Ego

O budismo, como muitos devem saber, é uma “filosofia” que, entre muitas coisas, tem a ver com a disciplina do desejo. Entenda-se aqui tal desejo como uma palavra singular que se refere à pluralidade de necessidades do ego, essa “instância” consciente que passa o mundo por seu crivo. De fato, em grande parte das nossas questões do cotidiano, o ego está sempre envolvido: pensamos nos nossos projetos pessoais, nos nossos sonhos, nos nossos interesses, nas nossas crenças e convicções, nos nossos medos, na nossa inveja, no nosso amor e assim por diante. Aliás, uma das formas mais primitivas de amor, digamos assim, é o amor do ego pelo outro enquanto “espelho” de si. Nesta conhecida (e simples) descrição do amor, amamos o igual, a imagem de nós nos outros. Ainda aqui, neste nível, a dimensão da alteridade é reduzida à mesmidade.

Mas é claro que, mesmo nos domínios do ego (consciência, como também corporalidade), existe sempre a intromissão do Outro enquanto alteridade, enquanto estranho irredutível. A experiência sexual, por exemplo, é uma forma de encontro “real” entre dois egos – familiares e estranhos para si mesmo. É na experiência sexual que a dimensão mais forte da alteridade se manifesta, por meio do corpo do outro. Claro que, se fizermos um exame a céu aberto, veremos, “coincidentemente”, o quanto os casais se parecem fisicamente – no jeito de se vestir, e, especialmente, no modo como parecem tratar e conceber seus corpos, o que, indiretamente, se refere a seu ego. Freud dizia que o corpo é a superfície (a extensão) do ego.

Tudo isso é relativamente bem sabido no ambiente da psicologia. Contudo, e este é o motivo deste meu post, o que me inquieta é a sensação de que, sempre que “esquecemos” nosso ego, o mundo parece fluir mais significativamente. É paradoxal, pois, sem o ego, não há o centro cognitivo da ação consciente; sem ele, não há consciência. Mas eu estaria correto em dizer isto? Em sugerir que o ego é o centro da consciência e que, por esse motivo, o esquecimento do ego seria, ato contínuo, o apagamento do sujeito da ação? Pois penso que não, e aí é que está o paradoxo – quando experenciamos o mundo em algum registro que não o estritamente egóico, o campo da experiência parece transformar-se.

Exemplos práticos. No trabalho, em vez de eu pensar nos meus interesses mais imediatos, se eu pensar no trabalho propriamente dito (o que “tem de ser feito”), a atividade parece desdobrar-se mais serenamente. Quando, numa relação, não fico “segurando o osso”, portanto, quando esqueço a minha voz monocórdia interior, sempre a inspirar pela linguagem do “tenha interesse próprio, logo, exista!”, e deixo o outro manifestar-se, então as brigas parecem não me afetar – ou me afetam diferentemente. Nestes dois exemplos, não pensar em si parece condição para a fluência dos acontecimentos.

Não sei solucionar o paradoxo, só acho que nosso ego é, ao mesmo tempo, impotência e onipotência. Egos muito grandes talvez queiram dizer medo muito grande, medo da insignificância, da intolerância ao fato de que temos pouca ou quase nenhum poder sobre os acontecimentos do mundo. Pelo menos não o ego nietzschiano… Não é interessante que, semelhantemente ao budismo, o cristianismo também defenda a idéia de “corpo”, isto é, de algo maior do que o ego isolado, a mônada de Leibniz? Um ego muito grande ocuparia tanto espaço que sobraria pouco para Deus.