Fagulha

Escrevi em algum momento neste blog que um aforismo do Nietzsche me dizia muito. Acho que foi há uns bons anos atrás. Tentei achá-lo novamente, na íntegra, mas não consegui. Acho que era do Humano, demasiado humano, mas não encontrei.

A idéia era simples. Aqui vai com a liberdade de minha memória/imaginação. Uma poça d’água, dessas de beira de estrada, em algum lugar com pouca circulação de pessoas. No alto de uma colina, em uma estrada de terra, por exemplo. Essa poça fica parada e tranquila na maior parte do tempo. Esse seria, digamos, o ‘estado natural’ dela. Mas eis que, em um dia qualquer, passa um cavaleiro e por qualquer razão provoca um distúrbio na poça, seja por passar com o cavalo perto dela, trepidando a região, ou por ter lançado algum objeto pequeno sobre ela. O fato é que, como se poderia imaginar, um gesto involuntário como esse acabou alterando o estado natural da poça e seu conteúdo. O que Nietzsche em seguida dizia, na ‘interpretaçaõ’ da situação: evite situações em que seu estado ‘normal’ de funcionamento é alterado, pois leva tempo para voltar ao normal e, ao cabo, a experiência nem sempre é válida ou ‘enriquecedora’.

Mas me ocorreu uma outra possibilidade, embora, evidentemente, entenda o contexto do aforismo original (a perspectiva de você tornar-se quem você é, não se deixando ‘moldar’ pelas circunstâncias exteriores, tampouco tentar, vamos dizer, violar-se em certos contextos ou escolhas ou lugares que não correspondem, no fim e ao cabo, à sua ‘natureza’).

Vamos supor que você esteja na sua, como se diz, acondicionado em seu suposto estado natural. E se protegendo para não ter nenhuma pedra ou turbulência próxima à sua “poça”. Mas tal pedra vem e, no final das contas, isso pode ter alguma positividade. Para argumentar nessa direção, considere uma outra metáfora: agora, a de uma corda presa em duas extremidades. A depender do modo com que é tangida (a força que lhe é aplicada), essa corda vibra em diversas frequências (mantidas, obviamente, as mesmas densidade e comprimento). Embora ela sempre vá possuir o que os físicos chamam de ‘frequência fundamental’, ou primeiro harmônico, ela também pode vibrar em outros harmônicos. Como um violão, cujas cordas, a depender de onde são ‘presas’ pelos dedos do músico, emitem sons com diferentes frequências, umas mais, outras menos agudas.

E se formos, similarmente, como tais cordas, que podem vibrar em diferentes harmônicos? Haveria de o segundo harmônico, por exemplo, ser menos ‘representativo’ da ‘essência da corda’, e, pulando para a realidade, da ‘essência ou modo natural’ de uma pessoa?

Por característica de personalidade, sempre tive a tendência, embora sem quase nenhum sucesso, de operar na metáfora nietzschiana. Para alcançar meus objetivos, em geral profissionais, mas com certeza não apenas, toda minha atenção precisa estar condensada e, para isso, a superfície da ‘poça’ da minha existência deveria estar sempre no seu estado fundamental. Óbvio que, a todo instante, somos afetados pelo mundo. Não vivemos no alto de uma montanha. Também é óbvio que, criando um espaço para si de protenção mínima (uma substituição para a experiência primitiva do útero), nos defendemos, por assim dizer, das afetações do mundo, ou, para usar uma palavra menos bélica, nós acolhemos as afetações do mundo a partir de um lugar onde as possamos, primeiro, digerir (de um ethos ou casa). A despeito disso, ocorreu-me, por estes dias, que talvez seja possível vibrar em outras frequências, e esses outros níveis de vibração, embora não sejam idênticos ao do ‘primeiro harmônico’, ainda assim dizem sobre sua própria existência, a compõem, eventualmente a densificam.

Só não sei precisar qual seria o limite. Quer dizer, até qual harmônico se conseguiria ir sem alterar o modus operandi básico de um funcionamento cognitivo que, como uma planta exigente, necessita de um ambiente ‘still’ ou em equilíbrio dinâmico pelo menos, para então poder desabrochar? Pois, se de um lado, talvez seja difícil blindar-se completamente no alto da montanha, por outro as afetações, ao alterarem o modo fundamental de vibração, podem criar uma ressonância e, a depender da natureza do ‘material’ da corda metafórica, romper-se (um copo de vidro, em ressonância, pode romper-se). Ou criarem um novo arranjo, uma nova gramatura de movimentos, todos em alternância, sem que um canibalize o outro (o medo de perder o controle cognitivo, ou uma visão muito estreita sobre o que é a própria cognição).

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A ‘fagulha’ do título é só uma imagem para simbolizar o fato de que, por exemplo, a poça no alto da montanha pode estar preenchida com álcool. Na continuação dessa metáfora, é também possível imaginar o mundo como uma imensa caixa cheia de palitos de fósforo. Você pode ser ‘acionado’ pelos movimentos aleatórios mais banais, imprevisíveis, e seu pensamento pode vibrar e novas conexões serem feitas, como também novos distúrbios serem gerados – o ponto é em ‘digeri-los’, fazer algo com eles. O que diz sobre você essas novas vibrações? Como chamá-las? Pois poderiam haver vibrações em todos os campos ‘tradicionais’, como o profissional, o afetivo, etc. Qual a amplitude da variação, ou seria a vida, justamente, experimentar a maior amplitude possível, pois, como poderia dizer Deleuze, qual o limite ou o que pode um corpo (ou foi dito por Espinosa)? O corpo seria, nesse sentido, o palco de vibrações insondáveis, de construções cujas amplitudes diversificam a existência, como também podem a estilhaçar (o copo quebrando)…

Post-scriptum. Enfim, como a cognição pode ser afetada por essas formas alternativas de vibração é o que, hoje, me causa certa inquietação. Mas, assim como fazem os músicos, quando usam um diapasão para afinar seus instrumentos, assim também podemos fazer com as afetações do mundo. Para os que são de psicologia do trabalho, por exemplo, certamente vão se lembrar justamente dessa proposta feita por Y. Clot ao falar do papel do gênero profissional: agir como um diapasão, capaz de sincronizar as pessoas ao redor do real do trabalho.