Médico ou marketeiro?

O exemplo não se aplica apenas a médicos, mas vou usá-los como bode expiatório.

Acho que foi por volta dos anos 1990 que ocorreu o que ‘marketeiros’ (!) chamam de virada em direção ao cliente. A partir de certo ponto, tudo virou ‘estratégia’, e não bastava, apenas, investir nos saberes técnicos, mas fazer com que as habilidades de comunicação fossem incluídas como ‘competências técnicas’, ao menos em um sentido ampliado.

Ok. Se pensarmos naquele médico (todo mundo mais velho deve ter um exemplo disto!) bruto, que mal olha para o rosto do paciente, e que se limita a prescrever uma receita ou balbuciar algo intelegível, estamos em melhores condições, hoje.

Mas, talvez tenhamos ido longe demais, faltando aí uma calibragem. Em certos momentos, fico com dúvida se médicos estão estudando medicina ou publicidade e propaganda. Ou então um tipo de psicologia estriônica, em que você precisa colocar um ‘post it’ na parede em sua frente para sempre se lembrar de ‘ser gentil’ e ‘comunicativo’.

Seria preciso realizar um experimento, talvez. No grupo controle, temos pessoas que recebem atendimento de um médico “às antigas”; noutro, no grupo experimental, pessoas que recebem um atendimento mercadológico, por assim dizer: “Olá, sou o doutor Pipeto, e a partir de agora vou estar te atendendo, etc.”. O tal médico bruto, no grupo controle, é, em compensação, um House disfarçado, sabe de tudo, um fodão, como se diz em linguajar eclesiástico. O outro, um médico que, no passado, foi um estudante medíocre, talvez muito mais preocupado em ser ‘doutor’ do que em entender como desenvolver, cuidar e manter um corpo vivo.

Adivinha? Se aplicássemos uma escala (também um fetiche de nossa cultura do marketing) de satisfação, em qual situação você acha que haveria um maior índice de aprovação, etc.? A ver.

Então, o médico-publicitário vem até você, com aquela cara de paciência e ‘compreensão’, para tentar te ‘patronizar’ (veja a expressão em inglês, to patronize; muito boa), explicando, ‘didaticamente’, o problema com seu corpo ou com o corpo de seu animal de estimação (veja post mais abaixo aqui). E aí você é banhado com os frutos suculentos da cultura da “popularização científica”. Afinal, de fato termos médicos são de acesso difícil – por que somos tão classistas? Porque somos uma cultura de iletrados. Só para te dar um exemplo: imagine aí um lacaniano tentando ‘simplificar’ seus conceitos! Conceitos científicos são popularizados até certo ponto!

Enfim, e você fica com cara de que entendeu, e o doutor-publicidade fica satisfeito consigo mesmo por ter sido tão ‘digno’ de se ‘rebaixar’ ao nível do ‘leigo’ para explicar algo que, para começo de conversa, nem o tal doutor pode entender a fundo. É uma loucura, uma cacofonia, se você pensar – ou seja (popularizando): uma farsa.

O que fazer, então? Voltar à cultura do bronco, do doutor-sabe-tudo-e-eu-obedeço? Lógico que não. Mas, ao perder o equilíbrio, a justa medida como se diz, a gente acaba indo parar no extremo oposto: de um lado, o bronco estúpido; de outro, o marketeiro que sabe mais como agradar o cliente do que em colocar a mão na massa e salvar vidas. No meio disso tudo, temos os Dr. House, mas sem a arrogância (ok, até que justificada, no contexto). Quem sabe, faz; pois, no fim do dia, é o fazer que decide.

Ah, se quer ver a coisa melhor, procure aí no Google uma reportagem sobre “doutor, não; mas influenciador”. Ou algo assim. Aí, sente e comece a se preocupar.