Médico ou marketeiro?

O exemplo não se aplica apenas a médicos, mas vou usá-los como bode expiatório.

Acho que foi por volta dos anos 1990 que ocorreu o que ‘marketeiros’ (!) chamam de virada em direção ao cliente. A partir de certo ponto, tudo virou ‘estratégia’, e não bastava, apenas, investir nos saberes técnicos, mas fazer com que as habilidades de comunicação fossem incluídas como ‘competências técnicas’, ao menos em um sentido ampliado.

Ok. Se pensarmos naquele médico (todo mundo mais velho deve ter um exemplo disto!) bruto, que mal olha para o rosto do paciente, e que se limita a prescrever uma receita ou balbuciar algo intelegível, estamos em melhores condições, hoje.

Mas, talvez tenhamos ido longe demais, faltando aí uma calibragem. Em certos momentos, fico com dúvida se médicos estão estudando medicina ou publicidade e propaganda. Ou então um tipo de psicologia estriônica, em que você precisa colocar um ‘post it’ na parede em sua frente para sempre se lembrar de ‘ser gentil’ e ‘comunicativo’.

Seria preciso realizar um experimento, talvez. No grupo controle, temos pessoas que recebem atendimento de um médico “às antigas”; noutro, no grupo experimental, pessoas que recebem um atendimento mercadológico, por assim dizer: “Olá, sou o doutor Pipeto, e a partir de agora vou estar te atendendo, etc.”. O tal médico bruto, no grupo controle, é, em compensação, um House disfarçado, sabe de tudo, um fodão, como se diz em linguajar eclesiástico. O outro, um médico que, no passado, foi um estudante medíocre, talvez muito mais preocupado em ser ‘doutor’ do que em entender como desenvolver, cuidar e manter um corpo vivo.

Adivinha? Se aplicássemos uma escala (também um fetiche de nossa cultura do marketing) de satisfação, em qual situação você acha que haveria um maior índice de aprovação, etc.? A ver.

Então, o médico-publicitário vem até você, com aquela cara de paciência e ‘compreensão’, para tentar te ‘patronizar’ (veja a expressão em inglês, to patronize; muito boa), explicando, ‘didaticamente’, o problema com seu corpo ou com o corpo de seu animal de estimação (veja post mais abaixo aqui). E aí você é banhado com os frutos suculentos da cultura da “popularização científica”. Afinal, de fato termos médicos são de acesso difícil – por que somos tão classistas? Porque somos uma cultura de iletrados. Só para te dar um exemplo: imagine aí um lacaniano tentando ‘simplificar’ seus conceitos! Conceitos científicos são popularizados até certo ponto!

Enfim, e você fica com cara de que entendeu, e o doutor-publicidade fica satisfeito consigo mesmo por ter sido tão ‘digno’ de se ‘rebaixar’ ao nível do ‘leigo’ para explicar algo que, para começo de conversa, nem o tal doutor pode entender a fundo. É uma loucura, uma cacofonia, se você pensar – ou seja (popularizando): uma farsa.

O que fazer, então? Voltar à cultura do bronco, do doutor-sabe-tudo-e-eu-obedeço? Lógico que não. Mas, ao perder o equilíbrio, a justa medida como se diz, a gente acaba indo parar no extremo oposto: de um lado, o bronco estúpido; de outro, o marketeiro que sabe mais como agradar o cliente do que em colocar a mão na massa e salvar vidas. No meio disso tudo, temos os Dr. House, mas sem a arrogância (ok, até que justificada, no contexto). Quem sabe, faz; pois, no fim do dia, é o fazer que decide.

Ah, se quer ver a coisa melhor, procure aí no Google uma reportagem sobre “doutor, não; mas influenciador”. Ou algo assim. Aí, sente e comece a se preocupar.

Fragilidade

Queria ter uma inspiração genuína, pois o que me leva a escrever é muito mais uma projeção no tempo, quando eu voltar a este post, neste dia, 20 de agosto de 2020. Mas, para minha surpresa, estou sem essa inspiração. Queria, de verdade, escrever para um ser imaginário, que me deixou. Um ser que me compreendia dentro das possibilidades dele. E que me esperava. Acho que há isso; ao pensar nisso meus olhos começam a dar sinais de um turbilhão esquisito que se forma, se vai, se mistura. É como se eu estivesse procurando um fio puro de água, mas logo ele se mistura com barro, água suja, e já não é mais possível discernir. Ao pensar num reencontro que não acontecerá jamais, eu sinto, talvez pela primeira vez na vida, essa sensação concreta, real, de perda em forma de suspensão, de gesto não realizado, de poder ser, mas que não foi e não será jamais. Não acho que eu saiba envelhecer. Pois supostamente, ao envelhecer, vamos acumulando esse tipo de coisa. Não sei. Também não é nada cinematográfico, digo, não é algo que estou aqui escrevendo porque, inconscientemente, a coisa ficou gravada em mim ao ver algum filme ou ao participar da cultura cotidiana. Não, estou sentindo, concretamente, essa perda de um momento futuro. Outra coisa que queria captar genuinamente em meus sentimentos no momento é o que mais esse ser que perdi hoje gostaria de mim. Ou, voltando a mim, o que eu gostaria de realizar com ele. A morte, o que sei da morte? Só sei que eu a temo, mas não sei o que há nela que temo, talvez a fragilidade de tudo isso. Eu sinto como se tivesse perdido um pequeno, não, um minúsculo pedaço de delicadeza, verdadeira delicadeza (mas que sempre ‘pensou’ o contrário!). Acho que entendo o que significa ter um filho; imagino a sensação. Você contempla aquele ser, ainda mais se ele for pequeno, e você como que sente, você sente nas vísceras, que tudo é imensamente frágil, e, sei lá, justamente por ser frágil é atraente, comovente, condição para tudo o mais, para você sentir alguma forma de amor e de temor, como se as duas coisas fossem uma coisa só. Não sei, aqui já estou (mesmo sem escrever), deixando alguns jargões que li superficialmente da psicanálise. A tal projeção do ideal de eu ou eu ideal num objeto externo ao eu, etc. Mas há a fragilidade, há seres frágeis, minúsculos. E se formos pensar, se formos observar, estes seres estão à nossa volta em uma quantidade tão absurda, que só a consideração disso pode gerar vertigem. E há também o contraste e a contradição. Você contrasta o ser frágil com estruturas ‘perversas’ ou frias que estão ali para te assistir de algum modo, ou simplesmente estão ali fora, no ‘mundo dos adultos’. O mundo dos adultos se choca com esse pedacinho de fragilidade que você escolhe, ou acaba sendo envolvido com, para representar a ligação entre o vivo e o morto, o fazer ou não fazer, o útil e o inútil, o belo e o feio, etc. E contradição porque, ao olhar para uma fragilidade em particular, você sequer imagina que essa mesma fragilidade pode, ela própria, viver às custas de destruição de outros seres frágeis. Novamente, eu tenho vertigens, e sei que estou perdendo o contato com algum real (não com a realidade, pois a realidade é, ela própria, cheia de furos). Por fim, há as contradições, as ambivalências, da morte e do luto. Você saber que amava, mas você saber (e isso dói, como culpa muito estranha) que você continua em funcionamento sem o ser amado, que logo será coberto pela poeira da sua história pessoal. Um ser frágil, um mundo de coisas. O corpo inerte no chão indiferente, enquanto coisas ‘sérias’ acontecem em cada lugar, e você também se culpa e se castra por esquecer o resto do mundo, e fazer o seu mundo e aquele momento a única coisa que importa. A culpa por coisas feitas contra o outro ser, aqui e ali, e a consciência de que o momento da morte é uma imensa lupa que intensifica apenas certas facetas do fenômeno. A culpa, a auto-recriminação, a eventual ‘desconexão’ da realidade. E a pergunta: por que, por que faço o que faço? Sou apenas um corpo vivo, sendo estufado pelas fantasias dos outros? Não sou mais do que um narcisista projetivo? O que é isso que aconteceu? Que mundo é esse em que vivo? A fragilidade, e a perda de algo, de algo (me esforço para nã opensar em Luto e Melancolia). O ódio contra tudo e todos, a guerra perpétua, o demônio com a metralhadora livre, e aquele ser e corpo a te lembrar, a te questionar em silêncio, sem saber de nada, apenas colocado em alguma engrenagem, e, como eu, até então respirando e sendo alguma coisa viva neste planeta. A vida crua, e os discursos, os erros, os acertos, as narrativas. E o fim, pois tudo tem um fim.

