Desconfiança

A prática cotidiana da observação (ou projeção, poderia sugerir um psicanalista) da vida em coletividades tem me levado a desenvolver uma profunda desconfiança (há, com certeza, exceções, mas não vou me ater a elas neste relato) em relação a:

1) Pessoas que dizem que estão ‘sem tempo’ porque estão ‘trabalhando muito’, que o trabalho lhes ‘consome a vida’, que ‘temos de rever’ esta ‘perversidade’ das organizações no mundo de hoje, sempre a nos exigir mais e mais engajamento, mais e mais trabalho, atividades, etc.

1.1) Ao falar dessa maneira, penso que tais pessoas têm é muito tempo para si, e criam tais racionalizações para colocar um paliativo sobre sua inércia, ou então para justificar, para elas próprias, a impossibilidade de desenvolverem um patamar de atividade que desejam em seu íntimo;

1.2.) Alternativamente, existem pessoas que, de fato, trabalham muito – e, neste caso, quando elas falam sobre isso, talvez seja porque não querem, no fundo, trabalhar tanto, mas criticam, denunciam para um “outro generalizado” essa sua incapacidade de controlar a própria vida, de colocar-se limites.

A) Acredito que, quem trabalha bastante, mas está de bem consigo mesmo em relação a isso, não fica, qual um ‘profeta’, a dizer o que as outras pessoas deveriam fazer. Para mim, há um cheiro de forte conservadorismo nisso, a tentativa de manter uma espécie de status quo pessoal, o autoritário desejo de regular a vida dos outros ou então de fazer sermão, ou ainda um monólogo consigo própria – quando imagina que está acrescentando algo de novo a uma conversa.

2) Pessoas que critiam o ‘produtivismo’ acadêmico, que denunciam a ‘cooptação capitalista’ de pesquisadores em relação à quantidade (em detrimento da qualidade). Claro que, neste caso, estou me referindo à categoria de docentes/pesquisadores, onde tais queixas e ‘críticas’ são comuns.

2.1.) Ao falar desta maneira, vale, penso eu, o mesmo princípio de 1.1.: elas estão dizendo isso para si próprias, estão tentando racionalizar sua própria baixa produção ou, então, estão tentando dizer a elas mesmas que estão fazendo uma coisa sem saber direito porquê – e que, no fundo, não acham certo. Ou, caso mais conspiratório, estão tentando convencer os outros a produzir menos – enquanto elas continuam a surfar nos ‘mega-n’ publicados. Conheço um punhado de gente que publica bastante (inclusive internacionalmente) e, aqui entre nós, fica escrevendo ‘ensaios críticos’ contra o produtivismo;

2.2.) Novamente, num tom conservador e autoritário implícito, tentam, com seu discurso, ventilar uma idéia de ciência e de profissão que é, no fundo, delas, não necessariamente das outras pessoas. Quantitade é, sim, possível com qualidade, pois há (desculpem a redundância) pessoas e pessoas.

B) Eu acho que, quem quer produzir, que produza; se isto que está fazendo é ‘quantitativismo vazio’, problema de quem está fazendo. Não consigo imaginar reais pesquisadores, gente que, efetivamente, contribui para o seu ofício (é óbvio que todo mundo não contribui da mesma maneira…e, sem ser polido/hipócrita, há quem não contribua, pronto!), ficar criticando que ‘estão produzindo muito’. A questão é outra. Como se diz, o furo é bem mais embaixo. Imaginem alguém contemporâneo a Freud dizendo, por Viena afora (como uma Maria chorona): “Nossa, a vida é mais do que ficar escrevendo o dia inteiro” (pois Freud devia escrever muito ao longo de um dia…).

3) Pessoas que dizem que ‘há coisas mais importantes na vida’ do que o trabalho, que este não é nada exceto uma forma de ganhar a vida (e não de ‘perdê-la’), que devemos ‘olhar mais a lua e as estrelas’, que devemos ‘ficar com quem amamos’, que devemos encontrar outras ‘prioridades na vida’, balanceando mais as coisas.

3.1.) Quem diz isso pode, no fundo, não gostar muito de trabalhar (não há nenhum problema nisto, afinal, o embate entre ‘princípio de prazer’ e ‘princípio de realidade’ é quase algo “constitutivo” do ser humano), ou então não entende nada sobre seu papel na vida de algumas pessoas. São grandes metafísicos enrustidos, pois devem ter algum critério substantivo para dizer o que é ou não ‘importante verdadeiramente’ na vida. São cristãos disfarçados, sem o saber. Caso tivessem algo mais substancial a dizer, o diriam, em vez de repetir bordões criados pela mídia e pelas revistas de auto-ajuda;

3.2) Novamente, podem, inconscientemente, estar dizendo a si próprias que não deveriam trabalhar tanto, ou então que não há problema, perante seu próprio superego, de não trabalhar tanto, ou de trabalhar ineficientemente ou (para ficar com um termo menos ‘capitalista’) de uma forma que seu próprio ritmo pessoal estabeleceria se pudesse.

C) Acho que cada um estabelece o que é prioridade e importante em sua vida. Vivemos numa sociedade relativamente pacificada, cujas fronteiras nos permitem, relativamente, pensar em coisas ligadas a nosso cotidiano (como as três que menciono aqui) – se é assim, se não vivemos em uma sociedade totalitária, metafísica, ideal, então cada vida se justifica por si, mesmo que esta vida esteja imersa dentro de um contexto social, econômico, histórico. A babozeira de que a ‘história sabe mais do que nós’ nos coloca na boca palavras vazias, discursos ocos, como os que destaquei acima.

Moral da história: viva e deixe viver. Não vale a pena brigar com o mundo e com as outras pessoas. Vale muito mais a pena tentar pensar consigo mesmo o que é válido e valioso para você. Uma vez descoberto, é sustentar isso, com todas suas consequencias, na vida social, na vida pública. Repito: não vivemos um “estado de exceção”: vivemos com relativa tranquilidade, em nossos pequenos feudos protegidos. Então, por que travar guerras contra pessoas que, a rigor, não estão nem aí para nós?