Sistema operacional

De que você precisa para ‘rodar’ sua vida normalmente, quer dizer, para tocar as suas responsabilidades cotidianas, inclusive as envolvidas em sua sobrevivência? Talvez na resposta a esta questão resida uma linha divisória entre crianças e adultos. Pois a criança se orienta por um tipo muito particular de pensamento mágico, em que as coisas simplesmente acontecem, como num filme da Dysney.

Usemos uma metáfora. Considere um computador que ‘roda’ windows. De que ele necessita para ser ‘operacional’? Ele necessita de um sistema operacional: DOS? Sem algum pacote mínimo de arquivos .dll (não tenho certeza se é isto mesmo, enfim) seu computador não liga, não avança para além daquela tela azul.

Imagine agora que você tenha uma casa. E que você decida mudar, livrando-se de tudo. Então, obviamente, você precisa de outra casa. Você já pensou no quanto sua vida se desorganiza quando você se muda e ‘reseta’ completamente o sistema de memórias ou “caches” que estavam lá armazenadas e que, por se basearem em caminhos repetitivos, simplesmente os memorizava e partia para o resultado desejado? Acho que até crianças vivem isso.

Nietzsche disse algo mais ou menos assim: primeiro, descubra o que você necessita; só então ame o que você necessia. Ou algo assim. Quer dizer, ame apenas aquilo que você realmente precisa para viver. E aqui vai o milagre da coisa toda: não necessariamente é muito. Vamos pensar numa bobagem: você tem a sua cozinha (assumindo que você cozinhe, o que penso ser um aspecto essencial para ser um adulto). Você obviamente gosta de comer um prato X. Mas você já pensou sobre quais objetos você precisa para ‘rodar’ o processo que levará à elaboração desse prato X?

Fiquei pensando sobre isso quando, por razões variadas, tive de mudar, me instalar; mudar de novo e ter de me instalar mais uma vez. Aí vem a questão: preciso comprar coisas. E então: afora o básico (geladeira, fogão, etc.), de que mais eu preciso para ‘rodar’ aspectos até certo ponto rotineiros e básicos ou ‘fundantes’ do meu cotidiano?

E não é tão simples, pois você tem certos hábitos, rituais, manias ou o que quer que seja. Você tinha, digamos, uma cadeira que dava certinho para seus estudos. Uma mesa de trabalho. Então, você está na estaca zero. Aí você se pergunta: bom, vou tentar reconstruir o que eu tinha, como se estivesse visceralmente agarrado àquilo, ou vou experimentar coisas novas, eventualmente descobrindo novos gostos, prazeres, e eventualmente rotinas?

Outro filósofo, Heidegger, ao discutir a tecnologia ou o mundo dos objetos, destacava que não nos damos conta dos objetos cotidianos que estão sempre aí, à mão; só percebemos o quanto dele dependíamos quando eles quebram ou…nós nos mudamos, vendemos ou damos tudo, e então ficamos ‘soltos’, por assim dizer, na vida cotidiana. Sim, nossa vida é o cotidiano!

Então, volto à questão: qual seu ‘sistema operacional básico’? Vou dar um exemplo. Sei que é bobo, mas, como talvez tudo que pertença ao cotidiano, assim seja: panela. Talvez você possa dizer que isso é sinal de que já virei o triângulo das bermudas entre a adolescência (óbvio, tenho 44), do jovem adulto (óbvio, tenho 44), e já entrando na ‘velhice’, quando certas coisas por detrás das cortinas começam a ser muito importantes para determinar sua ‘qualidade de vida’ (terrível expressão, mas vamos dizer que ajude por simplificar). Então, se eu não tenho minhas panelas, poxa, a coisa complica. Outro exemplo: travesseiros (um grande, um médio, um pequeno – ok, aqui já me entreguei e agora você sabe que posso ser um obsessivo, rs.). Pilha para o mouse do computador. Lixo para a pia da cozinha (você acha que um adolescente se preocuparia com isso?).

Mas a lista se expande, incluindo outras coisas. Como disse, nada muito complexo, mas sim estratégico. Então, quando você se muda, muda, muda., você começa a se perguntar: estava eu muito preso a uma rotina de ‘velho’ e por demais habituado a ela, fazendo dela minha ‘zona de conforto’? Esta é uma questão. A outra é: pelos objetos de que necessito, tipo de moradia, etc., eu posso descobrir muitas coisas sobre mim mesmo, sobre minha personalidade, minha ‘classe social’, etc. Este é outro ponto. E tem por fim a necessidade de uma lista: o que preciso comprar, onde, quanto vai custar, etc. Alguém fez isso por mim no passado (remoto: minha mãe; menos remoto: minha ex-mulher). No mais, ao vivermos vamos acumulando coisas, e tais coisas, que podiam ter sido adquiridas aleatoriamente no início, se encaixam num certo ritual, e então, quando tiradas de você, você nota que está de novo ‘in the wild’.

Eu sei que, afora tudo isso, em algum nível eu busco me justificar, para não fazer ‘o que eu tenho de fazer’ (meus projetos “transcendentes”, etc.). Se falta um lixo de cozinha, não consigo me concentrar em meus projetos transcendentes. Fuga? Ou uma brecha de meu inconsciente a me mostrar que, no fundo, não há projeto transcendente coisa alguma, e que o importante é garantir algum conforto psicológico e físico com um lixo de cozinha? A pensar.

Um comentário final aleatório, na verdade uma lembrança: estava eu num vôo. Momento do embarque, malas, etc. Chega uma moça atrasada. E procura lugar para colocar sua mala, encontra, senta-se, totalmente esbarofida, a meu lado. Problema: deu-se conta de que havia perdido uma pulserinha de prata. Grita para a irmã na fileira da frente: você pegou minha pulseira? E, durante quase todo o vôo de 3h ela fica inquieta. Disponho-me a ajudar a procurar: talvez tenha caído no assoalho da poltrona de trás? Não teria colocado em outra bagagem? Não teria derrubado em outro momento? Etc. Não adiantou. Ali, nada mais parecia importar para ela, exceto a possibilidade de ter perdido a pulseirinha. Mesquinharia de não querer perder nada (pois o medo, na verdade o terror, de muita gente é em perder, em sair no prejuízo, em se dar mal até nas coisas mais ridículas), ou o medo de que, ao perder a pulserinha (se é que perdeu), ela perdeu alguma coisa de que nem saiba direito o que seja? Ao aterrizar, ela logo encontra sinal de serviço de telefonia, e telefona para seu marido, namorado, não sei: não prestei atenção no que ela disse, só flagei o nome do contato: baby boy. Estaríamos todos viajando, com essa sensação de terror ao ‘perder’ algo, e, assim que o sinal nos conecta novamente a uma ‘rede’, nos lançamos ávidos para falar, nos conectar, com um ser que, por razões variadas, é o depositário de nossa ilusão (Freud), isto é, nosso ‘porto seguro’ que nos acalma pela pulseira perdida? A pulseira…apenas um ícone de algo muito maior, muito mais profundo.