Bentha
27.08.2007, São Paulo
20.08.2020, Campinas

Confiança

Foi Anthony Giddens quem escreveu há algum tempo que, nas sociedades modernas, a base da confiança nos sistemas técnico-profissionais é o que de certa forma sustenta a possibilidade de viver em ambientes complexos como os que vivemos hoje.

Se preciso comer, não sou eu quem produz a comida, mas um imenso sistema que, a depender da cadeia, é algo gigantesco. E essa cadeia é sensível – veja-se o episódio recente do corona-vírus, que ameaçou paralisar muitas cadeias produtivas, e o fez de fato em vários lugares. No Brasil, recentemente, tivemos a greve dos caminhoneiros, e todos sentiram o impacto. Se preciso viajar, não conheço o piloto ou o motorista. Em ambos esses casos, preciso confiar. E se trata de uma confiança empiricamente cega, pois você não pode fazer uma entrevista “baseada em competências” ou ler o “currículo” da pessoa. Você deve confiar que alguém fez isso, e que a pessoa que ali está fazendo o que ela é suposta fazer só está fazendo isso porque, em algum nível, se sente (ou se ilude) preparada.

Imagine algo ou alguém que você ama muito. A quem você confia essa pessoa, no caso de ela precisar por alguma situação de saúde? A médicos, clínicas, ambulatórios, hospitais – todos eles formando sistemas complexos, enormes, combinando frentes comercial e profissional, econômica e científica. Você pode tentar minimizar seus problemas de confiança nesses casos ao pedir uma indicação, ou então se deixar levar por sistemas de propaganda e modelagem de impressões, cuja função é criar uma “sensação de segurança” e fazer você entregar (ou se entregar, pois isso também se aplica a cada um de nós e não apenas aos que amamos) o destino da pessoa ou seu nas mãos de outros, na mão do sistema. Não, neste caso a palavra sistema não é metafórica, é profundamente real e condiciona comportamentos e resultados práticos.

Há tudo isso, ok. Mas existe também outro ponto, digamos mais psicológico. Confiar em alguém implica, figurativa ou concretamente, entregar-se. Baixar as guardas. Pois não é possível seguir a vida, especialmente em momentos de dificuldade, quando vivenciamos frontalmente nossas fragilidades como indivíduos. O indivíduo não é onipotente, claro que não: ele pensa que é, e vai sendo provisoriamente confirmado nisso pela própria saúde (se for jovem) e pelo ganho financeiro (se for “bem-sucedido”). Ter dinheiro, aliás, é uma forma moderna, impessoal (diria até transpessoal), de mediar situações de entrega de si ou de seus amados aos sistemas peritos (acho que essa era a expressão usada por Giddens). O dinheiro compra “os melhores”, e os melhores não são baratos, e nem deveriam ser.

Em um nível ainda mais subjetivo, a confiança implica em algum grau de atenuação, de esgarçamento, da função crítica e inquisitiva. Você pode, ou mesmo deve, questionar a qual médico ou veterinário (minha experiência atual, apenas para contextualizar) confiar seu ente querido ou você mesmo. Mas, isso não pode ser levado ao infinito, do contrário você corre o risco de paralisar toda a cadeia da entrega e do dispositivo institucional colocado ao serviço de algum resultado (saúde, lucro, etc.).

A crítica implacável, a busca insaciável por encontrar defeitos, por apontar brechas e incoerências, incompetências e erros, nas ações daqueles formalmente responsáveis por um ente querido ou mesmo nós próprios, serve apenas para nos enganar, nos dando a sensação de que estamos no controle, de que “existe a combinação perfeita” de recursos e pessoas que faria com que seu problema fosse resolvido. Essa crítica implacável culmina em fobias, em distanciamento, em impossibilidade de convivência, em guerra perpétua, em infinita crise interna e externa de você consigo e você com os outros. As coisas fluem com dificuldade, você não consegue confiar, e se o resultado ocorre de ser negativo contra você e seus interesses, então isso alimenta a crença de que, de fato, você não deveria ter confiado, e de que, no limite, você só confia em você mesmo – até certo ponto, pelo menos, pois você, pela complexidade do mundo contemporâneo e da disseminação (quase total) dos sistemas peritos, não conseguirá tocar sozinho.

É como se você se transformasse numa daquelas pessoas que ficam treinando para o fim do mundo, quando tudo desmoronar, quando não sobrar nada exceto você, suas competências e sua capacidade de sobreviver, fazendo não importa o que para proteger suas coisas e seus entes queridos. Como nesse filme recente, O declínio.

Confiar é se entregar, não se abandonar nas mãos dos sistemas peritos. Isso seria irresponsabilidade. Confiar é parar, por algum momento que seja, de tentar enxergar por detrás das cenas. Confiar é, sim, acreditar em uma ilusão, no sentido estritamente freudiano. A criança que dorme, segura e protegida (obviamente, ilusoriamente, pois não há segurança, mesmo na casa e com os pais mais conscienciosos; nada é seguro como rocha), no berço sob os olhares atentos dos pais. Confiar é uma experiência de estar com, de dependência (mas não de fusão ou entrega absoluta de si na magia do outro que a tudo provê e salva). Nada muda o fato do desamparo fundamental; nada muda o fato de que, no melhor dos melhores dos hospitais, escolas ou restaurantes, mesmo ali não há nenhuma garantia. Um advogado duvidaria disso, claro; e um advogado pode ir até as últimas consequências por uma queixa de reparação (que recebe um tratamento bastante racional no contexto jurídico, obviamente).

O que existe, sim, são pessoas que têm mais competências para lidar com o real e contorná-lo, quando possível, e apenas quando possível e até onde ele, o real, permitir. São pessoas que estudaram mais, em lugares melhores, que são mais críticas ou conscienciosas sobre o que fazem, que se orientam pela qualidade de um trabalho bem feito, mas não apenas para subirem em suas carreiras e ganharem dinheiro (ambas as coisas positivas e corretas); pessoas que tiveram melhores oportunidades, ou que, por seu caráter, conseguem enxergar além da letra morta dos procedimentos que abundam em toda instituição. Não parece ser tarefa fácil encontrar essas pessoas, e acho que nossa literatura “crítica” já nos contaminou a tal ponto que a qualquer coisa ruim logo buscamos compreender e relativizar. Mas, e isso é mais duro, e insisto, mesmo nessas condições, em um ambiente “impecável”, mesmo ali a “casa pode cair” e você terá diante de si, mais uma vez, sem máscaras e mediações simbólicas humanas, o real. O que eu gostaria, como pessoa, era estar diante desse real mas, ao mesmo tempo, com outros em que eu pudesse confiar.

