiosidade: afinal, que raios fazia um galo em plena zona urbana?

A princípio, deduzi tratar-se de algum novo ‘bicho de estimação’. Exótico, é fato, e bastante improvável, mas minha ingenuidade (ou esperança) me iludiu dessa forma. Depois, algo de mais sinistro (e provável) me ocorreu: esse galo ali estava para, em algum momento entre natal e ano novo, ser morto e comido.

Tentei apagar a última hipótese. De repente, o galo some. Pensei: mataram e comeram o bicho! Mas, horas depois, eis que ele reaparece, e hoje pela manhã eu novamente acordei com seu canto ao mesmo tempo imponente (como lhe é característico), mas confuso, dúbio…e, em alguma medida (pude senti-lo ou meramente imaginá-lo), amedrontado. O canto de quem, como eu, não estava entendendo nada do que se passava.

Sai à tarde. Imediatamente quando chego ao prédio e o portão se abre, escuto o galo – mas, desta vez, claramente ele estava tentando fugir. Imaginei que seus anfitriões pudessem estar tentando capturá-lo para levá-lo para fundo do quintal para que ele pudesse ‘dormir’ (segunda ingenuidade minha). Ao subir o elevador e chegar ao apartamento, escuto um ruído diferente do galo. Algo como um ruído desesperançoso, última súplica a uma dúvida cuja resposta ele nunca terá. A dúvida do porquê. Na verdade, acho que a própria dúvida sobre “o que”.

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Na mitologia, o galo representa a ressurreição solar. Ele anuncia o nascimento do sol, o fim da escuridão, o raiar da alvorada, a entrada de um novo dia depois de um período de trevas.

Na tradição cristã, representa a nova luz, a missa da meia-noite, aquela na qual se anuncia o nascimento de Cristo. A missa do galo…

Em alguns países (Japão, França, Portugal), o galo é símbolo em importantes rituais nacionais. Em Portugal, por exemplo, era costume levar um galo à missa: se ele cantasse, era sinal de que a colheita seria boa.

O galo simboliza, portanto, a ave da alvorada, a ave do anúncio da recuperação da vida sobre a terra, representada pela luz. É a ave da vigília – não como a coruja de Minerva, símbolo da filosofia, que enxerga à noite e está sempre atenta, mas da vigília do despertar, a vigília da reverência à manifestação do sol. Representa Apolo, deus do sol.

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Muitos povos, Brasil incluso, desenvolveram, ao longo de sua existência na Terra, o estranho (mas ritualístico hábito) de devorar presas para delas extrair sua potência. Canibalismo tribal.

A cultura brasileira, rica em sincretismos variados, consegue unir tudo em tudo: se se come um galo, nas vésperas ou após o natal (ou antes do ano novo), isso prenunciará um futuro “cheio de luz, paz e sabedoria”. Então, várias pessoas se reunem, matam um galo, o devoram cozido de uma panela… e, pronto, basta esperar a boa-aventurança.

A cultura brasileira, ao mesmo tempo em que reconhece, em algum nível, a simbologia, a mitologia, a imaterialidade contida em um signo (neste caso, uma ave), também passa ao ato, transcende o nível delicado do símbolo e mergulha na concretude mais visceral, carnal. Nesse sentido, é ignorante em um nível essencial, um nível que pressupõe a transposição de um nível corpóreo (significante) para um nível incorpóreo (significado / o lekta dos estóicos), mediada pelo corpo (pelo comer e pela integração a si).

De outro lado, e aqui reside a essência de minha argumentação, não seria no mínimo algo muito hipócrita sacrificar uma vida para celebrar o ‘futuro brilhante’ de outra vida, individual e mesquinha? Na Bíblia, Abraão sacrifica seu próprio filho a Deus. No Novo Testamento, Jesus (cordeiro) é imolado em nome de Deus (seu pai). O sacrifício. Mas, neste caso (do galo), estamos diante da mesma magnitude espiritual?
Eu sei, eu sei – todos nós, em festas como as de natal, mergulhamos em uma profunda (eu me incluo) ignorância, um manto de esquecimento e indiferença magnânimos: desde a velha estória de festejar em família, mas pouco se lixando para a família ao lado, até festejar “a vida”, o “renascimento”, às custas da morte. E, repito, em condições que nada têm a ver com “sacrifício” em nome de uma “causa superior” que não seja o entupimento ganancioso de bocas fanfarronas e, depois da algazarra festiva “pela vida, paz e pela harmonia”, das latas de lixo.

Em algum lugar alguém deve ter dito o quão hipócrita é uma cultura, e que tal hipocrisia, de alguma maneira, constitui parte expressiva dessa mesma definição de cultura. A cultura é nossa morada, nosso mergulho no coletivo, mas também, ou sobretudo, na barbárie (ainda que hoje ela pareça branda e ‘civilizada’).

Obs.: a sorte, para os humanos, é que a cultura é também o registro de sua vitória (aparente) sobre a natureza. Meus vizinhos, no seu fulgaz momento de canibalismo coletivo, devem, inconscientemente, ter se sentido poderosos. Sorte deles (sorte nossa?) de que a ‘presa’ não era um animal feroz, muito mais forte e menos acuado que um galo. É nessas horas que vemos como o ser humano é patético (como indivíduo) e privilegiado (como espécie).