Investir no mundo

Admito que, muitas vezes, neste blog, acabo sendo solipsista. Como sujeito histórico (portanto, em parte, isso que vou falar não depende de minha única constituição particular, interior), sou um sujeito com um projeto de eu. Em outras palavras, meu eu é uma questão recorrente para mim, pois me penso como indivíduo.Como sujeito histórico, vivo em uma cultura e numa subjetividade ‘individualista’ (a palavra não é das melhores, mas, em seu sentido antropológico, tem lá seu valor). Não haveria de ser diferente eu pensar em mim, nos meus projetos, nas minhas metas e objetivos, no meu prazer e satisfação, e assim por diante.

Isso para dizer que, em grande medida, escrevo aqui para mim mesmo. E, nesse escrever, reflito sobre temas solipsistas, temas que, alusivamente, eu associaria aos temas que, no século dezenove, se veio a conhecer como ‘literatura de coração’, uma literatura burguesa, vitoriana, voltada às classes médias em ascenção ou mesmo a certa aristocracia em mudança. Uma literatura especular, voltada ao serviço de refletir os novos valores e temores de uma classe/geração para ela mesma. Solipsismo de classe, digamos.

Como sujeito histórico, e isso vai soar como uma contradição, não conheço a história. E, por não conhecê-la, certamente a repito como farsa – ao menos, em alguma medida. Não conhecer a história, como um amigo disse esses dias, é o primeiro passo (senão a base) para a auto-promoção, ou, o que é pior (ou dá no mesmo), para um giro de 360 graus em torno de si mesmo. Solipsismo. Não conhecer a história nos joga na grande massa dos facilmente manipulados, em geral, pelo consumo (pois não há nada mais doce e sedutor do que essa forma de manipulação, ao menos na modernidade ocidental).

Tudo isso também para discutir um tema. Um tema que, no meu vago conhecimento de algumas personagens filosóficas, foi um tema Schopenhauer-Nietzsche. O tema do ‘investimento no mundo’. O que nos move a investir no mundo, em vez de, por exemplo, ficar na cama dormindo, ou, pior, ficar no mencionado giro de 360 graus, anti-produtivo, meramente especular (a própria imagem refletida no espelho centenas e centenas de vezes, não levando a nada – pelo menos não no curto prazo e no plano objetivo)? Como ‘sair de si’, deixar o solipsismo?

Schopenhauer, e vou fazer aqui uma mega-simplificação, talvez pudesse dizer que não vale a pena investirmos no mundo porque, independente do que fizermos, vamos sentir dor, vamos fracassar, vamos morrer. Além disso, não haveria, nesse mundo, uma utopia tão forte ao ponto de nos movermos, coletivamente (!) para alcançá-la, com promessas de vida melhor e digna para todos (ideia [romântica ou idealista?] de ‘humanidade’). Não haveria, ao nível ontológico, qualquer diferença entre pegar o ônibus de manhã para ir trabalhar para trazer comida para casa e o movimento cego, cansativo, de um passarinho fazendo muitas vezes um mesmo trajeto diário para trazer comida a seus filhotes (atenção: voltarei a isso, e então você vai entender).

Nietzsche, de cuja filosofia conheço menos que a do seu ‘inspirateur‘, em contrario, disse que deveríamos investir no mundo como forma de dar seguimento à nossa ‘vontade de poder’, ou simplesmente à nossa potência. Gente como Schopenhauer, diria (ou realmente disse) Nietzsche, é ‘negadora da vida’. Recua ante à afirmação da potência de viver. A questão, e aí as pernas não me ajudam, é em que base Nietzsche coloca a potência. Potência de quê, para quê? Para Schopenhauer, a vontade (potência?) era cega. Não visa nada, exceto manter-se – sendo, pois, uma poderosa força de conservação.