Mas, para isso, eu precisaria esquecer de mim por um instante, esquecer de meus medos, minhas críticas, até minha sensação de superioridade (ou medo), minha necessidade de criar redemoínhos mentais e inimigos imaginários que teriam a obrigação de “me reparar”, e de minhas culpas, ou até mesmo do desprezo que tenho por mim mesmo. Teria de “me deixar levar” por mãos amigas, mãos seguras, mãos de cujo corpo e motivações eu não teorisasse a perder de vista sobre suas intenções protocolares (como numa relação de “cliente”, que aliás, convenhamos, acaba mesmo sendo nas instituições e sistemas peritos). Drama, pois os profissionais não seriam meus pais, meus avós bondosos e bonachões a me acalmar; não, estão ali fazendo seu trabalho, comigo agora, e meu ente amado, mas com muitos e muitos outros ao mesmo tempo, repetidamente, massificadamente, tentando, para não enlouquecer, deixarem-se, eles também, se levar pela lógica protocolar. O que eu queria talvez não seja possível, ao menos não perfeitamente possível, mas…

Notas técnico-acadêmicas

  1. A casa pode cair, mas a casa, muitas vezes, cai de qualquer jeito; só que você prefere que a casa caia com complementos ou sem complementos? O marketing e as empresas de prestação de serviço criam situações para que o sofrimento envolvido no confronto com o real seja desviado, ou atenuado, pela falsa experiência de apoio e proteção, que, na prática, está baseada na extração de lucro (paga-se caro para ter uma “morte premium”). Não saberia dizer, mas pode até ser que, psicofisicamente, haja alguma influência na “sensação de dor”, ao menos em algumas condições;
  2. A qualidade do trabalho é um valor metafísico, algo para além de qualquer apropriação utilitária, ao menos, penso eu, para os profissionais médios (não para executivos ou proprietários, que não conseguem ver senão a conexão atividade-dinheiro). Estes proprietários são verdadeiros psicólogos, pois, no campo dos serviços, sabem captar a essência do sentimento de desamparo, bem como a verdade de que é feita a própria realidade: impermanência, mas com possível mediação simbólica (ou seja, sabem que pessoas ou animais vão acabar morrendo, mas colocam o verniz do marketing sobre tudo);
  3. O hospital-shopping é, a meu ver, a mais perfeita demonstração, o estudo de caso sintomático, de uma combinação imensa de fatores. De um lado, há a lógica do “hotel” e serviços similares; de outro, a construção de um corpo técnico e de um circular de saberes que, por esse motivo, acabam tendo um efeito centrípeto e criando uma massa crítica que, de fato, permite a criação de um conjunto de experimentos e ações de confronto proficiente (até certo ponto, pelo argumento aqui desenvolvido) com o real. Por exemplo, o componente de luxo e hotelização atrai uma clientela de classes mais abastadas; com elas, vem a sensação de gourmetização e de exclusividade – e, claro, o capital (dinheiro). O capital irriga a institução que, por sua vez, associada ao marketing, acaba se tornando um pólo (no campo médico, temos o exemplo do Einstein, hoje um hospital-grife e uma faculdade de medicina!) de atração de quadros. Com o tempo, o ambiente desenvolve uma cultura organizacional muito própria, que então passa a alimentar a produção de significados e comportamentos respectivos. Cria-se um looping de auto-reprodução, e, progressivamente, uma espécie de hub que se comunica com outros sistemas sociais (hoje o Einstein é símbolo de destaque, na mesma lógica de segmentação de clientes “vip” em bancos, aeroportos, etc.).

Futilidade

Após certo marxismo (estou pegando o marxismo por preguiça ou por estereotipia) nos impregnar, e digo esse ‘nós’ com muitas restrições, com análises realistas ou materialistas da realidade, a vida se tornou algo como aquele day after quando, na estorinha de Nietzsche, Deus foi anunciado morto. Quer dizer, quando uma perspectiva de análise da realidade teima em sempre nos ficar apontando o que há por detrás das cenas, tudo ficou muito mais chato. A realidade pode ser chata, ok. Se estamos felizes porque compramos, sei lá, uma calça nova, se você for analisar a fundo, tal felicidade é subproduto de uma consciência que fundiu a mercadoria ao próprio tutano subjetivo de que somos supostamente feitos. Se você, que gosta de vinho e boa música, está ali na sua casa fazendo isso, você poderia começar a pensar na imensa, e muitas vezes desumana, cadeia de eventos e suores e explorações que trouxeram, à sua taça, o vinho; e, ao seu celular, a música. Você pode se agarrar ao seu sentimento de prazer no instante e simplesmente ignorar tudo o mais – seja por impossibilidade cognitiva de captar o ‘todo’, ou porque você está muito acomodado para isso, para se dar tal trabalho. Mas o analista dos bastidores está sempre a lhe chamar à consciência, te apontando, às vezes com um ressentimento que ‘realistas’ às vezes podem vir a ter, o quanto você está metido até a cabeça nessa coisa toda.

Seres humanos podemos ser, e muito, seres fúteis. Construimos significados; escrevemos romances; obras de arte (pintura, etc.); qualquer coisa do gênero, simplesmente porque não sabemos o que fazer de melhor com nosso tempo (se todos puramente nos entregássemos às nossas pulsões primitivas, talvez não ficássemos sentados horas a fio escrevendo um artigo, polindo um armário, pregando pregos, operando cérebros, etc.). Somos fúteis, perdemos tempo, jogamos conversa fora, viajamos em sonhos. Dormimos. Construimos toneladas e mais toneladas de produções de sentido (jornais, livros, outdoors, manuais, etc.) sem qualquer validade que não a de nos enxarcar de redundância (quem não escutou uma mesma música milhões de vezes?) e algum pragmatismo miúdo (embora útil demais; imagine viver sem um mapa rodoviário!). Milhares de horas são investidas em atividades com nenhum propósito, embora, de novo nosso marxista pode argumentar, tal futilidade esteja baseada, chupando como um parasita, num batalhão de outros seres anônimos, que, como os filhos priveligiados do Cristo, estão aí a nos servir e em contato com o mundo na sua sensibilidade mais …sensível, corporal.

