Fragmentos dispersos, 5

Hemingway. ​Ele foi desonesto. Criou Renata, uma italiana nascida em Veneza e com 19 anos a altura da narrativa. Renata era linda e, sobretudo, inteligente. Conhecia história, era rica e não se importava com a opinião dos outros. Amava assuntos de guerra, ou queria livrar o coronel Cantwell de seu fardo; ‘purgá-lo’, como está na tradução. Falava inglês, italiano e espanhol. Lia Dante. Não é justo, velho Hemingway. Ele criou uma das histórias de amor mais lindas; o coronel, 50 anos; Renata, 19. Almas fantásticas. Além do amor pela Itália, tão maior, por certo, do que muitos italianos de hoje têm pelo país.

O palhaço. O cara nasce. Brota de algum útero. É nutrido, protegido. Progressivamente, vai sendo exposto ao próprio sotaque, do qual por vezes sequer tem noção. Aí vai sendo vestido. Depois, se veste. Acredita no que ouve. Ou ouve o que acredita. Vai seguindo por aí. Como um coreógrafo, obedece a um inscript invisível, se engana sem perceber, está num imenso palco, no qual a única conexão real é seu corpo que respira. Seu coração que bate. O indivíduo segue, e segue, acredita, sonega a si mesmo as profundezas de sua própria existência, mas aqui e ali tem alguns pontos de contato com o que poderia parecer o real: é promovido, passa numa prova, termina uma faculdade, sei lá, qualquer coisa, que ele entende, com razão, aliás, como um ‘ponto de checagem’ de que está no caminho certo. Não está, meu amigo; nunca estará. O planeta avalia os humanos em mega-toneladas: a cada milhão delas, sendo otimista, nasce alguma coisa que presta.

A agonia. Não dormir, por alguma razão. Já viveste isso, meu irmão? Você se deita na cama e esta parece lhe rejeitar, não querer você, ou você mesmo não a querer? Algo que gera agonia, a posição de dormir: aquilo não faz sentido. É estranho, não se encaixa, nenhuma posição repete a ‘terra natal’. Os psicanalistas falam de que dormir envolve a capacidade de transitar: de sair deste ‘mundo’ para o mundo das penumbras, pegando a barca de Aqueronte. Tens medo do que encontrará do outro lado? Não, nenhum medo do outro lado. Mas será? Às vezes, você se agonia tanto que o fim não parece, em teoria (e talvez este seja o problema!), ser pior do que você vive. Talvez isso seja dito por falta de conhecimento. Aliás, o quanto não sabemos? Muita coisa. Mas, ao sabermos, isso nos colocará num patamar mais elevado em relação à compreensão deste universo? Talvez, mas não sei. Em todo caso, hoje, quando conheço X, penso: “Nossa, como eu era estúpido quando conhecia X-1”. Ok, e quando conhecer X+1 vou falar a mesma coisa: “Nossa, como eu era estúpido quando conhecia X”. E assim por diante. Seja como for, até hoje, ao caminhar e olhar ao redor, ao testar de tudo que estivesse no raio de meus delírios transformados em ação, nada se encaixa, nada faz sentido, e sinto como se todos estivessem malucos, doidos, só faltando babar pela boca.

Vontade de falar. É interessante. Lendo alguns autores, gente da literatura digo, estes parecem ter em comum esse desejo absoluto pela palavra, essa dependência de colocar as coisas para fora, de criar universos, de articular palavras, dar-lhes ensejo e vida com naturalidade. Talvez morressem, ao menos é o que alguns dizem, se fossem obrigados a parar de falar o que falam. Bukowski, por exemplo, vive dando exemplos disso em seus textos. Para ele, escrever era tão natural e orgânico que bastava sentar e ver as frases se encaminharem. Parece que as palavras e, depois, o reconhecimento dava um lugar ao cara. Por exemplo, em qualquer livro dele você pode vê-lo dizer que Hemingway era meia boca; Tolstoi: um panaca (ou algo assim). E assim por diante. Julgava, de seu altar, todos e tudo. Ao mesmo tempo, dizia não se importar com nada nem ninguém. Afinal, ele tinha a seu ‘favor’ uma vida ferrada e fudida, e tinha uma postura em relação à leitura de outras coisas que não as dele como um esfomeado que soubesse exatamente se estavam lhe dando comida ou pedra ou estrume para comer. Bom, o que quero dizer é que cada autor cria seu castelo e se enfurna nela; é um bote salva-vidas. Ele o leva ou o usa para atravessar essas trevas dos anos. Criam uma razão para, ao colocar o pé no chão logo pela manhã, fazer a coisa toda ficar minimamente suportável. Mas e se você não tem muita vontade de falar, ou se falar é como você estivesse com gases querendo colocar tudo para fora, mas calha de estar no meio de uma platéia, sem poder soltar um mínimo fiapo?