Propósito

Há algum tempo atrás, o que hoje conhecemos pela China como primeira economia mundial não era senão um vislumbre por algum conjunto específico de pessoas. Porém, sem tal vislumbre, provavelmente aquele país ainda estaria onde estava. Eu sei que há uma distância enorme entre pessoas e países (!), mas um aspecto queria comentar: sem uma visão, não se chega a lugar algum.

Ok, você pode dizer que essa é uma conversa batida. De fato, orientadores de carreira não cansam de dizer isso: se você quer alcançar algo, você precisa, antes de mais nada, saber que diabos tal “algo” é. Se ele vai se materializar ou não, esta é outra estória: dependerá de circunstâncias que podem fugir do controle da pessoa.

Mas vamos tentar aproveitar essa ideia: a de ter um vislumbre como fator condutor e mesmo como suporte de um propósito. O vislumbre é isso: uma vaga impressão, por vezes até mesmo afetiva, acerca de alguma convergência no futuro. Convergência em torno de um estado de ser, uma posição financeira (mais comum), ou, o que quero debater a seguir, uma posição de pessoa.

Uma pessoa, na sua vida cotidiana, poderia orientar-se por um vislumbre acerca de quem ela pensa que é, ou, especialmente, gostaria de ser? Aqui também a experiência é importante: sabemos que o que os outro pensam de nós é, em parte, independente de qualquer coisa que façamos. Alguma outra parte, porém, depende, sim, do que fazemos.

Por alguma razão, falar em “agenda oculta” é algo pejorativo. Quer dizer, quando alguém percebe que o outro está se orientando por algum objetivo e que, por tal objetivo, ele chega até mesmo a “manipular” os outros, a impressão não é a das melhores. Esse outro pode ser visto como falso, superificial, manipulador, etc.

Porém, e se, na nossa vida cotidiana, nos orientamos por algum tipo de vislumbre, ou princípio? Claro que, a depender das circunstâncias, ajustamos nossa conduta; porém, como você sabe em que base você se posiciona num grupo? Por que você conclui as coisas que conclui, se é que o faz; ou por que fica calado, em vez de se expressar? Em que base seu comportamento é mais ou menos organizado?

Acho que as pessoas podem até nos detestar, mas o farão muito mais pelo que não dizemos do que pelo que dizemos claramente, por mais que destoemos de algumas circunstâncias. Pois o vislumbre que temos sobre nossa posição de pessoa no futuro, ou mesmo no presente, daria uma coerência mínima em nossos posicionamentos. Não haveria sequer problema em revelar nossa agenda oculta, caso, e isso é importante, tal agenda não tenha a ver, de fato, com manipular pessoas para se alcançar objetivos exclusivamente pessoais, no plano econômico, nas esferas de poder em geral – o que é, podemos dizer, uma forma pura de corrupção.

Por outro lado, somos, sim, uma persona. Nosso silêncio, como no filme de mesmo nome, pode propiciar a criação de significados por parte do outro. Mas, ao enunciarmos nossas premissas, não penso que vamos ser tomados como corruptos, no sentido que sugeri a pouco. O ponto é, então, o seguinte: qual é, afinal, tal vislumbre? Qual nossa “ideologia”? Como chegar a isso? Conhecendo nosso desejo? Projetando uma imagem e acreditando nela? Mais ou menos trabalhando sobre uma imagem a ser, cuidadosamente, apresentada ao outro, dentro daquela parte que cabe a nós no processo de influenciação social?

Talvez uma sugestão seja começar pequeno. Por exemplo, em que você, de fato, acredita hoje? Você consegue se comprometer com isso? Pois onde estiver sua atenção, ali estará seu “verdadeiro eu” e, como tal, ali estará, seja por ação, ou, principalmente, omissão, seu centro de gravidade. Ou não conhecemos, ou temos medo desse centro de gravidade. Temos medo de nos afiançarmos nele para “darmos as caras” no mundo.

Acho que o conceito de ilusão do Freud é muito interessante. Se não pensarmos de modo “positivista”, em que há verdade x falsidade, a ilusão se aproxima da ideia de vislumbre. A ilusão comporta duas faces: de um lado, pode trazer conforto (como na crença religiosa, de que um pai olha por nós do além); de outro, terror – sendo este a face mais promissora: terror porque a ilusão pode não ter nenhum, repito nenhum!, contraponto (por exemplo, a “verdade”). A ilusão é como a experiência da fé: jogar-se no escuro, de peito aberto, com amor fati, venha o que vier, e sem arrependimento algum, seja qual for o resultado, mesmo a vida sendo uma só e o bem mais valioso. O vislumbre pode ser de mesma natureza: um salto no escuro, com um sentimento similar à angústia ou temor de Kierkegaard. Mas, na tentativa de fugir a esse temor, abrimos mão de nos colocarmos diante do mundo a partir de um vislumbre que fala a nosso coração.