E, nesse processo de construir sentido na futilidade, e para a futilidade, vamos confundindo, talvez, cultura com ideologia. Chega um ponto que nem importa mais. O quanto daquilo que penso sobre mim, das categorias ou similares que uso para dar vazão e direção a meus afetos, é produto de, sei lá, as horas de televisão que assisto? Às ladaínhas sem fim das minhas professoras do primário? Daquilo que observei com este par de olhos que nada têm de virgens? Do que escutei no rádio? Do que li em livros? Como saber se o que está na minha cabeça (como se algo pudesse ‘estar’ ali, enclausurado) foi ‘implantado’ (lembram do filme?) ou foi construção minha? Ora, mas o ‘construção minha’ não poderia ser, isto também, uma ideologia, no sentido de que aprendi, no meu século, a achar que o que realmente importa é o que crio e sinto por mim – e nisto devemos agradecer ao romantismo espraiado na e pela psicanálise (e pelos romances, etc.). E se essa colocação for reflexo, poderia algum psiquiatra aí dizer, de um pensamento paranóide de minha parte (não é uma patologia a pessoa acreditar que há coisas ‘de outros’ impregnadas nela, e ela, por vezes, se sente como um marionete de forças que lhe são estranhas)?

Claro, uma humanidade que, por efeito de sua condenação semiótica, não poder fazer outra coisa senão criar ‘teorias’ sobre o que lhe acontece, ou mesmo sobre sua situação real (onde mora, o que come, o que veste, a quais cuidados de saúde tem acesso, se tem água encanada, etc.), só conseguirá se olhar no espelho se começar a adotar, pelo menos parcialmente, a atitude de buscar o que está por detrás das cenas, após o fechamento das cortinas (ou mesmo antes de estas serem abertas). Marx volta. Mas Marx, convenhamos, nos colocou à frente, na mesa, uma ideia de que somos, como humanos, criaturas úteis, voltadas ao trabalho, matando qualquer ‘encanto’ do pão que surge, como que por milagre, em cima da nossa mesa (crianças, obviamente, pensam dessa forma). Olhar no espelho dói, com certeza. Mas sabe o que me dói mais? Saber que, ao olhar no tal espelho, não vou escapar da futilidade. Se uns conseguem usar melhor, não sua proximidade com o real, mas sua habilidade em manipular as aparências, estes vão aparecer menos fúteis, ao menos de acordo com os critérios vigentes. Mas, num plano infinitamente amplos, até estes serão fúteis. A questão é como ser um fútil com alguma …finalidade (ha ha ha).

Romance

Ok, estou empolgado, então, vou aproveitar. Estou lendo, nos últimos tempos, romances russos do século dezenove. Aí, como ali se fosse o caso da janela (ver post abaixo), fico com a tentação de ficar contemplando o passado narrado pelo autor e pensando, Poxa vida, como esse pessoal de antigamente era estranho. Por exemplo (todos os livros são do Dostoievski): parecia que as pessoas viviam em função da imagem social que elas tinham – se eram bem vestidas, se o corte de cabelo era adequado, se o jeito e os modos eram os mais nobres, se a mulher era virginal e prendada, etc. Parecia que, ao menor deslize, a vida de uma criatura poderia cair em completa ruína, como quando, por alguma razão, a mulher se casava e então o marido a “devolvia”, ou então se um homem, por qualquer razão, levasse um safanão de outro. Também, causa, hoje, a mim pelo menos, certa vontade de dar risada quando, na descrição de vários casos, o autor menciona que a dama tal declarou seu amor infinito e irrestrito ao cavalheiro tal, ou vice-versa.

Mas eis que se pensarmos bem, estaríamos nós livres de excentricidades parecidas, mutatis mutandis, o tempo que nos separa, neste caso, do século dezenove?

É por certo tentador, e até lugar-comum, pensar em como, nas mesmas circunstâncias, seríamos lidos ou avaliados por nossos conterrâneos a daqui, digamos, mais 200 anos. O que eles pensariam, caso, por alguma curiosidade muito específica, lhes caísse no colo um desses nossos romances escritos atualmente, repletos de menção a celulares, computadores, e o diabo?

Mas o ponto que queria deixar registrado, como sempre para mim mesmo, é que não precisamos esperar tais duzentos anos para projetar algumas conclusões óbvias. Por exemplo, embora os rituais possam ter mudado alguma coisa quanto a sua aparência, o fato é que ainda nos movemos por aquilo que os outros pensam de nós, sendo ‘os outros’ não o vizinho (embora, em geral, o vizinho pese muito, assim como a família expandida), necessariamente ou tão somente, mas praticamente uma instituição social. Não nos julgam, talvez, pelo jeito que nos vestimos (embora acho que julguem, sim), mas, se você for homem, pela carreira ou profissão que você tem, pelo carro que você dirige, pelo tamanho da sua casa, etc. Uma forma cabal para descobrir nossos valores instituídos, e nem sempre tão óbvios (embora, com certeza, muitos o sejam) é observar o que as mães esperam para seus filhos e, se for o caso e especialmente, suas filhas. Converse com uma mãe, aí na sua localidade. O que seria um “bom partido” para essas mães, no caso de terem filhas, ou uma “moça decente”, se tiver um filho? Haveria uma mãe, de classe média vamos dizer, esperar que sua filha se case com alguém que é caixa de supermercado e saiu da escola ainda no primeiro grau? Você aí pode me dizer que, Poxa, mas uma moça de classe média, que tem ali sua formação superior e já está de alguma maneira inserida no mercado de trabalho, teria lá ela o que para conversar com alguém que atua, de fio a pavio, como caixa de supermercado, e, nas horas vagas, frequenta uma igreja evangélica qualquer? Ah, mas não é assim tão simples, não é? Acho que somos muito previsíveis, passe o tempo que for.

Quanto a mim, e ao que gostaria por fim de registrar novamente, é que precisamos ter muito cuidado, examinar com atenção (sem, claro, acabar sendo um obsessivo nisso), o quanto nossas decisões ‘pessoais’ são movidas por esse circuito social em que queremos, no fundo, absolutamente uma única coisa: reconhecimento (psicanaliticamente, arrisco dizer, tal coisa única seria amor).

Mas, todos sabemos, eu acho que todos sabemos, que o amor próprio, ou o auto-conhecimento não é o suficiente; precisamos do amor dos outros e, ato contínuo ou mesma coisa, de re-conhecimento. Há muito romantismo, mistificação, na ideia de que alguém pode fincar-se em si mesmo o baluarte de sua segurança ontológica, ou seja, seu porto seguro existencial, onde se sente bem, centrado, autêntico, coerente e etc.

De fato, claro que tais pessoas existem, e não nascem por aí facilmente; talvez uma em algumas centenas de milhares. Alguns atalhos existem para essas pessoas também, é claro, como uma herança sólida e estável (cortar o cordão umbilical da dependência financeira já é um passo, necessário, mas não suficiente, para alcançar o status de dandi, isto é, alguém com luz própria). Luz própria, ser seu próprio sol, etc., são coisas muito difíceis e que implicam, para além de uma suposta herança, alguma disposição muito radical de espírito. Se você considera alguém como Nietzsche, por que não, talvez se tenha aí alguma ideia desse tipo de pessoa, um individualista radical, quase estético, mas brilhante – sentado, portanto, sobre sua luz própria, seu próprio pensamento externalizado e materializado em obras.

Mas veja, apenas por alusão que, em vida, Nietzsche ainda não era o que ele se tornaria depois, então, ele estava em algum ponto cego no jogo do reconhecimento social e ainda assim, ou por causa disso, persistiu. Em suma, parece que, passe o tempo que passar, ainda estaremos dentro de uma moralidade assentada na necessidade de reconhecimento. Se não há, digamos, um parentesco universal que nos una e iguale; se não há, também, uma única religião que nos torne a todos filhos e irmãos (apesar de que qualquer sistema religioso deturpado, como é a maioria, acaba sendo um dos mais poderosos instrumentos de naturalização ideológica); então, precisamos criar e viver dentro de sistemas que estabelecem critérios mais ou menos aceitos acerca de quem é quem, quem tem valor e quem não, quem merece ser amado e quem não.

