A bela adormecida

Assisti ao filme da diretora estreante, a canadense Julia Leigh: A bela adormecida (Festival de Cannes, 2011). Confesso que, diferentemente das várias críticas que li ao filme, ele me prendeu do começo ao fim e, privado de leitura técnica (por exemplo, sobre os planos extremamente longos, sobre a falta de atuação da atriz Emily Browning (a personagem principal), achei que se trata de um filme com certa complexidade.

Narra-se a estória de Lucy (Emily Browning), uma estudante que trabalha em vários empregos para conseguir pagar seu aluguel e se manter. Em raríssimos momentos a vida interna da personagem é trabalhada, mas dá para perceber que se trata de uma pessoa com vida afetiva praticamente plana – veja-se, por exemplo, o modo como ela trata seu próprio corpo (e não me refiro ao moralismo brega da prostituição)! Pois entre os empregos de Lucy, está o de uma espécie de “prostituta de luxo”, e este luxo aqui não deve ser entendido em sentido comum: ela aceita servir de “corpo adormecido” de homens com muito dinheiro e completamente vazios, cheio de memórias de esposas perdidas.

Lucy passa a trabalhar para Claire, uma cafetina absolutamente sui geniris: seus clientes pagam para ter uma noite com Lucy, podendo fazer tudo menos penetração. O detalhe: Lucy é drogada com um chá que a faz dormir tão profundamente que acorda no outro dia sem saber o que seus “clientes” fizeram com ela. O mais impressionante é a passividade extrema da personagem, ou sua profunda indiferença ao que lhe pedem. Senti por ela uma grande simpatia, apesar de seu aparente vazio (de fato, não se trata de um personagem complexo, denso, mas ainda assim desperta nossa sensibilidade). O corpo despido, sem mistérios, manipulado por um outro sem que haja sujeito a interagir, lembra muito um autômato – fazendo-me recordar do fantástico conto de E.T.A. Hoffmann, Os Autômatos. Além disso, Lucy, contrastada com os “homens sem virtudes” aos quais ela servia, parecia uma peça delicadamente frágil, um objeto, em sentido fetichista.

Em suma, um belíssimo filme, que me fez esquecer por uns instantes do lixo cultural que me circunda. Aliás, um lixo tão grande que só um antropólogo poderia me salvar!