Seja como for, eis que chegamos a um ponto importante, relativo, no plano ético-moral, ao porquê da ação. Ao porquê dos projetos que colocamos sobre o mundo. Num ‘horizonte hermenêutico’ iluminista, investimos (como humanidade) em algo porque queremos transformar esse mundo num lugar melhor, mais ‘avançado’ (em todos os sentidos contidos na ideia de ‘progresso’ da razão): para nós, para nossos filhos. Depois de muita decantação histórica, hoje chegamos a uma situação em que responder a isso leva-nos a coisas como: ah, porque preciso sobreviver (por que se trabalha); por que quero ajudar as outras pessoas; porque não há vida após a morte e, então, precisamos aprimorar um projeto imanente, inclusivo, bom para todos (ou que maximize a utilidade para o maior número possível); ou porque existe um outro mundo, e este é nossa ‘responsabilidade’ – precisamos fazer as coisas bem aqui porque Deus nos deixou esse mundo para que dele cuidássemos, co-participando, assim, da construção/manutenção da obra que Ele iniciou; … .

O fato é que, por vezes, mais do que me perguntar, qua adolescente, ‘quem sou eu e para onde vou’ (traduzindo: em que vou investir, o que vou fazer), eu me pergunto sobre o que gira a roda… Olhando as pessoas ao meu redor, todos parecem sugerir que possuem a mínima ideia de para onde estão indo, do porquê estão fazendo o que estão fazendo – por que um vendedor de remédios vende remédio; por que um pequeno comerciante pensa em expandir seus negócios, contraindo dívidas bancárias; por que um aluno senta no banco de uma universidade até o término de seu curso (para se formar e ‘sair para o mundo’); por que sentar e escrever um artigo, tendo antes saído à rua com seu ‘time’ para coletar/produzir/co-produzir dados, etc.

***

O comentário sobre a ‘mãe-pássaro’ não foi à toda. Estava hoje voltando para casa, e, sem querer, vimos um filhote de pardal, recém-nascido, caído no chão. Perdeu seu ninho (ou foi jogado fora dele por um irmão mais forte, reduzindo as ‘bocas’ e, consequentemente, aumentando a parte da ‘ração’ diária). Certamente morreria.

Aí você pensa: é a ‘lei’ da natureza, não podemos fazer nada. Para piorar, o coitado era um ‘pardal’, e pardais saem aos ladrões em grande quantidade. Se ainda por cima fosse um pássaro ‘nobre’. Então, qual o valor daquela vida? Uma vida invisível, como, aliás, é a vida de milhões de pessoas, trabalhadores em pequenos trabalhos, invisíveis, despossuídos de ideologia, organização ou, simplesmente, de vontade de mudar alguma coisa. Um batalhão que, embora façam parte da mesma matéria de um ‘ser genérico’ (que trabalha) como nós, são muitas vezes tratados como se não ‘valessem nada’ (diz o ‘patrão’: ah, qualquer coisa, arruma outro fácil!).

Então, voltando ao caso do pássaro: levar para casa, cuidar dele, ou deixá-lo entregue à própria sorte? Por que ‘investir’ (no puro e exclusivo sentido psíquico) nele, se seu futuro é incerto, e, na melhor das hipóteses, é ‘só mais uma vida’ de pardal, perdida entre milhares e milhares deles?

Foi aí que, por algum motivo, um motivo que perpassa isso que escrevo, resolvi intervir. Pesquisei sobre o assunto. E estamos tentando mantê-lo vivo, até que, enfim (e se) ele possa ser ‘libertado’ e possa voar. Mas, no contato com a situação, uma sensação estranha: já pensou nas quantidades de viagens diárias da ‘responsável’ por esse pássaro? Li que eles se alimentam a cada 20 ou 30 minutos. E foi daqui, desse fato, que, em retrospectiva, me mobilizei a escrever isto (portanto, só vai fazer sentido o começo pelo final). O ‘trabalho’ cego, a ‘dedicação’ cega do pássaro-provedor … em nome de, simplesmente, colocar mais um pardal na natureza. Genuinamente, um trabalho. Genuinamente, um investimento no mundo, em sentido puramente instintivo, que seja, mas é. A pura reprodução do non-sense, ou do trabalho de Sísifo, uma roda da vida mantida pelo peso dela mesma, por sua própria inércia. Como humano, vendo a situação neste momento, é um tanto quanto ‘a-linguística’. A vida, por si só, humana ou não-humana, parece ser uma ‘coisa em si’ que se basta e se justifica por ela mesma.

Talvez seja um começo, para mim mesmo, de sair do solipsismo, de investir no mundo. O exemplo, repito, é ínfimo, mas é um indício. Termino com um trecho de um poema de Bertolt Brecht, que me caiu nas mãos hoje tão inesperada e caoticamente quanto o pequeno filhote-pássaro.