Se você, como eu, não tem fortuna alguma, mas apenas a si mesmo, imerso aí em algum micro-sistema de valores e recompensas (o meu é o mundo acadêmico), então, boa sorte: como numa pirâmide, indo de baixo para cima, a base (mais larga), mesmo o meio (ainda relativamente largo), representam o olhar do outro, dos sistemas variados de distinção e valorização; a pontinha, bem lá em cima mesmo, no cume, e olhe lá, como alguém quase afogado dentro de uma sala fechada e cheia de água, só com um centímetro para respirar e esticar o nariz, há a chance de alguma vida que rompa, pelo menos quanto ao essencial, com esse marasmo cultural, social e etc. que nos envolve a todos, que conduz nossas vidas e, para piorar, nos engana ao nos dar a impressão de que somos nós que pensamos com a cabeça própria (na verdade, a rigor, não é ‘culpa dele’ — já pensou viver, com 7 bilhões de outros humanos, cada um sendo mais original e ‘radical’ que o outro?).

Sério, sendo honesto para mim mesmo: a única forma de manter tal pico de lucidez e, vá lá, originalidade, é se amando muito, não necessariamente (embora possa sê-lo, claro), de modo narcísico, mas se amando como um ser absolutamente irrepetível e singular, sob qualquer ponto de vista, inclusive cósmico. Se você não aguentar viver turbulências infinitas, então cale-se, deixe esse ar blasé de lado, tente colocar em si alguma pitada de cinismo, e mergulhe proficientemente nesse mar de previsibilidade dificílima que é a vida moderna. Não é fácil ser uma pessoa, isso que quero terminar dizendo.     

Da janela, sei que sei, ou só me engano que sei, e que sou diferente?

Olha só. E se aquilo que você acha que sabe sobre você mesmo for uma ilusão, digo, algo inacabado? Pois às vezes ocorre que achamos que conhecemos perfeitamente as circunstâncias que nos rodeiam. Achamos que sabemos bem o suficiente sobre o quem somos. Mas e se nós estivermos equivocados? Vou dar um exemplo. Você pode achar que alcançou alguma apreensão verdadeira e profunda sobre a existência, e você nela. Mas, ao mesmo tempo, alguém, se acaso se dignar a pensar em você (vamos supor que seu delírio de importância tenha alguma ínfima parcela de plausibilidade), pode te achar, sei lá, feio, ou, pensando em caráter, uma pessoa banal, comum. Como equiparar esses olhares? Sim, pois você tem o seu, sobre você, e você no mundo (das circunstâncias), e as outras pessoas têm o delas. Acho que chegamos a algum tipo de impasse aqui. Por um lado, você acha que chegou a alguma conclusão metafísica sobre o sentido de sua massa de órgãos, sangue e ossos; de outro, você considera, não apenas outras pessoas que poderiam, pela terceira vez insisto, gastar algum tempo pensando em você, mas também você pode expandir a ideia e considerar também algum ‘juíz’ mais universal e interessante, por assim dizer… todos eles vendo algo que você não vê sobre você. Já considerou, pois, que seus instintos podem estar inacabados, de alguma forma? Que você não tem o mapa todo, nem tampouco o distanciamento suficiente para se ver, digamos de novo, em algum grande e vasto cenário ou perspectiva? Não te assusta isso? Estar no fundo de um longo poço de auto-engano? Você fica bem, satisfeito e apaziguado com o conhecimento que você julga ter sobre si mesmo, e com base no qual você toma alguma decisão ou até mesmo se martiriza? Bom, mas as coisas podem se complicar muito mais do que isso. Você pode, por exemplo, levar em conta considerações ainda muito mais amplas e categoriais. Por exemplo, vamos supor que a humanidade se divida entre os boçais, e alguns, alguns muitíssimos raros, que têm alguma originalidade. O que estes originais, ‘originais’, pensariam sobre si mesmos? Será que, afinal, e ao fim, eles teriam alguma energia para investir em pensar em si mesmos, em vez de pensar em projetos altamente externos a eles? Enfim, se, por alguma objetividade alheia, existisse tal possibilidade de classificar os seres a princípio entre os originais e os nem tanto, então você poderia, pela estatística, muito certamente cair no grupo dos tais boçais, que apenas seguem sua vidinha, na esteira do que a evolução lhe pôs no caminho, ou seja, com um cérebro sem fronteiras; muitas sinapses, se você não for um desnutrido, etc. Mas um que segue sua vidinha pensando em grandes coisas, quer dizer, tendo a si mesmo em alta conta. Será que, lá pelas tantas, essa pessoa, esse ser, colocar-se-ia a dúvida sobre se isso que ele pensa de si mesmo tem lá alguma pegada no real, no factual, no grande cenário em que, pelo fato de estar vivo, ele acaba ocupando? O que quero dizer é que tudo isso que esse ser não original pensa possa ser completamente falso. Mas aí a coisa complica de novo, oras, pois se pressupõe algum critério de verdade a partir do qual um ser poderia então se avaliar a si e tal julgamento redundar em algo consubstancial na ‘realidade’. Vou dar um corte aqui, para inserir outra coisa não relacionada ao tema. Da minha janela, vejo algumas pessoas. Elas sempre se reúnem numa espécie de bar. Aqui, de onde olho e observo, leio um ‘partido’ político. Haveria questões culturais para explicar, mas me privo de tanto. Então, todo dia elas se reúnem, tomam cerveja. Quando as olho, sinto certo desconforto, no bom sentido. Explico. Pois sei se que amanhã ou depois não estarei mais aqui. Mas eles, sim; eles continuarão a se arrastar pelo peso que a história deles impôs a eles; algo mecânico, mesmo que, na filigrana do cotidiano deles, pareça algo repleto de sentido. Pois bem. Eu os vejo como passageiros, mas, ao mesmo tempo, sei que eles são personagens eternos de um roteiro igualmente eterno, no qual conjuram (vivem) suas vidas. Mas eu não; eu não pertenço a isso. Eu sou apenas um olhar de passagem. Deve ser interessante, aliás, ser um ‘ser que não morre’ (vampiro, anjo, não importa!). Pois você vê o cotidiano, sabe que ele é repetição brutal, no sentido extremo de brutalidade, mas sabe que, para você, particularmente, tal repetitividade não é idêntica em seu conteúdo, apenas na forma, pois você não está eternizado neste momento, tampouco neste olhar de primeiro andar sobre os personagens estáticos lá embaixo, vivendo suas vidas, muito no sentido real e absoluto, já que para eles não é uma farsa. É, mas isso só daria certo, para tal ser eterno, se ele mudasse, se ele andasse, se ele não pertencesse a lugar algum, e se ele se mantivesse de uma perspectiva da eternidade, em que um momento qualquer no tempo, apreendido de uma janela qualquer, não fosse mais do que um grão de poeira. Falei que faria um corte não ligado ao assunto de partida, mas acho que meu inconsciente me deu uma rasteira, pois parece que, desde a partida, eu estava justamente pedindo isso, numa espécie de desespero e desamparo: um olhar eterno, fora do tempo, numa recusa em sair da plateia e entrar no palco e seguir representando, sem tanta lamúria e auto-engano (talvez, quanto ao mais, nunca estive na plateia; seria isso possível, afinal?).

