O eterno e o efêmero

Na vida humana há um entrelçamento fantástico entre o eterno e o efêmero. Entre a vida cotidiana, com suas banalidades, e a vida longa, a vida plena, onde as grandes decisões e os grandes acontecimentos se dão.

A vida cotidiana, banal, é a vida da ida ao supermercado, da troca de uma lâmpada queimada; a vida eterna, sem conotações religiosas (embora pudesse também haver!), é a vida que imaginamos para nós no futuro, nossos sonhos, o nascimento de grandes projetos, incluindo filhos, em suma, a vida eterna abarca o campo do sentido (na acepção de propósito [por quê] e direção [para onde]).

Tenho a sensação de que, para cada esfera de nossa vida, há um binômio, um par, um duplo, uma simbiose entre o efêmero e o eterno, a vida se dando entre a leveza e despretensiosidade de uma pluma e a seriedade, a dramaticidade, de um evento vital decisivo (o nascimento, a morte, a doença, um casamento, uma separação, um acidente, ou meramente uma inspiração, um desprender-se momentâneo em direção ao sublime – seja ele religioso ou não).

Por exemplo, na vida profissional. Ora, você deve, seja qual for seu campo de atuação (tomo sempre o meu próprio como referência, pois é nele que está vinculada toda minha experiência de vida), viver no interjogo de um duplo: de um lado, você tem de participar de reuniões, sentado em cadeiras desconfortáveis, em salas deprimentes (verdadeiros não-lugares), com pessoas com certo desânimo de ali estar ouvindo sobre critérios e normas de produtividade do seu Programa de Pós-graduação. De outro, você tem o conhecimento, a amplitude que ele supostamente lhe dá, a super-visão que ele te oferece, o gosto e o sabor elevado de grandes ideias, grandes feitos, grandes mudanças promovidas no cotidiano, seu e de outros – e, claro, “a fama” (palavra pouco usada no metiê acadêmico… talvez seja mais polido falar de “reconhecimento”).

Outro exemplo: nosso próprio corpo. Mal nos damos conta, mas a cada dia a vida vai jogando a duplicidade de sua essência, banal e eterna, de modo irreversível. Nosso corpo, aliás, é a prova viva, a materialização definitiva, de uma fusão de milhares de anos, pela qual somos, simultaneamente, nulidades e talvez uma das espécies mais brilhantes deste planeta – independente de você pensar que isso é um tipo de “especismo” (tendência de julgar uma espécie superior à outra, no caso, a humana). Deságua em nosso corpo as forças profundas e irrefreáveis da ontogênese e da filogênese, a sensação da singularidade (e sua manifestação objetiva) com o atravessamento anônimo, cego, despótico e indiferente da “vida genérica” da espécie.

Nossa vida, nosso corpo, é a manifestação do enlace entre o eterno e o efêmero.

Basicamente, há três modos de o eterno se colocar no nível da vida-corpo: primeiro, como disse, pelo próprio substrato da espécie (nosso DNA – já pensou o que “ele” teve de passar para chegar a esse estágio de programação e execução?); segundo, pelas nossas obras, e aqui penso em amplos conjuntos de atividades humanas, da arte à arquitetura, passando pela literatura, pela ciência, mesmo pelas ideias religiosas transmitidas de geração a geração; em terceiro lugar, a eternidade se manifesta em um filho, réplica mitológica do “À imagem e semelhança de…” (Deus, do pai, da mãe, em suma, daquela sepa específica pela qual se diferenciaram as diversas “linhagens” humanas: a família). Para a grande maioria dos humanos, ter um filho é o modo mais visceral, mais concreto, ao mesmo tempo mais metafísico, de lidar com o efêmero e o eterno, com a sensação de que se é absolutamente essencial (para criar o filho e no seu amor, depois de grande), e, ao mesmo tempo, radicalmente dispensável – e, mesmo quando se sabendo dispensável, narcisicamente feliz por ter “contribuído e deixado sua parte”. Um filho, lógico, jamais suplantará seu pai e sua mãe, nesse sentido mais profundamente “ontológico”.