Se uma criança surge diante de um carro, puxam-na para uma calçada. Não o homem bom, a quem erguem monumentos, faz isso. Qualquer um retira a criança da frente do carro. Mas aqui muitos estão sob o carro, e muitos passam e nada fazem. Seria porque são tantos os que sofrem? Não se deve mais ajudá-los, por serem tantos? Ajudam-nos menos. Também os bons passam, e continuam sendo tão bons como eram antes de passarem.

[A esperança do mundo, B. Brech]

As coisas, as pessoas

As coisas não nos pertencem. À primeira vista, isso poderia soar juridicamente questionável: eu comprei minha casa, ela é minha; comprei uma bicicleta, e ela é minha. O Estado, a polícia (sua maior força física), todo o ordenamento legal atrela uma propriedade a meu nome, à minha pessoa, desde que eu prove que a adquiri licitamente: por meio de meu dinheiro (que, por sua vez, ou é proveniente de alguma renda, propriedade ou, caso mais comum, do meu trabalho). Trabalho, aliás, já foi associado a propriedade (Locke) – isto é, a posse de uma propriedade é estabelecida com base no trabalho sobre ela (no passado, a terra).

Mas há uma ‘corrente’, vamos dizer assim, que afirma que as coisas, exceto, quando muito, nosso próprio corpo, não nos pertencem “at all”. Em geral, vemos isso em algumas doutrinas religiosas. Para o cristianismo, por exemplo, os bens materais são ‘deste mundo’; não podem ser levados ao ‘outro mundo’. De fato, quando morremos, não ‘levamos’ (interessante esse verbo nesse contexto, não?) absolutamente nada. Por um fato simples: pelo fato de que cessamos de existir no exato momento em que morremos, sendo nossas ‘coisas’ (propriedades) transmitidas a quem nos sucedem pelo laço do nome/sobrenome (e pelo ordenamento jurídico).

Em algumas passagens da obra de Schopenhauer este diz, com outro linguajar evidentemente, que a única coisa que ‘nos’ pertence é nosso próprio corpo. Nisso, há certo acordo jurídico: nosso corpo é nosso ‘bem’ indiscutivelmente inalienável. Claro que, em muitos sentidos, nosso corpo é também um corpo social. Por exemplo, quando alguém é condenado pela justiça, o Estado é legalmente (consentimento) autorizado a tomar nosso corpo e prendê-lo por anos. Em alguns países, o Estado vai mais além, sendo autorizado a matar uma pessoa. Isso mostra, no extremo, que nosso próprio corpo, nossa última e mais mediata forma de relação com o mundo, também não nos pertence.

Esse preâmbulo para dizer de uma experiência pessoal, se é que posso chamar assim. Aconteceu ontem. Há semanas decidi vender meu carro. Eu o comprei em janeiro de 2006. Esteve comigo, portanto, por 9 anos. Em geral, fui indisplicente em relação a ele: fazia manutenções mínimas (nesses últimos anos, pelo menos0. Resultado: acabou se depreciando, tanto econômica como materialmente (dá no mesmo, certo?). Pois achei um comprador. Por certa insegurança congênita, coloquei um preço abaixo do valor médio do mercado (na concessionária, me dariam algo ainda mais irrisório, para não dizer imoral). Achei o comprador. Este se interessou. Aparentemente, se empolgou, se ‘apaixonou’ pelo carro (a mulher dele, na verdade). E começa a negociação. E, à medida que as coisas iam se decidindo, a hora de se separar do carro chegava. Ao chegar, eu simplesmente entrei num estado de espírito que beirava o luto. Como explicar isso? Seria eu um materialista, um ser desprezível pelo fato de ter se apegado afetivamente a um objeto ‘que não me pertence’ (num sentido metafísico ou espiritual exdrúxulo qualquer?).

Mesmo após ter recebido o valor da transação (não sem certo stress, assunto para outro momento: a desgraça que é o tal do ‘jeitinho brasileiro’), eu ainda me sentia ‘dono’ do carro. Ao ver as pessoas ‘levando-o embora de mim’, não consegui (ainda não estou conseguindo!) perceber que ele não me pertencia mais. Ele já não era mais ‘parte de mim’. Contra qualquer bom senso, ou racionalidade, senti-me simbolicamente violentado. Durante as negociações, um profundo mal-estar, um profundo descontentamento… a vontade de fugir. Mas me faltou coragem (ou me sobrou racionalidade, neste ponto) de desistir da venda. Eu sabia que a permanência do carro era já inviável para nós em nosso cotidiano.