Fragmentos, 3

Os afetos com que vamos ao mundo. Acho que existe uma relação direta entre uma realização cognitiva e a tonalidade afetiva com que nos colocamos diante das circunstâncias. Não é só a banalidade de que somos seres afetivos e racionais. Não. Trata-se antes de algum tipo de pano de fundo constitucional a partir do qual canalizamos as impressões que nos vêm de fora. Ora, estas são apenas impressões, mesmo quando já previamente interpretadas e feitas para se atingir um objetivo pré-determinado. Se nos abrimos ao mundo, num dado momento, com um afeto “triste”, é provável que tudo seja circunscrito por tal afeto. Ou então por um afeto de ódio ou medo. Ou de alegria e paz. Pois afetos de base têm uma estranha sustentação em nossas reais pernas (não nessas pernas de carne e osso que exibimos por aí). Os afetos de base são o que realmente nos sustentam. Nos conectam com a terra, com algum tipo de concretude. Achar esse centro afetivo me parece fundamental. Sem isso, há uma completa loucura com ares de normalidade: somos levados a sentir qualquer coisa, e a construirmos nossas cognições com base nesse mesmo sentir. E a partir de certo ponto você não sabe mais se o que sente é reflexo do que você foi levado a sentir (afetos volúveis, falsos em relação à sua essência), ou se o que você conhece é reflexo desse mesmo sentir falso com que você se abre ao mundo. Talvez uma maneira de analisar isso é notar o quanto você se sente ou não massacrado por uma vida completamente estranha, em que você não se reconhece, e de onde se afoga como que pressionado embaixo da água por duas patas de elefante.


Do nada. Sempre aparecem, sorrateiros, tantos pensamentos na minha mente! É como se fossem monções que mexem ou reviram todas as minhas faculdades. Como ventos alterando a conformação da água do mar. Então elas se revolvem, sobem, descem, se contorcem, serpenteiam e, do modo como vieram, se dissipam. Ou como vento no deserto: chacoalha a areia, até mesmo monta com ela formas lindas no ar, e então a deixa cair novamente ao chão, inerte e inanimada, sem vida, como sempre foi, desde que as rochas que a precederam se estraçalharam, perdendo elas também suas formas, por fenômenos velhos como centenas de milhares de anos.


Ao vencedor, as batatas. Estes dias vi um escritor, desses que sempre escrevem para jornais e têm também alguma coisa escrita na forma de livros, dizer que, afinal, havia entendido sua “missão de vida”. No mar de porcaria da mídia, isto me fisgou. O que deve ter alguma razão, se é para acreditarmos em nosso desconhecido interno. Pois fiquei pensando: mas que homem arrogante! Como alguém pode dizer que encontrou sua missão na vida? Por que escreveu coisas, teve alguma fama, conforto material, etc, e se sente um iluminado dentro de algum apartamento iluminado? Isso me deixou profundamente revoltado. Acho que a literatura, ao menos essa pequeno-burguesa desses colunistas de jornal, cria um mundo tão fantástico na cabeça do “criativo” que ele logo faz de suas linhas um castelo moral ou ético em que se julga o senhor, com vida justificada e tudo mais. Se você, meu senhor, achou o sentido e a missão de sua vida, guarde para você e vá plantar batatas!


Aliás, literatura. Você gasta horas lendo um romance. Você percebe que, no fundo, o que acontece é que você acaba sendo colocado na mente de outra pessoa? Ela conduziu você pelos caminhos que ela achou que você deveria seguir junto dela. A mesma coisa quando alguém abre a boca e fala o que Ela acha sobre qualquer assunto. Oras, esse é o mundo dela! Por que ela não guarda para ela? O que ela quer, e você ao deixar, com entrar em seus ouvidos? O mundo acaba muitas vezes sendo vivido na bolha que alguém soltou de sua boca e lançou sobre o mundo para capturar outros. Interlocução? Diálogo? Eu acho que a maioria é corrompida, a maioria desses ditos “diálogos”. E, claro, há os muito mais graves, os que mentem e tentam ganhar vantagem objetiva sobre você, como está cheio pelo Brasil desde que “descobriram” esse lugar. Por que alguém afinal abre a boca? O que quer? Para mim, é inadmissível jornalistas, por exemplo, virarem celebridades e personagens muito bem pagos por criarem suas bolhas, ainda por cima usando, como de praxe, estantes de livro como pano de fundo!


44. É amanhã. E quero entender por que estou tão sick of myself. Às vezes, acordo e sinto como se houvesse, como os animais, deixado de representar/perceber o mundo e passado a senti-lo. Doce ilusão. Em todo caso, depois de certa idade, ou você metaboliza em linguagem própria o que foi se acumulando ao longo de sua vida, ou você se torna um saco cheio de areia, pesado, sempre infantilmente indisposto a ficar escorado em qualquer coisa.

Pessimismo/Otimismo

You want it darker
We kill the flame


There is a crack in everything
That’s how the light gets in

In praise of boredom


Joseph Brodsky

But should you fail to keep your kingdom
And, like your father before you come
Where thought accuses and feeling mocks,
Believe your pain…

(W. H. Auden, “Alonso to Ferdinand”)

A substantial part of what lies ahead of you is going to be claimed by boredom. The reason I’d like to talk to you about it today, on this lofty occasion, is that I believe no liberal arts college prepares you for that eventuality; Darthmouth is no exception. Neither humanities nor science offers courses in boredom. At best, they may acquaint you with the sensation by incurring it. But what is a casual contact to an incurable malaise? The worst monotonous drone coming from a lectern or the eye-splitting textbook in turgid English is nothing in comparison to the psychological Sahara that starts right in your bedroom and spurns the horizon.

Known under several aliases – anguish, ennui, tedium, doldrums, humdrum, the blahs, apathy, listlessness, stolidity, lethargy, languor, accidie, etc – boredom is a complex phenomenon and by large a product of repetition. It would seem, then, that the best remedy against it would be constant inventiveness and originality. That is what you, young and newflanged, would hope for. Alas, life won’t supply you with that option, for life’s main medium is precisely repetition.

One may argue, of course, that repeated attempts at originality and inventiveness are the vehicle of progress and – in the same breath – civilization. As benefits of hindsight go, however, this one is not the most valuable. For should we divide history of our species by scientific discoveries, not to mention ethical concepts, the result will not be in our favor. We’ll get, technically speaking, centuries of boredom. The very notion of originality or innovation spells out of the monotony of standard reality, of life, whose main medium – nay, idiom – is tedium.

In that, it – life – differs from art, whose worst enemy, as you probably know, is cliché. Small wonder, then, that art, too, fails to instruct you as to how to handle boredom. There are few novels about this subject; paintings are still fewer; and as for music, it is largely nonsemantic. On the whole, art treats boredom in a self-defensive, satirical fashion. The only way art can become for you a solace from boredom, from the existential equivalent of cliché, is if you yourselves become artists. Given your number, though, this prospect is as unappetizing as it is unlikely.

