Do porquê de usarmos os afetos em situações de desempenho

Existe um traço da cultura brasileira que é praticamente inegável, se visto com cuidado: temos certo hábito, automático como qualquer comportamento orientado pelo script cultural, de falar de alguma particularidade de nossa vida privada para tentar lidar com situações em que se esteja diante da expectativa de peformance/desempenho.

Por exemplo, quando não se atinge certo patamar objetivo de desempenho, estabelecido com base em critérios de comum acordo e ‘normais’ do ponto de vista organizacional ou da atividade, logo se vêem justificativas de cunho personalista: “É que estive doente”; “É que isso é uma questão com a qual não me sinto bem em lidar”; “Não fiz isso, mas veja quantas vezes eu passei a noite trabalhando com algo que você me pediu”; “Não consegui, mas veja como sou compromissado com o trabalho, como estou aqui a todo momento para lhe prestar minha ajuda”; etc.

Quais explicações para essa junção, sobreposição, por vezes subsunção, da performance pelo afeto?

1) Não temos, por aqui, em nossa cultura, uma disseminação generalizada do individualismo moral observado em outras culturas. Temos, em contrário, uma mistura entre aspectos desse tipo de individualismo – que, em geral, é indiferente à ‘pessoa’, portanto mais voltado à impessoalidade do desempenho (meu chefe não está ‘cobrando isso só de mim’ – faz parte do processo de trabalho, etc.) – com viéses de uma cultura bairrista, paroquialista, centrada na figura do senhor e do escravo, na metáfora do ‘homem cordial’ tão bem analisada por S. B. de Holanda. A mistura entre esses elementos nos traz, no cotidiano das relações, um tipo de ‘personalismo afetivo’. Tal personalismo faz diluir as cobranças e orientações instrumentais das relações laborais em um caldo de ‘afetividade compreensiva’, do tipo protecionista, personalista, com os conhecidos sentimentalismos ritualizados que temos em nossa cultura – como amigos-secretos no final do ano, mensagens efusivas e ‘calorosas’ de demonstração de afetos em aniversários, ou então quando a pessoa exibe uma foto sua no what’s app, bem ao modo selfie ou big brother de si mesmo;

2) Devido a uma certa propagação, cujas origens precisariam ser melhor esclarecidas no plano sociológico e psicológico, de que ‘performance’ tem a ver com exploração, tem a ver com o ‘ser usado no trabalho’, isto é, tem a ver com um ‘outro’ que nós, brasileiros, conhecemos como o ‘senhor’ (da Casa Grande & Senzala) – ao mesmo tempo aproveitador e cordial. Daí que se espera que esse ‘senhor’, quando for pedir algo, que o faça com a mansidão cordial, com “jeitinho”, com aquele canto de boca religioso, quase como uma criança a pedir doce para a mãe. Por motivos antropológicos que desconheço, o ‘senhor’, como metonímia ou metáfora das relações de poder, tornou-se uma espécie de pai complacente, sujeito, paradoxalmente, a todas as tensões e ambivalências típicas de uma relação pai-filho: amor-e-ódio. Portanto, no trabalho, a cobrança por desempenho, se ocorrer, deve ser de modo ‘estratégico’, um verdadeiro marabalismo relacional;

3) Existe, como parte disso tudo que coloquei acima, uma gramática relacional moldada pela afetividade de tipo prêt-à-porter, além de um estilo de relacionamento baseado na criação de pactos e vinculações ocultas, em redes e históricos de favores e retribuições, mais uma vez uma apropriação, talvez ‘mui’ brasileira, da ‘dádiva’ – teoria tão bem explicada por M. Mauss: “Eu te dou cobertura hoje, você me dá amanhã”. Como, em dado momento, quem cobra é quem, de certo modo, recebeu algo da pessoa no passado, então fica difícil instituir ou introduzir uma lógica de puro ‘gerencialismo eficiente’ numa relação que não comporta, interna e externamente, esse tipo de orientação. Se se introduz uma lógica de cobrança impessoal, ou de desempenho impessoalizado, tem-se um problema a lidar, pois a cultura do paroquialismo, da afetividade compassional, vai reinterpretar a situação como ofensiva, disparando, em consequência, comportamentos grupais de tipo corporativista, porém, um corporativismo afetivo, do tipo bode expiatório (‘nós que nos amamos’, e ‘ele, que odiamos’). Ou então a situação vai ser reinterpretada de modo mais cínico, com explicações (ou auto-racionalizações, auto-justificações) sobre “a injustiça do capitalismo”, “a vida é mais que o trabalho, o que importa são as relações”, etc. Ou ainda, para piorar o quadro, se sai com o velho comportamento “para inglês ver”, com um fingindo fazer o que o outro pede, ou fingindo “entender e tentar melhorar” o baixo desempenho. Chega a haver um descaso cínico com o desempenho esperado.

Claro, haveria outras explicações. Inclusive, certamente há reparos a fazer na leitura do fenômeno tal como a coloco acima. Mas, temos de pensar melhor sobre esse traço de nossa cultura, essa tendência, sobretudo em certos tipos de setores (como no setor público, por exemplo), de estimular a auto-comiseração, o auto-pietismo, a solidariedade orgânica, a afetividade como escudo e como forma de reinterpretação do desempenho. Claro que não é 8 ou 80, mas o ‘uso dos afetos’ pode ser profundamente reativo (embora, paradoxalmente, é uma grande característica de nossas relações profissionais, com benefícios legítimos), conservador, perverso. Pode, em certo momento, passar a representação de que, no trabalho, “estamos muito mais convivendo do que fazendo coisas objetivas que levam a resultados objetivos”.

Para finalizar, mas sem concluir…:

A) Não acho que a ‘performance’ tenha, apenas, a ver com uma representação do trabalho como castigo, como obrigação, como algo ‘chato’ que se faz para enriquecer alguém. Tem a ver com o poder de agir, com o fazer, com a intervenção sobre a realidade circundante. Diluir isso em uma nuvem de passionalidade, além do que coloquei acima, pode ser corolário de uma estratégia, não necessariamente deliberada, de ‘ocultar o real do trabalho’, isto é, o que realmente se está ali fazendo (ou se deveria/poderia ali fazer);

B) Falar de si, dar justificativas pessoais para um resultado não alcançado, é, em certo sentido, um tipo de narrativa de auto-engano, de auto-justificação. Uma tentativa de conseguir a pena e a compreensão do outro. Uma forma de controle, portanto. Claro que as relações humanas não são ‘mecânicas’, mas acho que o trabalho não é lugar para grandes amizades, grandes aprofundamentos sentimentais/afetivos; o trabalho é onde ocorre o embate entre um ‘eu’, um ‘outro’ e o ‘real’. Daí que tenho pavor das manifestações superficiais de coleguismo, dos rituais de emoções superficiais. O trabalho não é, necessariamente, um lugar para sermos ‘aceitos ou rejeitados’, onde vamos tentar sanar coisas que não têm a ver com o trabalho. Não estou dizendo para segmentarmos nossa vida: no trabalho e fora dele, só estou mostrando o lado nem tão cor-de-rosa de fazer do trabalho uma arena para se recuperar uma “grande família humana perdida”.

Uma queixa extemporânea: onde está a tragédia, onde estão as virtudes, onde estão os ‘grandes homens’? Estamos nos tornando nanicos sentimentalóides, movidos a ‘paixões de ocasião’, numa enfadonha busca por aceitação, ‘espírito de grupo’, coleguismo de ‘nivelação por baixo’, de ‘pactos narcísicos’, e assim por diante…