Como explicar tal apego a uma ‘coisa’, inclusive uma coisa em relação à qual eu próprio não dispendia tanta atenção? Por que a ‘coisa’ só se torna signo de uma ‘perda’ no momento em que ela ‘vai embora’ (o uso de ‘ela’ já é sintomático, não?)?

Fico pensando em como transformar essa experiência pessoal em algo compartilhável. Afinal, estou escrevendo isso em meu blog, onde todos podem ler. Um blog, e o meu em particular (segundo o que acredito), diferentemente de um Facebook, por exemplo, só tem valor se transcender a mera experiência individual, a picuínha de uma vida banal (e falo isso sem qualquer desprezo ou ironia). Então, como posso vir aqui, escrever sobre essa experiência surreal, e, ainda assim, comunicar algo a partir dela e que não diga mais apenas respeito a mim?

Aí vai minha tentativa…

1) As coisas, ao contrário de certo pensamento marxiano vulgar, não são um ‘fetiche’, necessariamente. As coisas, objetos materiais, são suporte, são um veículo, de processos psíquicos: tanto por projeção quanto, sobretudo, como ‘objetos transicionais’ (Winnicott). Eles estão à nossa disposição para nos ajudar a materializar, digamos assim, algo que de outra forma seriam apenas sombras de nosso eu, projetadas em uma tela tão irreal quanto imaterial;

2) Meu antigo carro concentrou, em si, uma grande quantidade do que hoje eu só tenho como memória: lugares em que passei; conversas que tive em seu interior, enquanto dirigia; uma vida que foi se construindo (eu o comprei exatamente numa transição importante de vida, a qual lançou as bases para meu estágio atual de vida…e no qual estou até agora…hora de mudar?); e, sobretudo, nos bancos de trás dele, enquanto minha esposa dirigia, minha cachorrinha (a primeira ‘minha’) morreu, nos meus braços.

Faz exato um ano que minha cachorrinha morreu. Ela morreu dia 25 de janeiro de 2014, por volta das 13h00, no meu antigo carro, em seu banco de trás, quando íamos correndo, desesperados, para o veterinário. E ontem, dia 24, meu carro, digo, meu antigo carro, deixa a garagem da minha casa, com dois estranhos dentro, que o compraram legalmente (por um valor abaixo do mercado, conforme eu já disse e cujo erro admito), indo embora para sempre, indo servir de objeto transicional a outras pessoas… Ele certamente será últil a outras pessoas, e será, talvez no futuro, se estas pessoas que o compraram não forem insensíveis em relação às ‘coisas’ que os cercam, parte da lembrança delas.

3) As coisas são parte de nossa memória, de nossa vida, de nossa história. Não se trata, avanço logo a me ‘defender’, de um ‘fetiche da mercadoria’, quando esta inverte o jogo e domina o homem, que deveria, sempre, ser sujeito. Não se trata disso, em definitivo (o marxismo, e todo marxista que já conheci, não parecem ligar muito para afetos, são mais racionais e ‘iluministas’ do que possam pensar). No meu caso, meu carro não era só uma questão de ‘status’ (uso das coisas ‘objetivas’ para afirmar uma posição social subjetiva), mas, agora que não o tenho mais, de memórias.

Por que, afinal, servem os museus? Ora, não teríamos nós, ainda que de modo imaginário, nossos próprios museus, com nossos objetos significativos?

Pois, pela primeira vez em uma simples transação comercial (negociação de coisas entre ‘pessoas físicas’ – CPFs), tive a sensação de que tiraram uma parte de mim. Quero dizer, eu mesmo, racionalmente, tirei essa parte de mim. Pois, no jogo das negociações, nas compras-e-vendas, o que impera são pessoas sem alma, seres de quem esperamos apenas o dinheiro pelo que julgamos valer nossos objetos. Com a saída de meu antigo carro da minha zona de vida, algo paradoxalmente parece ter mudado; aquele motivo que estava subjacente à sua compra agora perdeu-se ou precisa ser atualizado. Indo mais longe: a venda de meu carro me mostrou, por incrível que pareça, a passagem indelével do tempo, e todas as perdas que seu transcurso traz.