But even should you march out of this commencement in full force to typewriters, easels, and Steinway grands, you won’t shield yourselves from boredom entirely. If repetitiveness is boredom’s mother, you, young and newfangled, will be quickly smothered by lack of recognition and low pay, both chronic in the world of art. In these respects, writing, painting, composing music are plain inferior to working for a law firm, a bank, or even a lab.

Herein, of course, lies art’s saving grace. Not being lucrative, it falls victim to demography rather reluctantly. For if, as we’ve said, repetition is boredom’s mother, demography (which is to play in your lives a far greater role than any discipline you’ve mastered here) is its other parent. This may sound misanthropic to you, but I am more than twice your age, and I have lived to see the population of our globe double. By the time you’re my age, it will have quadrupled, and not exactly in the fashion you expect. For instance, by the year 2000 there is going to be such cultural and ethnic rearrengement as to challenge your notion of your own humanity.

That alone will reduce the prospects of originality and inventiveness as antidotes to boredom. But even in a more monochromatic world, the other trouble with originality and inventiveness is precisely that they literally pay off. Provided that you are capable of either, you will become well off rather fast. Desirable as that may be, most of you know firsthand that nobody is as bored as the rich, for money buys time, and time is repetitive. Assuming that you are not heading for poverty – for otherwise you wouldn’t have entered college – one expects you to be hit by boredom as soon as the first tools of self-gratification become available to you.

Thanks to modern technology, those tools are as numerous as boredom’s synonyms. In light of their function – to render you oblivious to the redundancy of time – their abundance is revealing. Equally revealing is the function your purchasing power, toward whose increase you’ll walk out of this commencement ground through the click and whirr of some of those instruments tightly held by your parents and relatives. It is a prophetic scene, ladies and gentlemen of the class of 1989, for you are entering the world where recording an event dwarfs the event itself – the world of video, stereo, remote control, jogging suit, and exercise machine to keep you fit for reliving your own or someone else’s past: canned ecstasy claming raw flesh.

Everything that displays a pattern is pregnant with boredom. That applies to money in more ways than one, both to the banknotes as such and to possessing them. That is not to bill poverty, of course, as an escape from boredom – although St. Francis, it would seem, has managed exactly that. Yet for all the deprivation surrounding us, the idea of new monastic orders doesn’t appear particularly catchy in this era of video-Christianity. Besides, young and newfangled, you are more eager to do good in some South Africa or other than next door, keener on giving up your favorite brand of soda than on venturing to the wrong side of the tracks. So nobody advises poverty for you. All one can suggest is to be a bit more apprehensive of money, for the zeros in your accounts may usher in their mental equivalents.

As for poverty, boredom is the most brutal part of its misery, and the departure from it takes more radical forms: of violent rebellion or drug addiction. Both are temporary, for the misery of poverty is infinite; both, because of that infinity, are costly. In general, a man shooting heroin into his vein does so largely for the same reason you buy a video: to dodge the redundancy of time. The difference, though, is that he spends more than he’s got, and that his means of escape become as redundant as what he is escaping from faster than yours. On the whole, the difference in tactility between a syringe’s needle and a stereo’s push buttom roughly corresponds to that between the acuteness and dullness of time’s impact upon the have-nots and the haves. In short, whether rich or poor, sooner or later you will be afflicted by this redundancy of time. Potential haves, you’ll be bored with your work, your friends, your spouses, your lovers, the view from your window, the furniture or wallpaper in your room, your thoughts, yourselves. Accordingly, you’ll try to devise ways of escape. Apart from the self-gratifying gadgets mentioned before, you may take up changing jobs, residence, company, country, climate; you may take up prosmicuity, alcohol, travel, cooking lessons, drugs, psychoanalysis.

In fact, you may lump all these together; and for a while that may work. Until the day, of course, when you wake up in your bedroom amid a new family and a different wallpaper, in a different state and climate, with a heap of bills from your travel agent and your shrink, yet with the same stale feeling toward the light of day pouring through your window. You’ll put on your loafers only to discover they’re lacking bootstraps to lift yourself out of what you recognize. Depending on your temperament or the age you are at, you will either panic or resign yourself to the familiarity of the sensation; or else you’ll go through the rigmarole of change once more.

Neurosis and depression will enter your lexicon; pills, your medical cabinet. Basically, there is nothing wrong about turning life into the constant quest for alternatives, into leap-frogging jobs, spouses, sorroundings, etc, provided you can afford the alimony and jumbled memories. This predicament, after all, has been sufficiently glamorized on screen and in Romantic poetry. The rub, however, is that before long this quest turns into a full-time occupation, with your need for an alternative coming to match a drug addict’s daily fix.

There is yet another way out of it, however. Not a better one, perhaps, from your point of view, and not necessarily secure, but straight and inexpensive. Those of you who have read Robert Frost’s “Servant to Servants” may remember a line of his: “The best way out is always through.” So what I am about to suggest is a variation on the theme.

When hit by boredom, go for it. Let yourself be crushed by it; submerge, hit bottom. In general, with things unpleasant, the rule is, the sooner you hit bottom, the faster you surface. The idea here, to paraphrase another great poet of the English language, is to exact full look at the worst. The reason boredom deserves such scrutiny is that it represents pure, undiluted time in all its repetitive, redundant, monotonous splendor.

In a manner of speaking, boredom is your window on time, on those properties of it one tends to ignore to the likely peril of one’s mental equilibrium. In short, it is your window on time’s infinity, which is to say, on your insignificance in it. That’s what accounts, perhaps, for one’s dread of lonely, torpid evenings, for the fascination with which one watches sometimes a fleck of dust swirl in a sunbeam, and somewhere a clock tick-tocks, the day is hot, and your willpower is at zero.

Once this window opens, don’t try to shut it; on the contrary, throw it wide open. For boredom speakes the language of time, and it is to teach you the most valuable lesson in your life – the one you didn’t get here, on these green lawns – the lesson of your utter insignificance. It is valuable to you, as well as to those you are to rub shoulders with. “You are finite”, time tells you in a voice of boredom, “and whatever you do is, from my point of view, futile.” As music to your ears, this, of course, may not count; yet the sense of futility, of limited significance even of your best, most ardent actions is better than the illusion of their consequences and the attendant self-aggrandizement.

For boredom is an invasion of time into your set of values. It puts your existence into its perspective, the net result of which is precision and humility. The former, it must be noted, breeds the latter. The more you learn about your own size, the more humble and the more compassionate you become to your likes, to that dust aswirl in a sunbean or already immobile atop your table. Ah, how much life went into those fleck! Not from your point of view but from theirs. You are to them what time is to you; that’s why they look so small. And do you know what the dust says when it’s being wiped off the table?

“Remember me”, whispers the dust.

Nothing could be farther away from the mental agenda of any of you, young and newfangled, than the sentiment expressed in this two-liner of the German poet Peter Huchel, now dead.

I’ve quoted it not because I’d like to instill in you affinity for things small – seeds and plants, grains of sand or mosquitoes – small but numerous. I’ve quoted these lines because I like them, because I recognize in them myself, and, for that matter, any living organism to be wiped off from the available surface. “Remember me”, whispers the dust”. And one hears in this that if we learn about ourselves from time, perhaps time, in turn, may learn something from us. What would that be? That inferior in significance, we best it in sensitivity.

