Futilidade

Após certo marxismo (estou pegando o marxismo por preguiça ou por estereotipia) nos impregnar, e digo esse ‘nós’ com muitas restrições, com análises realistas ou materialistas da realidade, a vida se tornou algo como aquele day after quando, na estorinha de Nietzsche, Deus foi anunciado morto. Quer dizer, quando uma perspectiva de análise da realidade teima em sempre nos ficar apontando o que há por detrás das cenas, tudo ficou muito mais chato. A realidade pode ser chata, ok. Se estamos felizes porque compramos, sei lá, uma calça nova, se você for analisar a fundo, tal felicidade é subproduto de uma consciência que fundiu a mercadoria ao próprio tutano subjetivo de que somos supostamente feitos. Se você, que gosta de vinho e boa música, está ali na sua casa fazendo isso, você poderia começar a pensar na imensa, e muitas vezes desumana, cadeia de eventos e suores e explorações que trouxeram, à sua taça, o vinho; e, ao seu celular, a música. Você pode se agarrar ao seu sentimento de prazer no instante e simplesmente ignorar tudo o mais – seja por impossibilidade cognitiva de captar o ‘todo’, ou porque você está muito acomodado para isso, para se dar tal trabalho. Mas o analista dos bastidores está sempre a lhe chamar à consciência, te apontando, às vezes com um ressentimento que ‘realistas’ às vezes podem vir a ter, o quanto você está metido até a cabeça nessa coisa toda.

Seres humanos podemos ser, e muito, seres fúteis. Construimos significados; escrevemos romances; obras de arte (pintura, etc.); qualquer coisa do gênero, simplesmente porque não sabemos o que fazer de melhor com nosso tempo (se todos puramente nos entregássemos às nossas pulsões primitivas, talvez não ficássemos sentados horas a fio escrevendo um artigo, polindo um armário, pregando pregos, operando cérebros, etc.). Somos fúteis, perdemos tempo, jogamos conversa fora, viajamos em sonhos. Dormimos. Construimos toneladas e mais toneladas de produções de sentido (jornais, livros, outdoors, manuais, etc.) sem qualquer validade que não a de nos enxarcar de redundância (quem não escutou uma mesma música milhões de vezes?) e algum pragmatismo miúdo (embora útil demais; imagine viver sem um mapa rodoviário!). Milhares de horas são investidas em atividades com nenhum propósito, embora, de novo nosso marxista pode argumentar, tal futilidade esteja baseada, chupando como um parasita, num batalhão de outros seres anônimos, que, como os filhos priveligiados do Cristo, estão aí a nos servir e em contato com o mundo na sua sensibilidade mais …sensível, corporal.

E, nesse processo de construir sentido na futilidade, e para a futilidade, vamos confundindo, talvez, cultura com ideologia. Chega um ponto que nem importa mais. O quanto daquilo que penso sobre mim, das categorias ou similares que uso para dar vazão e direção a meus afetos, é produto de, sei lá, as horas de televisão que assisto? Às ladaínhas sem fim das minhas professoras do primário? Daquilo que observei com este par de olhos que nada têm de virgens? Do que escutei no rádio? Do que li em livros? Como saber se o que está na minha cabeça (como se algo pudesse ‘estar’ ali, enclausurado) foi ‘implantado’ (lembram do filme?) ou foi construção minha? Ora, mas o ‘construção minha’ não poderia ser, isto também, uma ideologia, no sentido de que aprendi, no meu século, a achar que o que realmente importa é o que crio e sinto por mim – e nisto devemos agradecer ao romantismo espraiado na e pela psicanálise (e pelos romances, etc.). E se essa colocação for reflexo, poderia algum psiquiatra aí dizer, de um pensamento paranóide de minha parte (não é uma patologia a pessoa acreditar que há coisas ‘de outros’ impregnadas nela, e ela, por vezes, se sente como um marionete de forças que lhe são estranhas)?

Claro, uma humanidade que, por efeito de sua condenação semiótica, não poder fazer outra coisa senão criar ‘teorias’ sobre o que lhe acontece, ou mesmo sobre sua situação real (onde mora, o que come, o que veste, a quais cuidados de saúde tem acesso, se tem água encanada, etc.), só conseguirá se olhar no espelho se começar a adotar, pelo menos parcialmente, a atitude de buscar o que está por detrás das cenas, após o fechamento das cortinas (ou mesmo antes de estas serem abertas). Marx volta. Mas Marx, convenhamos, nos colocou à frente, na mesa, uma ideia de que somos, como humanos, criaturas úteis, voltadas ao trabalho, matando qualquer ‘encanto’ do pão que surge, como que por milagre, em cima da nossa mesa (crianças, obviamente, pensam dessa forma). Olhar no espelho dói, com certeza. Mas sabe o que me dói mais? Saber que, ao olhar no tal espelho, não vou escapar da futilidade. Se uns conseguem usar melhor, não sua proximidade com o real, mas sua habilidade em manipular as aparências, estes vão aparecer menos fúteis, ao menos de acordo com os critérios vigentes. Mas, num plano infinitamente amplos, até estes serão fúteis. A questão é como ser um fútil com alguma …finalidade (ha ha ha).