Fragmentos, 1

Pornografia. Às vezes, quando olho para o que estamos vivendo nesse grande teatro nacional, com essas figuras mentecaptas e platéia volúvel, sinto como se estivesse vendo algum filme chocante por não fazer nenhum sentido evidente, misturando violência, transe e pornografia. Pornografia no sentido de algo totalmente explícito, embora com algum nível assumido de proibição e transgressão, mas que, não obstante ou por causa mesmo de ser assim, traz alguma forma de gozo. Pessoas abrindo a boca, deixando algo entrar ou sair, se achando mais certas do que as outras, a suspensão da vida cotidiana por uma narrativa única, a conversa de dinheiro misturada com morte, a alucinação de jejuar para combater um vírus, pastores entrando na justiça para abrir suas igrejas, empresários chamando a morte de dentro de seus carros, sob o disfarce de não fazerem os outros passarem fome…a lista é imensa, e não é exclusividade do brasileiro. Pornografia a céu aberto.

Ciência. Quando todas as referências de verdade estão embaralhadas, e num momento em que a produção de versões e anti-versões de fatos chegaram a níveis astronomicos, eis que a ciência se torna um porto seguro de uma classe média assustada como nunca. Essa classe média perdeu dinheiro na bolsa. Alguns perderam o emprego, ou temem perdê-lo. Ou então não suportam a ideia de não ver seus negócios funcionando normalmente. Temem porque eles têm algo a perder. Sua vida é precária, no sentido de não ser garantida. A mídia é 100% porta-voz dessa classe média; a mídia, ela própria, é classe média. Até antes da chegada do vírus, estavam ou aparentavam estar tranquilas com a enxurrada de esgoto expelida de Brasília e desses programas salafrarios de auditório cuspindo pornografia todo dia sobre o espaço público. Não se importavam com a verdade. Agora, quando temem seu cotidiano ruir sobre seus pés, recorrem à ciência. Hipocrisia, malandragem ética, acovardamento geral. Só estamos vendo os porões desse navio podre.

Um e muitos. Quando uma só pessoa fala, e calha de ela ser o presidente de uma república, ela consegue ter um discurso muito mais poderoso do que o da cacofonia de 300 ou 400k de inscritos em redes de esquerda no YouTube, por exemplo (as mais assistidas não passam de 2 ou 3 milhões, e nem de esquerda ou política stricto senso elas são). O presidente de uma república tem, a sua disposição, um imenso aparato. Que se torna mais forte ainda quando é uma voz que reduz a ambiguidade. Não por ser brilhante, mas por ser, acreditem!, genuína. Essa voz, desse tal presidente, fez emergir, tirar das sombras, muita gente de quem nunca se ouviu falar. Assim como tal presidente elegeu deputados e governadores, promoveu muita gente que, da noite para o dia, encontrou um objeto sobre o qual aplicar seu instrumental “filosófico”, “psicológico”, etc. Assim como o coronavírus promoveu um punhado de “cientistas de divulgacao”. Muito divertido como a fortuna, o acaso, faz o monge. Mas enquanto um presidente fala para 200 milhões, ele tem o domínio da narrativa. Ele institui a narrativa. Não dá para competir, dá? Se você abrir um portal de notícias, quantas manchetes vai encontrar? Sei lá, no mínimo umas 50, e isso apenas no espaço de uma tela, sem “rolar”. Quem escreve? Às vezes, nem o nome dessas pessoas nós temos. Como confiar? É uma cacofonia. Mas, sempre há uma narrativa organizadora. Identifique-a. Pode ser sobre um vírus ou, num regime presidencialista, a narrativa do indivíduo presidente. Que, aliás, acaba mostrando uma coisa: a maioria das pessoas é muito, mas muito, perdida. Bocas, dentes e línguas que falam inspiradas por vento.

Esquerda e direita. O que vou falar é sem qualquer base de pesquisa. Mas você já reparou que a esquerda pinta a realidade sempre catastroficamente, ao passo que a direita pinta tudo como “resfriadinho”? Estava vendo. Um canal de “esquerda” arrecadou 10k reais estes dias por fazer “lives”. Outro “filósofo” está garantindo uns 4k mensais para repetir as mesmas informações que, sem revelar, pesca aqui e ali lendo os jornais ou usando bom senso de pessoa escolarizada em país de analfabetos e medrosos sem qualquer originalidade existencial. Para falar mal da direita. Caramba, como você se sente, sendo ouvido devido ao pavor dos nem-direita-nem-esquerda perdidos, querendo alguma ordem? Você está ganhando grana graças ao presidente que organiza uma narrativa e gera sensibilidade em torno de temas que de outra forma passariam desapercebidos pela dispersão cacofônica que virou nossa sociedade de celulares com planos de dados e bites para desperdiçar em “redes sociais”. Você está só “reagindo”, espertinho.