O tipo calado

Há um tipo de personagem em filmes que sempre me atrai: o que fala pouco. Pode variar desde aquele tipo durão, como, principalmente, aquele que, embora sinta coisas profundas e seja empático, não tem pernas para verbalizar tudo o que gostaria – às vezes, talvez nem saiba como expressar, mesmo tendo as palavras, o repertório linguístico. Pensamento e palavra não se sobrepõem, necessariamente.

Claro que deve haver razões inconscientes para essa atração, ou identificação ao inverso, com tais personagens. Costumo falar mais do que gostaria. Ao menos em uma avaliação a posteriori. E na minha carreira eu tenho, basicamente, de falar. Acho que muita fonte de sofrimento do trabalho docente tem a ver com o falar.

Eu sei que esse mesmo falar que traz sofrimento é fonte de satisfação. Acho que tudo tem a ver com permitir alguma sintonia entre X e Y. O que seriam X e Y neste caso?

Nossa, aqui podemos ir longe. X pode ser o desejo, e Y a expressão linguística, corporal, artística, o que for, desse desejo. Mas o ponto é que o desejo não está lá esperando para ser expresso; ele se constrói à medida que ele se materializa, se externaliza, na linguagem (Y).

Mas X pode ser um fato, ou algo que diga respeito à ‘realidade’. Mas temos alguns problemas com isso. Por exemplo, estamos agora, em março de 2020, no início do que parece ser uma epidemia de grande alcane, mas algumas autoridades chegaram a dizer que é ‘fantasia’. Para tais autoridades, X não é o vírus que se espalha, seguindo um padrão já mais ou menos identificado pelo pessoal da saúde. Não. X é alguma verdade mais oculta, que só eles sabem, e que expressam em sua verbalização (Y).

Pode haver o inverso também. Y é imposto sobre X. Nesse caso, falamos o que querem que falemos. Ou falamos algo que achamos que precisamos falar para sermos aceitos, reconhecidos, ou simplesmente para passarmos desapercebidos. Desapercebido, neste caso, é um tipo de alívio, pois, ao usar o Y disponível por aí, não nos obrigamos a lidar com o abismo profundo que parece existir nesse relacionamento entre X e Y. Não acredito, porém, que exista um Y totalmente pronto, feito sob medida, para se ajustar ao nosso X, ou, mais genericamente, para se ajustar a quem somos. Não haveria arte se existisse um certo Y para um certo X. Agora me ocorreu que talvez seja também por isso que me atraio por personagens mais quietos no cinema: eles acabam sendo misteriosos. Interessante o efeito do silêncio, não é mesmo? O silêncio é uma espécie de hiato entre X [ ] Y. Mas o silêncio pode ser apenas…vazio, e então a gente acha que há mistério quando, na verdade, não há nada.

Quando alguém fica em silêncio diante de nós, ou numa conversa, tendemos a falar, a preencher o espaço. Vamos supor, nessa linha, que o mundo todo seja um grande silêncio — como de fato é. Silêncio de vozes humanas, pelo menos — no sentido de que, sem tais vozes, o mundo, o planeta no caso, vai seguir absolutamente o mesmo, talvez até melhor, considerando a destruição que fizemos até aqui. Pois foi isso que nossos ancestrais, antes do domínio da linguagem escrita/falada, tinham diante de si: um imenso planeta. Imagine: eles olhavam para a lua e… silêncio. Quando, por algum mecanismo da evolução, eles esboçaram as primeiras palavras, e estas culminaram nas primeiras frases, e então nas primeiras perguntas, por exemplo ‘Por que estamos aqui?’…silêncio.

Por algum tempo, nossos ancestrais se limitaram a contemplar o silêncio. Seu cérebro ainda não tinha emergido plenamente. A estar com o mundo, corpo-mundo, não se vendo à parte desse grande silêncio. Mas, em algum momento (só para simplificar, pois foi um processo dinâmico e que durou milhões de anos!), a coisa se tornou insustentável e, novamente por algum mecanismo da evolução, a linguagem se articulou e se tornou uma ferramenta para lidar com esse mesmo mundo. Em outro episódio evolutivo, ou cognitivo, descobrimos que X existe e pode ser identificado e objetivado, simbolizado, por Y (linguagem). Foi aí então que aconteceu, ao mesmo tempo, nossa humanização e nossa danação. E não penso no sentido de danação que poderia ter sido (ou que ainda pode) ser evitada. Não, não; danação porque nos demos conta de uma ruptura essencial, fundamental, irreconciliável: X não é igual a Y, mas preciso de Y mesmo assim para sequer cogitar X. E X é mais que Y, sempre.

Para encurtar essa história, e voltar às minhas inquietações iniciais. Quando o relativismo, em ciências humanas, se popularizou; quer dizer, quando a população, mesmo sem saber, passou a aceitar e a viver, sem grandes dores de cabeça, num mundo de versões, conflitos de interpretação, violência simbólica, etc., a partir desse momento começamos a esquecer como tudo começou, de que fomos nós, para todos os efeitos, que, como espécie, não conseguimos, ao preço de ruir nossa própria humanidade, tolerar o silêncio e que começamos a infinita cadeia de X = Y’, Y”, Y”’, Y”’….Yn.

Na vida moderna, no plano mais geral, creio que um exemplo perfeito dessa dinâmica X e Y ocorre com as mídias, sejam elas quais forem. No plano pessoal, a conexão X e Y, como comecei sugerindo, envolve outra dramática. Acho que é, no fundo, a coisa mais importante que qualquer ser humano enfrenta em seu íntimo. A origem, em um plano psicológico, da grande angústia. Só um exemplo: quando falo sobre X, e X é meu desejo, tenho aí um grande desafio. Qual é meu desejo? Quando falo, por certo manifesto meu desejo, em aceitando que o desejo é uma força motora (longa história). Mas também invento sintomas, ou seja, me deixo levar por minhas próprias construções linguísticas ou performáticas, ao ponto de que, se por um lado não consigo mergulhar no silêncio (não como solução para tudo…), por outro minhas construções podem se autonomizar, podem virar uma espécie de religião particular. E mais: pode afetar outras pessoas e criar uma folie à deux (obviamente, deux/dois é só um exemplo; deux pode envolver grande parte de um país, ou do planeta).