Admiro esses homens que vivem suas vidas de um modo tão prático e industrioso que não precisam, nem de longe, passar por isso que narro aqui – e que, se lessem isso que escrevo, sequer entenderiam. De duas, uma: ou são tão ‘coisas’ como as coisas que transacionam, ou são seres práticos/pragmáticos que, como milhares de nossos ancentrais, nos trouxeram nessa situação de merda que vivemos hoje. De todo modo, me sinto um estranho completo, mas não tímido o suficiente para deixar de registrar isso aqui.

***

casa e Ila 154Gabi(zinha)
09 de novembro de 2000 (Piracicaba/SP)
25 de janeiro de 2014 (Natal/RN)

 

Interlocução com inimigo imaginário

Você, você me irrita quando sugere, sem perceber, que o que eu estudo é algo que não leva a nada. Sim, você me confronta com o direito de viver quando, simplesmente, dirige suas perguntas intelectuais. Está certo que, ao fazê-lo, seu rosto adquire um ar de intelectual. Você já se viu no espelho, você já teve a oportunidade de perceber que, ao achar que está sendo intelectual, você se transforma, se parece com alguém que perdeu um parente próximo, uma boca a anunciar uma notícia fúnebre? Não vejo alegria em você quando você tenta ser um intelectual. Mas há mais. Muito mais. Você, você só se interessa por aquilo que, nas escrituras da vida social, se enuncia como insígnas do bem-sucedido. Você muda quando há algum prêmio no ar, mesmo que tal prêmio jamais tenha qualquer vestígio de grana. Não importa. O que você busca é a certeza, a garantia de que, se a maoria valoriza algo, esse algo é importante. Tem mais. Você diz que gosta de crítica, mas você não gosta. Você manda “bater no peito”, pois você aguenta. Mas não, não é bem assim. Você é profundamente inseguro. Você não sabe o que está fazendo na cadeira onde está sentado. Você, aproveitando de uma atividade que exige autoria, você acha que tem algo de importante a dizer. Você é, no fundo, um grande narcisista. Um narcisista não é alguém que se olha e se perde no espelho. É alguém cujo ego é profundamente vulnerável. Você não consegue, sequer por um único segundo, esquecer-se. Você não consegue simplesmente fazer as coisas, deixar-se no fluxo da atividade: você é uma chaga aberta, uma questão irrespondível que algum adulto, no passado, lançou – ou seja, você é, no fundo, a carne que anima um fantasma inspirado por outro (seu pai, sua mãe, qualquer um que, um dia, tenha sido importante para você). E o que você quer? Você quer voltar para a casa de seu pai e sua mãe. E tem mais. Você não sabe se ouvir. Você é alguém que se repete demais. Você já percebeu o quanto você se repete, o quando diz a mesma coisa, quando muito, com uma singela variação do mesmo? Não, decerto você não percebeu isso. Nunca perceberá. O que lhe move? O que lhe motiva? O prêmio. Qual prêmio? Nem você sabe, mas a verdade é que você é uma pessoa prêmio-orientada. Você gosta de qualquer coisa pronunciada em francês ou inglês. Se alguém tiver nascido acima dos trópicos, pronto!, isso já será suficiente para chamar sua atenção. Você é um grávido sem filho. Barriga vazia. Esperando, esperando… esperando a caravela aparecer no horizonte e lhe trazer o estrangeiro. Só que ele não pode falar português, é claro. Não pode. E digo mais. Você, quando eu falo de alguém, quando eu falo do cabelo de alguém, você acha que não é sobre você, que você, não, você tem o cabelo perfeito. Você me faz querer fugir para a lua. Você já pensou em fugir para a lua? Não? Pois pense. Você nunca diz o que realmente quer. Talvez você seja um supersticioso; ou talvez você seja alguém que convive com pessoas como eu apenas para cumprir o que lhe é exigido no trabalho; mas, no fundo, você convive, na sua mente, no seu horizonte, com super-homens – não, veja, isso é importante!, não os super-homens, os dândi, de tipo nietzschiano, mas com fantoches divinizados, pessoas superiores pertencentes a nichos dos quais, claramente, você não faz parte, mas que gostaria muito. Você só se move como uma mariposa em direção à luz do poder. De novo, não o poder do autor de “A vontade de poder”, mas o poder capaz de esconder sua inabilidade para ir além de frases “criativamente” montadas. Você é um especialista em falar do que não vive. Pois é. Você. Como há coisas sobre você…Eu gostaria de gritar, de berrar, de falar bem alto tudo sobre você. Para piorar, se houver um grupo, um amontoado de “você”, eu consigo ficar louco. Mas, para meu infortúnio, meu infortúnio, você é um coletivo…Sinceramente? Eu acho melhor analisar essa orda de “vocês” pela perspectiva behaviorista; sim, comportamentalismo. O resto, o tal do “simbólico”, sabe o que é? É labirinto. Fantasia. Gente precisando falar, preencher o espaço oco com palavras igualmente ocas.

