Liberdade

Uma pessoa pode ter motivação, mas não ter um objetivo a alcançar? Conversando com algumas pessoas, não raro me pego pensando que elas não conseguiriam viver sem um objetivo, mesmo que tal objetivo seja uma tarefa, uma meta de curtíssimo prazo. Se for aquele tipo de pessoa irriquieta, então esta pode contentar-se com “um dia a cada vez”, mas desde que, nesse tal dia, haja algo a realizar, a alcançar. Há, inclusive, aqueles mais sistemáticos que chegam a anotar em agendas e cadernos suas ‘metas’ diárias.

Uma pessoa que não tem objetivo pode experienciar depressão? Bom, pode ser estereótipo, mas deve ter muita gente de ‘papo para o ar’ por aí que não deve ter nenhum problema em ficar na brisa das circunstâncias, especialmente se puder contar com o trabalho de outros. Mas uma pessoa que, como muitas, nasceram e foram educadas em uma cultura orientada por objetivos, sim, provavelmente ela vai se deprimir, e nisto temos a faceta bastante moderna dessa patologia. Nesta faceta, a depressão é uma doença do vazio, da incapacidade ou da impossibilidade psíquica de fluir a vida sem um objetivo. Sem este, a pessoa pode se sentir inútil, imprestável, à deriva. É claro que uma pessoa com muitos objetivos também pode se deprimir, mas aqui se trata de outra faceta da depressão, aquela estudada por filósofos pop como o autor de A sociedade do cansaço (Byung-Chul Han). Sociólogos muito mais sérios já haviam percebido isso faz tempo (por exemplo, Alain Ehrenberg). Aqui, depressão é um tipo de burn-out, um consumo radical da energia vital, e, psicanaliticamente poderíamos acrescentar, uma espécie de válvula de segurança para que o sujeito simplesmente não se dissolva no atendimento do gozo do outro (sobretudo se esse outro for um chefe, uma empresa, um pai ou mãe implacáveis, etc.).

Então, o que nos resta? De um lado, o deprimido sem objetivo; de outro, o deprimido por sobrecarga e estiolamento psíquico. Como separar o joio do trigo? Porque veja, uma pessoa ‘sem objetivo’ e, como tal, simplesmente à deriva, ela está mais longe ou mais perto de seu plano geral no cosmos, por assim dizer (metaforicamente)? Considere ainda o seguinte. Quem disse que perseguir um objetivo é algo, necessária e intrinsecamente, bom? Vamos considerar uma coisa bem simples. Você precisa trabalhar. No trabalho, você traça objetivos em relação à sua carreira (sua experiência com o trabalho no tempo, independente de onde esteja trabalhando no momento), e traça objetivos em relação às tarefas concretas a serem realizadas. Ou segue objetivos traçados por outros, tanto faz para nosso propósito aqui. Então, você recebe seu salário. Aí você compra um carro. Estabelece uma casa, tem uma família. Aí os objetivos começam a se sobrepor e a acumular. Quando você tem um filho, por exemplo, você não conseguirá jamais escapar da força de ter de fazer coisas para ele, sendo que tais coisas sempre serão percebidas por você como a coisa mais sublime e justificada (no amor, na criação, etc.) para enlaçar seus atos, seu tempo, seu trabalho, seu suor, tudo. Sua vida passa a orbitar ao redor do outro que, detalhe, você gerou (pois é mais difícil o mesmo nível de apego quando não se tem o próprio filho; desconheço razões etológicas para isso – podem haver). Sua vida sai de você, e você entende esse gesto como um doar-se, como uma abnegação para que um outro se desenvolva; se você for religioso (mesmo que não pratique religião), então, aí a narrativa estará totalmente armada. Sua vida tem seu eixo fora dela; e, na sua cabeça, isso tem de ser assim mesmo, você sente na carne isso, como não poderia ser? Inclusive, o nível das emoções é tão evidente que todo o conhecimento gerado por esta pessoa sobre sua circunstância e sobre seu estar no mundo (no Cosmos) fica obliterado, ou confundido, embaralhado. E 80 anos passam muito, mas muito, rápido; quando se vê, a vida estará no fim, e a sensação de vida justificada daí se seguirá.

