Nada me faltará

Acabo de ler o novo livro do paulistano Lourenço Mutarelli (o mesmo autor de “O cheiro do ralo”, que virou filme). A história narra um insólito incidente que aconteceu com o personagem principal, Paulo. Desaparecido a um ano, ele reaparece do nada e, pior, não se lembra do que aconteu. Para ele, um ano era equivalente a um dia. Antes de sumir, Paulo vivia uma vida “normal”: era casado e tinha uma filha.

O que mais incomoda os amigos e a mãe de Paulo (além da polícia) é que este não demonstra qualquer preocupação pelo paradeiro da mulher e filha, que sumiram ao mesmo tempo que ele, mas, ao contrário de sua sorte, continuam desaparecidas. A indiferença de Paulo é interpretada como prova de que ele deve ter alguma culpa no sumiço das duas. O personagem, porém, admite, em sua sessão de terapia, que não sente absolutamente nenhuma falta delas (daí, provavelmente, o título do livro).

Numa interpretação livre, fiquei com a sensação de que o livro aborda o significado de “realidade”. Toda a ambiguidade gerada pela narrativa tem a ver com a alternância entre acreditar no personagem principal (que dizia não ter nada a ver com o desaparecimento da mulher e filha) ou em seus amigos e parentes. Em grande parte do livro, Paulo é lacônico, de uma concretude discursiva radical. Os outros “falam” para ele, dele, sobre ele.

O final da estória, apesar de aberto, deixa entrever uma pista sobre o que, afinal, pode ter acontecido – o último livro comprado por Paulo foi Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, de Foucault. Quem conhece, sabe que se trata de uma história verídica de parricídio/fatricídio narrada pelo filósofo francês. Eis aí, além da prazeirosa (como sempre) leitura de Mutarelli, um convite para voltarmos a alguns clássicos.