A manifestação da massa

Tenho, como todo brasileiro, acompanhado as manifestações de protesto por todo o Brasil. Hoje, dia 20, no RJ, as imagens são absolutamente impressionantes: no mínimo 300 mil brasileiros tomaram a Avenida Presidente Vargas, em clima pacífico, com cartazes, faixas, com a bandeira do país em punho.

Acho que a quantidade de material antropológico é imensa. Gostaria de registrar algumas impressões.

1. O país do carnaval e da carnavalização. Um país, pense bem, que é um país ‘coletivista’, ‘festeiro’ no bom sentido: como não fizemos isso antes? Se você observar, verá que há de tudo, uma verdadeira miscelânea, quase como vemos no carnaval. A mídia, imbecil como quase sempre, chegou a comentar que se trata de manifestação sem propósito, “uma imensa frescura” de estudantes… . Nada de mais errado, nada de mais ridículo sobre o país, sua cultura e seu povo (embora a mídia, os jornalistas, sejam também brasileiros…);

2. O trabalho não é, em tese, o foco principal do evento, que deixou de ser um grande protesto e se tornou um ritual coletivo. De fato, desde os primeiros eventos, o número de pessoas só tendeu a aumentar. Hoje, nota-se claramente um clima de “convivência coletiva”. Não se trata de uma manifestação com pauta de classe, como eu disse, em relação ao trabalho (em geral, um dos focos de aglomeração – carteiros, professores, etc.). O foco, que no princípio baseou-se na revolta contra o aumento das passagens de ônibus, tornou-se palco de agenda difusa;

3. A Copa das Confederações. Digo isso porque, emblematicamente, Dilma foi vaiada no contexto de um dos eventos coletivos mais fundamentais da nossa cultura: o futebol. Mais uma reação coletiva. Aliás, os políticos, diante de um movimento como esse, viraram nanicos, frágeis, desesperados e, no caso da Presidente, incapaz de sintonizar-se com o “timing” dos acontecimentos (dizer, 10 dias após o início das manifestações, que “reconhecia o direito à voz do povo” é, no mínimo, uma gafe e falta de sensibilidade democrática). Às vezes sinto que o despropósito, a inépcia, dos políticos se deve muito mais ao espírito “para inglês ver” dos brasileiros do que propriamente a uma “despolitização” (em outras palavras: nós, como povo, deixamos as coisas “rolarem”; se realmente nos implicássemos, como está acontecendo, em massa e quase na forma de cartarse, estes políticos não fariam o que vivem a fazer, disto tenho certeza);

Em suma, não tenho opinião maniqueísta sobre o que está acontecendo. Vemos de tudo. Vemos gente se divertindo, vemos pessoas simplesmente ali presentes, como no carnaval ou na comemoração de um jogo de futebol, vejo, em suma, uma vontade aparente de quebrar o fluxo do cotidiano, de resgatar, mesmo que de modo não consciente, um jeito “lúdico” de viver juntos. Vi vizinhos indo à passeata aqui onde moro, e fiquei com a impressão de que estavam indo para um jogo de futebol. Isso não é ‘negativo’, não estou dizendo isso, só estou dizendo que há misturas de gêneros: o protesto é, de algum modo, comemorativo, carnavalesco.

Roberto da Matta, importante intérprete de nossa cultura, tem um texto em que discute a relação entre a “Casa & a Rua”. Hoje, o povo está indo para a rua. Uma rua que, numa visão metafórica, parece uma grande, imensa, imaginária ao mesmo tempo em que simbólica, Sapucaí, um enorme Maracanã. Muito a se pensar, mas temo que os acontecimentos, embora grandiosos, terminem como se termina o carnaval e os eventos futebolescos. Ou não. No momento, só consigo pensar em Ortega y Gasset e seu livro “A rebelião das massas”. Por ora, estou aqui de camarote esperando a reação de nossos nobres políticos, correndo às pressas e diminuindo o valor das passagens. Teriam eles outra opção? Teriam eles outra opção, caso os movimentos continuassem e elegessem cada uma das safadezas que tais políticos patrocinam por aí, descaradamente, acobertados e protegidos por nosso espírito de “deixa, é para inglês ver”? Duvido!