Há outras formas de vivenciar a eternidade, embora essas possam se dar como engodo. Por exemplo, o próprio consumo é uma forma de viver o eterno e o efêmero, com este último se passando, na consciência do sujeito, pelo primeiro (isto é, o efêmero do consumo sendo interpretado como eterno). Num comercial de carro, você é, como consumidor, levado a “viajar” em ideias de liberdade, de perfeição, de potência, de força, de design, de beleza… mas, em dois ou três anos, você se vê com um produto que já precisa ser trocado, tamanha a “efemeridade” com que suas peças e seu conjunto é feito. A própria propaganda, aliás, lhe dará novamente o insumo para julgar que seu atual carro está, na verdade, ultrapassado, que precisa ser trocado – você vive, nesse momento, a consciência (falsa, mas profundamente conectada com as sensações e às ideias que até parece verdade!) do efêmero, mas não se atém a isso, não se delonga nessa sensação, pois ela é logo engolfada por um novo carro, pelo “cheirinho” de novo…

A arte soube captar a relação entre o eterno e o efêmero. A arte, inclusive, já foi deveras criticada por supostamente ter, em várias de suas correntes, abandonado a miragem do eterno e ter se voltado, perigosa e arriscadamente, para o efêmero (o que dizer, digamos, da chamada “art pop”?). Mas há muitos movimentos que sugerem o inverso na arte, e isso, penso, praticamente desde seu nascimento. A arte eterniza o efêmero. A pintura de uma mera paisagem, ou de uma folha, o minimalismo obsessivo de certos pintores ou ainda escritores, institucionaliza a passagem do efêmero, da plumagem da vida cotidiana, digamos assim, para o eterno, para uma “forma ideal” – para, faceiramente, citar uma conhecida colocação de Platão.

Por fim, podemos optar por viver no efêmero. Podemos optar por, digamos, viver “em festa”, em celebração. Podemos abrir mão da busca pelo eterno, pela inscrição de nosso nome num grande e relativamente estável gênero (profissional, cultural, etc.). Podemos, simplesmente, “deixar rolar”, deixar ser. Claro que não conseguiremos fazer isso de modo profundo, a menos que, de fato, façamos nossa vida algo “insustentavelmente leve”. Digo que talvez não possamos, pois, como disse no início, sempre estaremos no interior de um enlace, de um duplo. Até podemos correr para a primeira igreja da esquina, ou então nos voltarmos para nossa própria espiritualidade; podemos, sim, podemos. Ali, numa simples casa-igreja (ou mesmo num suntuoso templo), teremos contato, de modo imediato e quase “pop”, à imensa fragilidade e, paradoxalmente, à insuperável “consistência” de nossa vida como espécie. Se a pessoa não se deixar alienar (pois, acredite, o mero pensamento da finitude e da fragilidade huamana serve para nos tornar susceptíveis e imbecis), ela terá ali um momento de contemplação do sublime.

Mas contemplar o sublime, muitas vezes, não é suficiente para fazer você voltar à realidade, ao cotidiano, a seu movimento miúdo, a sua “corriqueiralidade”. Você tem de ser forte para, digamos, vislumbrar o sublime no âmago, no interior mesmo, do cotidiano. Só um exemplo para terminar. Imagine o trabalho, o emprego: ambos poderiam ser muito mais do que eles efetivamente são. Muitas vezes, a pessoa passa horas, dias, semanas, anos, décadas… a vida toda, fazendo a mesma coisa (ou coisas diferentes, não importa…). Se você parar para pensar, por mais que lhe digam que seu trabalho é “profundamente cheio de sentido”, ele é efêmero: o melhor presidente de empresa será, logo mais, substituído; a empresa mais sólida e orgulhosa de sua marca pode (e, provavelmente, será) vendida, mudada de nome, dividida, fragmentada, tratada como um pedacinho de ações numa bolsa de valores qualquer. Mas ele também poderia ser sublime, não? Como? É impossível responder a isto se pensarmos como indivíduos, como seres singulares, “especiais”, diferenciados; só responderemos a esta questão se, paradoxalmente, esquecermos de quem somos, se nos abrirmos para uma anônima e inexplicável impessoalidade. Talvez seja isso. Talvez, para encerrar, o sublime seja exatamente isso: a impessoalidade, o anonimato, a insignificância ao nível do indivíduo com nome X ou Y, identidade A ou Z.

Como pode ser potente, o anonimato.