Fragilidade

Queria ter uma inspiração genuína, pois o que me leva a escrever é muito mais uma projeção no tempo, quando eu voltar a este post, neste dia, 20 de agosto de 2020. Mas, para minha surpresa, estou sem essa inspiração. Queria, de verdade, escrever para um ser imaginário, que me deixou. Um ser que me compreendia dentro das possibilidades dele. E que me esperava. Acho que há isso; ao pensar nisso meus olhos começam a dar sinais de um turbilhão esquisito que se forma, se vai, se mistura. É como se eu estivesse procurando um fio puro de água, mas logo ele se mistura com barro, água suja, e já não é mais possível discernir. Ao pensar num reencontro que não acontecerá jamais, eu sinto, talvez pela primeira vez na vida, essa sensação concreta, real, de perda em forma de suspensão, de gesto não realizado, de poder ser, mas que não foi e não será jamais. Não acho que eu saiba envelhecer. Pois supostamente, ao envelhecer, vamos acumulando esse tipo de coisa. Não sei. Também não é nada cinematográfico, digo, não é algo que estou aqui escrevendo porque, inconscientemente, a coisa ficou gravada em mim ao ver algum filme ou ao participar da cultura cotidiana. Não, estou sentindo, concretamente, essa perda de um momento futuro. Outra coisa que queria captar genuinamente em meus sentimentos no momento é o que mais esse ser que perdi hoje gostaria de mim. Ou, voltando a mim, o que eu gostaria de realizar com ele. A morte, o que sei da morte? Só sei que eu a temo, mas não sei o que há nela que temo, talvez a fragilidade de tudo isso. Eu sinto como se tivesse perdido um pequeno, não, um minúsculo pedaço de delicadeza, verdadeira delicadeza (mas que sempre ‘pensou’ o contrário!). Acho que entendo o que significa ter um filho; imagino a sensação. Você contempla aquele ser, ainda mais se ele for pequeno, e você como que sente, você sente nas vísceras, que tudo é imensamente frágil, e, sei lá, justamente por ser frágil é atraente, comovente, condição para tudo o mais, para você sentir alguma forma de amor e de temor, como se as duas coisas fossem uma coisa só. Não sei, aqui já estou (mesmo sem escrever), deixando alguns jargões que li superficialmente da psicanálise. A tal projeção do ideal de eu ou eu ideal num objeto externo ao eu, etc. Mas há a fragilidade, há seres frágeis, minúsculos. E se formos pensar, se formos observar, estes seres estão à nossa volta em uma quantidade tão absurda, que só a consideração disso pode gerar vertigem. E há também o contraste e a contradição. Você contrasta o ser frágil com estruturas ‘perversas’ ou frias que estão ali para te assistir de algum modo, ou simplesmente estão ali fora, no ‘mundo dos adultos’. O mundo dos adultos se choca com esse pedacinho de fragilidade que você escolhe, ou acaba sendo envolvido com, para representar a ligação entre o vivo e o morto, o fazer ou não fazer, o útil e o inútil, o belo e o feio, etc. E contradição porque, ao olhar para uma fragilidade em particular, você sequer imagina que essa mesma fragilidade pode, ela própria, viver às custas de destruição de outros seres frágeis. Novamente, eu tenho vertigens, e sei que estou perdendo o contato com algum real (não com a realidade, pois a realidade é, ela própria, cheia de furos). Por fim, há as contradições, as ambivalências, da morte e do luto. Você saber que amava, mas você saber (e isso dói, como culpa muito estranha) que você continua em funcionamento sem o ser amado, que logo será coberto pela poeira da sua história pessoal. Um ser frágil, um mundo de coisas. O corpo inerte no chão indiferente, enquanto coisas ‘sérias’ acontecem em cada lugar, e você também se culpa e se castra por esquecer o resto do mundo, e fazer o seu mundo e aquele momento a única coisa que importa. A culpa por coisas feitas contra o outro ser, aqui e ali, e a consciência de que o momento da morte é uma imensa lupa que intensifica apenas certas facetas do fenômeno. A culpa, a auto-recriminação, a eventual ‘desconexão’ da realidade. E a pergunta: por que, por que faço o que faço? Sou apenas um corpo vivo, sendo estufado pelas fantasias dos outros? Não sou mais do que um narcisista projetivo? O que é isso que aconteceu? Que mundo é esse em que vivo? A fragilidade, e a perda de algo, de algo (me esforço para nã opensar em Luto e Melancolia). O ódio contra tudo e todos, a guerra perpétua, o demônio com a metralhadora livre, e aquele ser e corpo a te lembrar, a te questionar em silêncio, sem saber de nada, apenas colocado em alguma engrenagem, e, como eu, até então respirando e sendo alguma coisa viva neste planeta. A vida crua, e os discursos, os erros, os acertos, as narrativas. E o fim, pois tudo tem um fim.

Bentha
27.08.2007, São Paulo
20.08.2020, Campinas