Assim, a certo ponto, ao se deixar levar na ciranda da vida cotidiana, orientada por objetivos, metas, expectativas, foco, coisas importantes, etc., você acaba se enebriando num tipo de pensamento imaginário que se alimenta a si mesmo, e, ao mesmo tempo, suas emoções começam a ser reguladas por esse mesmo imaginário. Ah, vão nos dizer os realistas, esse seu papo aí é coisa de gente que pensa demais; seja uma pessoa prática, pare de questionar, o mundo precisa de gente que arregace as mangas e construa um futuro melhor, etc. É muito difícil, talvez até impossível, ‘discutir’ com quem ‘sente’ as coisas como ‘certas’. Você mesmo pode achar que você está certo; seu pensamento pode estar tão orientado pela imaginação que você não consegue, cognitivamente, abrir algumas portas e considerar outras janelas. Mas o que haveria para além da imaginação?

As causas reais das coisas. Talvez você possa me dizer que isso não existe, afinal, vivemos num “mundo relativista”. Mas existe, sim, um plano além do da imaginação, mas para chegar até ele é preciso usar a razão, a capacidade natural de nossa mente, em seu estado natural, em sua potência natural.

Ao tentar avançar um pouquinho para fora da imaginação, e de suas emoções ou afetos correspondentes (reativos, na maior parte), algo mais ou menos assim ocorre: é como se você estivesse acostumado com as luzes da cidade, à noite; então, quando dirige para o campo, quando as luzes artificiais rareiam, então você se dá conta de que, nossa!, há um céu, há estrelas, e há um infinito em todos os cantos. Este é só um exemplo. Não falo aqui de contemplar a ‘natureza’ (coisa que, em geral, quem diz é quem é rato de cidade), falo em descentralização radical, perspectiva, apercepção de que estamos na Natureza (novamente, não confundir com passarinhos, lagos e lagoas!). Quer outro exemplo similar: você percebe que tem um corpo? Parece boba a pergunta, mas não reaja assim logo de cara. Muitos de nós sequer nos apercebemos como sendo um corpo, na verdade, e que esse corpo é um corpo que faz parte da Natureza – mas ele também, ou sobretudo ele!, foi enredado pelo conhecimento atrelado à imaginação…

É impressionante como o nossa imaginação, turbinada pela sociedade do espetáculo e das telas, nos lança tanta luz (literalmente, no caso das telas), que X passa a produzir X, ou seja, um pensamento leva a outro pensamento, que se “reforça” de modo fictício em outdoors, na boca de outras pessoas (artistas, intelectuais, pastores, padres…), gerando a sensação de realidade. O mesmo pode ocorrer com nossos objetivos: eles podem ser parte de uma trama fictícia – não necessariamente má, em si. Neste momento, por exemplo, há pessoas quebrando a cabeça, verdadeiros “heróis” tentando achar a vacina para o COVID19, para que todos possam retomar suas vidas, uns mais, outros menos. Mas veja que interessante: foram nós, humanos, que, em primeiro lugar, provocamos a própria doença, no sentido de que princípios ecológicos foram corrompidos, permitindo o salto e a circulação humana do vírus. Sempre foi assim: a civilização cresce, interfere na ecologia, provoca uma catástrofe, aí cria seus próprios mecanismos, sofisticadíssimos, diga-se de passagem, para combater algo que ela própria criou. E já pensou na motivação desses cientistas? Se for um norte-americano, então, ele estará simplesmente fascinado e miticamente jubilante por estar “fazendo história”, por estar num dos “maiores países do mundo”, etc., etc., etc. Os EUA são, aliás, a terra da motivação, da orientação por objetivos, do pensamento pragmático, da tecnologia, do dinheiro, da sofisticação inacreditável da espécie humana moderna. Quer dizer, há muita narrativa, muita lenha para a imaginação ali (e, pela via das redes e telas, para todo o resto do mundo…é surreal como todo lugar do mundo discute as eleições americanas e as coisas deles, etc.).

A resposta para a questão acima, sobre se é possível ter motivação sem objetivo, penso eu, tem a ver com nossa concepção de liberdade. É livre quem cresce ouvindo que precisa ser alguém, alcançar objetivos, se tornar um doutor, um empreendedor, etc.? É livre quem, como diria Dejours, “tem motivação”, em vez de desejo? A liberdade humana depende de entendermos as causas, e em nos tornarmos causas de nossas próprias vidas. Tornar-se causa de sua própria vida é descobrir a verdade sobre você, sobre onde você está, sobre quem você é, e sobre os outros. A liberdade consiste em reencontrarmos com nossa própria natureza, que não necessariamente vibra na mesma sintonia que a de outras pessoas. Mas aí finalizo com o seguinte: criamos nossos aparatos imaginativos para justamente evitarmos de nos confrontar com nós mesmos. É um mal necessário, alguém poderia dizer.

Post escrito inspirado em Espinosa.