O que há a ser (ainda) dito?

Às vezes, quando estou um pouco chateado, considero que temos pouco a acrescentar ao falatório geral. Se pensar, ‘tudo’ o que somos, enquanto seres linguísticos, já foi antecipado em ‘discursos’ (falas organizadas) que nos precedem. Trata-se do campo do ‘dito’.

Em relação ao dito, podemos ter pelo menos dois caminhos igualmente viáveis. Num deles, o de reproduzir. É o papel do ventríloco. Talvez nenhuma reprodução seja fidedigna, no sentido em que um tocador de CD reproduz este último (‘n’ vezes igualmente). Mas há ótimos reprodutores entre os humanos…copiadores (não tão criativos quanto um Vermeer, mas há…).

O outro caminho é trabalhar sobre o dito, e então produzir alguma ‘fala’ – num sentido mais propositivo, ativo, em vez de ser no particípio passado (‘dito’). Criatividade, singularidade, ou individualidade, inovação: sinônimos para esse fenômeno de criar o novo a partir do velho.

Na linguagem dos negócios, inovar é propor um novo produto ou serviço (ou procedimento, etc.) que se diferencie, dialeticamente, em relação ao que já existe. Pode ser uma ruptura, mas, decerto, rupturas nunca são radicais. Um poderoso computador de hoje não ‘rompeu’ radicalmente com princípios básicos de lógica (pelo que conheço!).

Talvez a mimêses aristotélica, de que já tratei uma vez por aqui, tenha um valor importante de reprodução: nós aprendemos algo quando imitamos alguém (veja a importância dos modelos em psicologia).

Mas chega um momento em que queremos sair da pura mimêses: é aí que podemos desejar sair do ‘dito’ para o ‘dizer’. Mas dizer o que? Algo que sentimos que precisa ser dito de outro jeito (redescrição pragmática)? Algo que nosso desejo nos impele a dizer (o prazer de dizer, o prazer de conexões de novos pensamentos, etc.)? As ‘lacunas’ do ‘dito’ (mote em ciência: justificar um trabalho com base nas lacunas existentes na literatura…)?

Não penso no nível profissional – o dizer profissional, digamos assim. Penso no sentido existencial. Dizer enquanto uma expressão de si.

Numa cultura individualizante como a moderna (a nossa!), o dizer está intrinsecamente associado ao self, ao eu. Fomos levados à ilusão de que, ao dizer, dizemos algo de idiossincrásico, revelamos nosso eu. Mas não conseguimos enxergar que nosso ‘eu’ é, antes de mais nada, uma produção coletiva. Um ‘eu social’, na melhor das hipóteses, iludido pelo invólucro do corpo (de fato, cada um tem um corpo diferente do outro!).

Sociólogos não cansam em relativizar nossa iniciativa e autonomia/autenticidade. Nosso discurso, o que dizemos, é produto de nossa classe social, de nosso nível social, do dialeto do grupo a que pertencemos, dos acessos a bens culturais que temos, e assim por diante. Uma visão de cima para baixo.

A psicologia, ao contrário, nos insinua que temos de encontrar nossa “voz interior”, temos de dar expressão a uma singularidade que é nossa, que nasce de nosso sofrimento de estar no mundo (e o sofrimento é profundamente singular), dos arranjos que fazemos com o princípio da realidade (x o princípio do prazer).

E então?

Uns se contentam em reproduzir, sem saber que o fazem. Outros, em fingir que são ‘autênticos’, ‘diferentes’. No meio disso tudo, algo inegável: temos de nos fazer com o discurso, com o repertório, a herança linguística que recebemos da história (História?).

Parênteses. Freud uma vez escreveu, a propósito não me lembro de quê exatamente (não importa!), que o indivíduo é uma espécie de ‘nada’, uma instância provisória aprisionada na jaula da espécie. Quando goza, é um prazer ínfimo concedido pela Natureza para que se sinta estimulado a procriar. Em termos da espécie, o indivíduo (=no sentido biológico), é paradoxalmente necessário e irrisório, dispensável.

Em relação à linguagem, talvez algo similar se processe. A Linguagem (com L), existe independentemente de nós como indivíduos (embora não como espécie, onde ela se circunscreve e faz … sentido). Porém, paradoxalmente, ela, a Linguagem, precisa de nós, como indivíduos, para a reproduzirmos e produzirmos. E, para nós, é como se não houvesse fuga: não há outro jeito senão falar ser falado (estar no contexto do ‘dito’). Afinal, o que seria de um indivíduo que optasse por “não falar”?

Não falar equivaleria a ser ‘dominado’ pelo outro (alguém fala, você só escuta, não reage). Se não falo, devo, ao menos, “ler”. Em alguma medida, ler é uma atividade passiva. Ler o mundo da passividade do lar, digamos nesta metáfora, é negar o mundo, negar a fala. Optar pelo silêncio.

Ou o silêncio seria uma forma de resistência?

Para encerrar. Nossa relação existencial com a linguagem é paradoxal e ambigua: ela nos ultrapassa, nos ‘anonimiza’ (nos torna anônimos, indiferentes, insignificantes), mas, ao mesmo tempo, é por meio dela, no jogo de suas forças, que encontramos algo que poderia se aproximar de uma ‘singularidade’ (na coletividade). Calar-se, como defesa, implica talvez num medo do sujeito em relação à perda de si na linguagem (‘tudo já foi dito’ pelo Outro). A perda nas conexões infinitas da linguagem.

O sujeito, diante da existência (simbólica – pois o ‘real’ do corpo é uma ‘coisa em si’), só existe se ele aceitar tecer, sustentar, iludir-se, etc., em conexões finitas, em possibilidades limitadas, e, como tais, insignificantes, mas, paradoxalmente, necessárias: para ele, indivíduo, como também para a ‘espécie’ (humana).