Ficções 2

Eis que encontro outros registros de R. Desta vez, ele relata estar indignado com o sorriso do espaço público, ou melhor, no espaço público. R. está convicto de que o sorriso, sob certas circunstâncias, é o inverso, o engodo, ou o malogro, da sinceridade. O sorriso é o cúmulo da parvice, na concepção de R. Quanto mais se sorri, e aqui o “sorriso” deve, segundo R., ser interpretado/tomado em sentido amplo (como um gesto de conveniência/conivência ao outro), menos se tem de controvérsia e sinceridade.

É histórico. Por detrás do sorriso elogioso, esconde-se a convicção, cínica, de que o outro é um boçal, mas de quem você precisa para alcançar seus objetivos mais “pançais” (de pança, segundo R., e em sintonia com post já publicado aqui sobre o tema). E o sorriso do “rosto”? Por exemplo, para Levinas, o rosto, o semblante, é o ícone da alteridade, do estranho. O rosto humano nos causa uma reação inevitável, nos interpela à alteridade. Mas, para R., tudo isso é literatura. Para R., o sorriso, sob certas circunstâncias, é puro ocaso.

Não era minha intenção; não gostaria de “questionar” os registros de R. Mesmo assim, eu lhe dirigiria, mesmo que a posteriori, um questionamento: e então, R., devemos, todos, nos tornar, nos assumir, carrancudos? É difícil de responder a isso apenas com os registros póstumos de R. E nem acho que o próprio R. teria uma resposta trivial para a questão. Porém, o ato de ser “carrancudo” pode denunciar, sim, vis-à-vis os registro de R., um desencaixe. Primeiro, um desencaixe egoísta de si com a situação. Quanto a isto, pode ser que se explique porque certas pessoas simplesmente não conseguem “fazer-se” com outras, no aqui-e-agora: elas vivem num tempo atemporal (R. pede desculpas pela contradição!).

Não viver na temporalidade cotidiana implica em certa ignorância, em uma forma de alienação. Quem assim vive, prefere encontrar a energia em si mesmo, e vê a vida cotidiana como um pálido reflexo do instinto de sobrevivência, da eterna recriação, pela Vontade, de cenários fantasiosos em que nos enganamos, de forma “necessária”, na convivência e na estética das interações.

Quem vive para si, diz R. (no sentido acima aludido), é um metafísico. Essa pessoa impõe uma verticalidade nas situações, um eixo magnético, carregado em sentido inverso, que expele, a partir de si, tudo o mais como supérfluo. A verticalidade, o mergulho “no si”, é, metafisicamente, superior ao viver na horizontalidade, na orgia da vida cotidiana. É assim que pensa R.

A segunda forma de desencaixe é entre o sujeito e o ator, entre o eu e seu papel. Para R., representar é, por definição, uma forma de corrupção. Mas o representar pode ser, questiono-te R., uma forma de verdade. A verdade por contingência. A verdade histórica. A verdade tecida pela pele secular que se interpõe entre nós e o outro num determinado momento desta vida na terra.

A discussão, com certeza, seguira para bem alhures, no caso de eu continuar a descrever os relatos de R. quanto ao tópico. Vou parar por aqui. E com um desafio: e o que dizer do rosto “carrancudo” motivado por uma dor de barriga? Por que esta forma de egoísmo é tão atávica, anímica, e, ao mesmo tempo, tão socialmente “palatável”?

*** Eu, proprietário deste blog, apenas relatei o que tinha aqui escrito em algumas anotações antigas, referentes à minha convivência com R. Em Ficções, vou revelar a vocês outras coisas bem estranhas de R., um grande amigo meu da infância e adolescência.