A incapacidade de estar só

Um amigo, que é religioso (mas racional), me disse, em uma visita que me fez neste final de semana, que uma boa descrição do inferno é quando não se sente a presença de Deus, ou se sabe que Ele não está presente. Metaforicamente, o inferno é a condensação de escuridão viva, vazia, a solidão absoluta – uma forma suprema de desamparo.

Gostaria de refletir um pouco sobre isso. Não de uma perspectiva teológica, sobre a qual nada mais conheço desde que abandonei o seminário, mas psicológica.

O desamparo, e a solidão em que ele está envolto, pode ser apresentado como a mais pura percepção da consciência sobre sua própria finitude. O desamparo, portanto, é corolário de perceber-se indivíduo, “desligado” de alguma “totalidade” – o inverso do pensamento oceânico discutido por Freud. Religião, como se diz, implica em re-ligar, em repactuação constante em torno de Deus unitário (ou em torno da Santíssima Trindade, para os cristãos). Não estranha, portanto, que diversas comunidades religiosas vivam, ainda hoje, um sentimento comunitário, uma espécie de fogueira a aquecer na escuridão e no frio do atomismo social, da serialização individual.

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Não é à toa também que, na ausência da religião (ou como seu sucedâneo), haja a presença da República. Para mim, que não sou erudito o suficiente, tenho como exemplo disto a França, onde a República assumiu, em sua história, um papel de fiador social muito poderoso. Na ausência da República ou de uma religião forte, resta aos indivíduos o Estado. Sem este, a barbárie, como se sabe após séculos de pensamento político (filosofia política).

Uma forma perigosa (em termos psíquicos) de desamparo é quando a consciência “desampara-se de si mesma”. Quando não encontra, em si mesma, o estofo  necessário para uma vida significativa (com sentido). Esta situação seria o equivalente do “inferno sem Deus” que meu amigo me descreveu. O inferno dentro de si – isto é, a escuridão interior. Claro que falo de uma escuridão em sentido metafórico.

A solidão, o desamparo da consciência (a descrença em si, a incapacidade ontológica de identificar um solo em que pisar, com “objetos bons” internalizados, como diria M. Klein), reflete na incapacidade de estar só. Para fazer face ao vazio interior, diversos “recursos” estão à disposição da consciência: fluxos fantasiosos de pensamento; imaginação megalomaníaca ou então auto-punições severas; adicção; ansiedade [por definição, um medo sem objeto, difuso]; etc. E não necessariamente estamos falando de psicopatologia – quando muito, de uma psicopatologia não severa. O indivíduo, incapaz de ficar só, luta como pode para adaptar-se ao ambiente.

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O desamparo, mesmo sem recorrermos a uma linguagem religiosa, é, em suma, a necessidade de ter de viver uma vida na finitude de um corpo e nas restrições impostas, contingentemente, pelo mundo. É a agonia, a percepção do tempo que passa e a incapacidade da consciência ligar-se a objetos externos, e de ligar objetivos externos.

Para encerrar, e voltando à metáfora de meu amigo, acho que não precisamos ir muito longe, na teologia ou algo assim, para compreender o que é o “inferno”, esta construção enigmática que, entre outras coisas, simboliza a incapacidade de estarmos sós, com nossas consciências, e “desligados” de outra realidade/objetos/pessoas.