Ponto cego

A pessoa se sente “superiora” à outra: no seu íntimo, sabe que tem mais bom gosto, que sabe comer melhor, que conhece os melhores livros de literatura, os melhores vinhos, que tem o estilo de vida mais “nobre”. Deste lugar, olha o interlocutor como um pobre-coitado, sem estilo, vulgar – e imbecil.

Perante o outro, justificamos nossa vida como uma vida mais bela de ser vivida. Perante o outro, mas tendo apenas nós próprios como interlocutores, sentimos que tudo em nossos hábitos é justificado, valoroso, digno de credibilidade, autenticidade e verdade. A vida e os hábitos do outro são catalogados com os mais variados adjetivos, que vão do excêntrico ao ridículo.

Se o outro é um religioso fervoroso, e nós sequer religião temos, nos sentimos superiores: estamos do lado da razão, situados naquele ponto geográfico elevado em que as nuvens da confusão não nos atingem. Dali pensamos enxergar com exatidão a realidade: por exemplo, de que não há Deus, de que não há nada que faça com que nossa vida material e simbólica seja tolhida no presente em nome da eternidade a porvir.

Se o outro é um relapso à mesa, nos sentimos melhores, pois, ao contrário daquele, não nos entupimos com mussarela barata, carne gordurosa, doces absurdamente açucarados. Não comemos arroz em doses cavalares, nem farinha no café da manhã. Nos sentimos melhores porque comemos comida vegetariana, não jantamos pesado à noite, e porque consumimos água mineral de boa marca e preço elevado.

Se somos doutores por boas universidades, e passamos em frente a alguma dessas escolas particulares, com seus outdoors iluminados prometendo um “futuro profissional de campeões”, nos sentimos como a reencarnação de Aristóteles ou outros “iluminados” do passado, e, entre canto de boca (ou com a boca escancarada de dentes a gritar dentro do próprio carro), falamos “o que tem na cabeça os que estudam ali”. Sentimos como se estivéssemos diante de alunos de segunda classe, cidadãos de segunda classe, se enganando com uma formação mesquinha e seus R$ 199,99 de mensalidade por mês!

Se temos um currículo com algumas “dezenas” de artigos, nos sentimos intimados por nós próprios a nos achar especiais, e a ter todo tipo de direito de julgar a “vulgaridade intelectual” daqueles que têm apenas nome e formação estampados em seu Lattes, quando muito com algumas apresentações em congressos ou artigos publicados em revistas duvidosas, de Qualis inexistente!

Os exemplos poderiam se multiplicar. Na sua essência, teriam em comum o aspecto diletantista, a mentalidade conservadora, o desejo de status e toda a liturgia envolvida no processo de construção de uma consciência separatista, sujeita e disposta aos extremos para, se possível, exterminar o outro e a diferença.

Mas não é disto que quero falar. Quero falar de um fenômeno bem mais mundano e que pode ajudar a entender esse tipo de situação. Refiro-me aos pontos cegos que nós todos temos, e, como tais, não nos damos conta.

Nos achamos muito inteligentes, mas pode ter certeza de que alguém vai se achar ainda mais inteligentes do que nós. Podemos nos julgar melhores entendedores de vinho (diante de algum coitado que bebe “sangue de boi”, como se diz), mas haverá alguém que não teria qualquer peso de consciência em nos rotular de bárbaros ou de plenos ignorantes petulantes sobre vinhos! Podemos nos dar de entendidos perante um público de ignóbeis, nos dizendo entendedores e sabedores desse autor X (europeu ou norte-americano), mas, se por acaso caíssemos nos círculos efetivamente letrados, seríamos confundidos com algum garçon ou serviçal, fuzilados pelo esnobismo daqueles que, por condições materiais objetivas, tiveram o privilégio de poder dedicar suas vidas à aquisição de valioso e exclusivo “capital intelectual”.

A nossa vida é repleta de pontos-cegos, mas não temos consciência deles. Devido a esse problema, digamos, “óptico”, criamos as mais delirantes e inebriantes teorias sobre nosso próprio auto-valor (em geral, sempre nos justificando superiores). No fundo, precisamos dessas teorias próprias para esconder o fato de que somos todos insignificantes, sempre alocados em algum lugar numa hierarquia imaginária de valores e perfeição. Os que tentam escapar ou negar tal hierarquia criam outra estória para si mesmos, como se sua “marginalidade” contivesse, a contrario, tudo o que as pessoas imersas no mainstream não conseguem ter. Então, se não temos dinheiro, dizemos que a vida não é consumismo mesmo, e que os valores estão em outro lugar. Se não temos um Lattes digno de respeito (pelos critérios vigentes), então criticamos a produtividade, ou então nos escondemos atrás de uma suposta “superioridade daquele que só escreve quando tiver a ideia brilhante e revolucionária”.

Todos temos nossos pontos-cegos. Só torço para que esses pontos-cegos não se acumulem tanto naquelas pessoas em posição de gestão (pública e privada). Pois, nesses casos, sempre temos o ingrediente essencial para o surgimento de novos ditadores, psicopatas políticos, hipócritas, cínicos e inseguros de toda ordem – mas com poder, o que é sempre uma pólvora prestes a explodir. Enquanto seres-pequenos, como eu, você, tivermos nossos pontos-cegos, tudo bem, exceto certa comicidade nas relações cotidianas que fatalmente nasce dessas coisas.