Fragmentos, 3

Os afetos com que vamos ao mundo. Acho que existe uma relação direta entre uma realização cognitiva e a tonalidade afetiva com que nos colocamos diante das circunstâncias. Não é só a banalidade de que somos seres afetivos e racionais. Não. Trata-se antes de algum tipo de pano de fundo constitucional a partir do qual canalizamos as impressões que nos vêm de fora. Ora, estas são apenas impressões, mesmo quando já previamente interpretadas e feitas para se atingir um objetivo pré-determinado. Se nos abrimos ao mundo, num dado momento, com um afeto “triste”, é provável que tudo seja circunscrito por tal afeto. Ou então por um afeto de ódio ou medo. Ou de alegria e paz. Pois afetos de base têm uma estranha sustentação em nossas reais pernas (não nessas pernas de carne e osso que exibimos por aí). Os afetos de base são o que realmente nos sustentam. Nos conectam com a terra, com algum tipo de concretude. Achar esse centro afetivo me parece fundamental. Sem isso, há uma completa loucura com ares de normalidade: somos levados a sentir qualquer coisa, e a construirmos nossas cognições com base nesse mesmo sentir. E a partir de certo ponto você não sabe mais se o que sente é reflexo do que você foi levado a sentir (afetos volúveis, falsos em relação à sua essência), ou se o que você conhece é reflexo desse mesmo sentir falso com que você se abre ao mundo. Talvez uma maneira de analisar isso é notar o quanto você se sente ou não massacrado por uma vida completamente estranha, em que você não se reconhece, e de onde se afoga como que pressionado embaixo da água por duas patas de elefante.


Do nada. Sempre aparecem, sorrateiros, tantos pensamentos na minha mente! É como se fossem monções que mexem ou reviram todas as minhas faculdades. Como ventos alterando a conformação da água do mar. Então elas se revolvem, sobem, descem, se contorcem, serpenteiam e, do modo como vieram, se dissipam. Ou como vento no deserto: chacoalha a areia, até mesmo monta com ela formas lindas no ar, e então a deixa cair novamente ao chão, inerte e inanimada, sem vida, como sempre foi, desde que as rochas que a precederam se estraçalharam, perdendo elas também suas formas, por fenômenos velhos como centenas de milhares de anos.


Ao vencedor, as batatas. Estes dias vi um escritor, desses que sempre escrevem para jornais e têm também alguma coisa escrita na forma de livros, dizer que, afinal, havia entendido sua “missão de vida”. No mar de porcaria da mídia, isto me fisgou. O que deve ter alguma razão, se é para acreditarmos em nosso desconhecido interno. Pois fiquei pensando: mas que homem arrogante! Como alguém pode dizer que encontrou sua missão na vida? Por que escreveu coisas, teve alguma fama, conforto material, etc, e se sente um iluminado dentro de algum apartamento iluminado? Isso me deixou profundamente revoltado. Acho que a literatura, ao menos essa pequeno-burguesa desses colunistas de jornal, cria um mundo tão fantástico na cabeça do “criativo” que ele logo faz de suas linhas um castelo moral ou ético em que se julga o senhor, com vida justificada e tudo mais. Se você, meu senhor, achou o sentido e a missão de sua vida, guarde para você e vá plantar batatas!


Aliás, literatura. Você gasta horas lendo um romance. Você percebe que, no fundo, o que acontece é que você acaba sendo colocado na mente de outra pessoa? Ela conduziu você pelos caminhos que ela achou que você deveria seguir junto dela. A mesma coisa quando alguém abre a boca e fala o que Ela acha sobre qualquer assunto. Oras, esse é o mundo dela! Por que ela não guarda para ela? O que ela quer, e você ao deixar, com entrar em seus ouvidos? O mundo acaba muitas vezes sendo vivido na bolha que alguém soltou de sua boca e lançou sobre o mundo para capturar outros. Interlocução? Diálogo? Eu acho que a maioria é corrompida, a maioria desses ditos “diálogos”. E, claro, há os muito mais graves, os que mentem e tentam ganhar vantagem objetiva sobre você, como está cheio pelo Brasil desde que “descobriram” esse lugar. Por que alguém afinal abre a boca? O que quer? Para mim, é inadmissível jornalistas, por exemplo, virarem celebridades e personagens muito bem pagos por criarem suas bolhas, ainda por cima usando, como de praxe, estantes de livro como pano de fundo!


44. É amanhã. E quero entender por que estou tão sick of myself. Às vezes, acordo e sinto como se houvesse, como os animais, deixado de representar/perceber o mundo e passado a senti-lo. Doce ilusão. Em todo caso, depois de certa idade, ou você metaboliza em linguagem própria o que foi se acumulando ao longo de sua vida, ou você se torna um saco cheio de areia, pesado, sempre infantilmente indisposto a ficar escorado em qualquer coisa.