This is what it means – to be insignificant. If it takes will-paralyzing boredom to bring this home, then hail the boredom. You are insignificant because you are finite. Yet the more finite a thing is, the more it is charged with life, emotions, joy, fears, compassion. For infinity is not terribly lively, not terribly emotional. Your boredom, at least, tells you that much. Because your boredom is the boredom of infinity.

Respect it, then, for its origins – as much perhaps as for your own. Because it is the anticipation of that inanimate infinity that accounts for the intensity of human sentiments, often resulting in a conception of a new life. This is not to say that you have been conceived out of boredom, or that the finite breeds the finite (though both may ring true). It is to suggest, rather, that passion is the privilege of the insignificant.

So try to stay passionate, leave your cool to constellations. Passion, above all, is a remedy against boredom. Another one, of course, is pain – physical more than psychological, passion’s frequent aftermath; although I wish you neither. Still, when you hurt you know that at least you haven’t been deceived (by your body or by your psyche). By the same token, what’s good about boredom, about anguish and the sense of the meaninglessness of your own, of everything else’s existence, is that it is not a deception.

You also might try detective novels or action movies – something that leaves you where you haven’t been verbally/visually/mentally before – something sustained, if only for a couple of hours. Avoid TV, especially flipping the channels: that’s redundancy incarnate. Yet should those remedies fail, let it on, “fling your soul upon the growing gloom”. Try to embrace, or let yourself be embraced by, boredom and anguish, which anyhow are larger than you. No doubt you’ll find that bosom  smothering, yet try to endure it as long as you can, and then some more. Above all, don’t think you’ve goofed somewhere along the line, don’t try to retrace your steps to correct the error. No, as the poet said, “Believe your pain”. This awful bearhug is no mistake. Nothing that disturbs you is. Remember all along that there is no embrace in this world that won’t finally unclasp.

If you find all this gloomy, you don’t know what gloom is. If you find this irrelevant, I hope time will prove you right. Should you find this inappropriate for such a lofty occasion, I will disagree.

I would agree with you had this occasion been celebrating your staying here; but it marks your departure. By tomorrow you’ll be out of here, since your parents paid only for four yearsm not a day longer. So you must go elsewhere, to make your careers, money, families, to meet your unique fates. And as for that elsewhere, neither among stars and in the tropics nor across the border in Vermont is there much awareness of this ceremony on the Dartmouth Green. One wouldn’t even bet that the sound of your band reaches White River Junction.

You are exiting this place, members of the class of 1989. You are entering the world, which is going to be far more thickly settled than this neck of the woods and where you’ll be paid far less attention than you have been used to for the last four years. You are on your own in a big way. Speaking of your significance, you can quickly estimate it by pitting your 1,100 against the world’s 4.9 billion. Prudence, then, is as appropriate on this occasion as is fanfare.

I wish you nothing but happiness. Still, there is going to be plenty of dark and, what’s worse, dull hours, caused as much by the world ourside as by your own minds. You ought to be fortified against that is some fashion; and that’s what I’ve tried to do here in my feeble way, although that’s obviously not enough.

For what lies ahead is a remarkable but wearisome  journey; you are boarding today, as it were, a runaway train. No one can tell you what lies ahead, least of all those who remain behind. One thing, however, they can assure you of is that it’s not a round trip. Try, therefore, to derive some comfort from the notion that no matter how unpalatable this or that station may turn out ot be, the train doesn’t stop there for good. Therefore, you are never stuck – not even when you feel you are; for this place today becomes your past. From now on, it will only be receding  for you, for that train is in constant motion. It will be receding for you even when you feel that you are stuck… So take one last look at it, while it is still its normal size, while it is not yet a photograph. Look at it with all the tenderness you can muster , for you are looking at your past. Exact, as it were , the full look at the best.  For I doubt you’ll have it better than here.

Fragmentos, 2

Caráter. Talvez muito pior do que a emergência de um líder autoritário ou de caráter duvidoso é sua base de sustentação. Afinal, nenhum poder é poder em si ou absoluto. No caso da política, em sociedades democráticas, o poder central emana de um ato discricionário, tomado em um momento particular, com implicações institucionais. Coloca-se um igual a nós (em termos de direitos naturais) em uma posição, em um papel, cuja essência advém de sua ritualística jurídica e institucional. É por isso que, vezes ou outra, ouvimos o ocupante momentâneo de tais posições dizer que “o Estado sou eu” –obviamente, em sentido figurado, pois o Estado não é, apenas, aquele corpo que, naquele momento, se reveste de poder. Enfim, esse poder é concedido. Pois então, as coisas podem ser resumidas no seguinte: o que faz uma multidão anônima endossar e continuar apoiando uma pessoa que, não sendo mais do que um ocupante de um papel, propõe a destruição dessas mesmas pessoas? Cometemos um imenso, gritante, erro ao resumir tudo à análise da figura do tal líder, personalizando, pois, algo que não é pessoal. Se você pensa que, no fundo, todo o fenômeno incorporado na figura de um líder é, em essência, manifestação de um coletivo anônimo, então as coisas ficam dramaticamente piores, pois, se um líder, num dado momento e substituível, é apoiado não importa o nível moral de suas ações, então isso diz da qualidade geral do povo.

Faladores. Está me ocorrendo o seguinte. Passei a ouvir algumas pessoas. Digo, na mídia; ou comentadores no YouTube. Ao ouvir, automaticamente, começo a achar falhas nos discursos. Por vezes, falhas lógicas; noutras, alguns pontos cegos (para não chamar de falhas) psicológicos. Como quando a pessoa fala de algo nos outros mas não percebe a mesma coisa, ou ainda pior, nela. Trata-se de algo que me deixa chateado, isso de não “comprar” totalmente o discurso. Por vezes, chateado porque, poxa, eu gostaria de me espelhar (embora possa o estar fazendo). Gostaria de encontrar o discurso “perfeito”. Por exemplo, escuto o psicanalista e penso: Mas que diabos esse cara tá falando? Como se pode olhar tudo, ou quase tudo, por um mesmo crivo? Depois, vejo o filósofo; ou se trata de um ser, este um que ouço algumas vezes, que criou uma bolha ou realidade própria, ou é um farsante, vendedor de livro com ideias requentadas. Na matriz de um discurso: o “eles não sabem nada”; a crítica que pulveriza as diferenças, talvez por se achar que se tem perspectiva melhor de análise, mais verdadeira, do que os outros. Mas me chateia ainda mais em perceber, sentir, que quem fala está, no fundo, projetando seu “eu”, tentando, ao falar, não mergulhar no caos do discurso que recebe e que nos fragmenta a todos. Falar, externalizar, virou sinônimo de resistir no grande mar das narrativas. Seria falar um remédio? Não sei, acho que as redes sociais realmente amplificaram esses faladores. A pessoa, quarentenada dentro de casa, com uma câmera, interagindo com 30, 40 mil pessoas, começa facilmente descolar da realidade, e leva um monte de gente fanática por um discurso que as coloque na passividade diante de “um Eu que fala” e, ao organizar narrativas, abre vias prêt-à-porter para os afetos perdidos, tristes, impotentes. Talvez seja melhor ficar com a chateação. Primeiro, porque isso me impede de colar em um discurso e virar algo como um seguidor cego. Simplificador radical de realidades. Segundo, porque talvez eu esteja em busca do “meu” discurso, um que conecte minha boca a meu coração. Será que esses faladores encontraram esse elo?