Alguém sabe por quê?

polaroid 18

[The polaroids of Andrei Tarkovsky]

Porque são melancólicos todos os bichos atrás das grades, melancólicos, melancólicos os macacos mendicantes da Indonésia, e ainda os que sobraram no zoológico bombardeado em Al-Bisan, como também é melancólico um poliedro de vidro sobre a asa de um Messerschmidt feito de chumbo, e melancólico o Lúcifer de Franz von Stuck, com os mesmos olhos leitosos de um androide de Blade Runner, como também melancólicas, melancólicas, as garotinhas de Lewis Carroll, as crianças armadas nos campos do norte do Iraque, a menina Rosalia nas catacumbas de Palermo, e ainda as cento e oitenta e seis velas pelo aniversário de dez anos dos cento e oitenta e seis anjos da cidade de Beslan, além do mais, ainda porque são igualmente melancólicas as santas nas caves iluminadas dos sobrados, e as cruzes de beira de estrada, e as polaroides de Tarkovski, aquela obsessão de Tarkovski pela Rússia, aquela obsessão pela névoa que uns chamam de estilo, e no fundo, no fundo, é uma bruta saudade de casa, e porque mais, porque também são melancólicas, melancólicas, as bonecas nas redomas de Farnese, e todas as mulheres do Dr. Charcot, e todas as mulheres de Hopper, e ainda porque, entre outras coisas, também é melancólico o pequeno príncipe no deserto, lá onde uma vez Santo Antão enfrentou e venceu seus demônios, como, além disso, é melancólico, entre outras coisas, o velho piano polido, com um candelabro de cada lado, na casa de campo do poeta assassinado, hoje museu em Valderrubio.

Título original: “Nós, os melancólicos”, de Mariana Ianelli. Peguei daqui.

Lapsos obtusos (2)

(…continuidade do post anterior)

E) O domínio do código linguístico dá-lhe muito poder. Veja esta articulação de letras que estou fazendo. Considere o ‘contexto’ em que ela ocorre (ambiente virtual). Suponhamos que eu tivesse algum tipo de clarividência ou talento para articular esses caracteres de um modo superiormente criativo, diferente. Em algum ponto, por exemplo, alguma ‘empresa de conteúdo’ poderia querer me contratar. Por quê? Porque eu saberia articular o código.

e.1. Claro, eles poderiam me ‘contratar’ porque tenho amizade com algum dono de ‘empresa de conteúdo’, ou porque, de algum modo, o conteúdo do que escrevo fosse atrair clientes e, claro, dinheiro. Não há clientes, nunca; há dinheiro.

e.2. Mas será que vivemos, genuinamente, num contexto em que ‘empresas de conteúdo’ contratam pessoas e serviços por conta…do ‘conteúdo’? Difícil dizer. Algumas, talvez sim;

e.3. Mas o ponto que quero dizer é que dominar a linguagem (ou UMA linguagem) é o começo da aquisição de poder. Se você olhar o que você escreve como fonte de poder, você vai entender que o que você escreve (ainda mais se você for professor-pesquisador-“autor”) pode estar do lado da ação, e não da reação – ou seja, você pode, com o que escreve, realmente inscrever algo na realidade. Mas, para mim, o mais importante é:

*) O que o outro te diz (como texto ou não) é algo arbitrário; a diferença de uma pessoa ‘proficiente’ e de outra que não é consiste em que a que é consegue sintonizar um determinado ‘espírito de época’ (ou de grupo);

**) Se o que o outro te diz é algo arbitrário, então você tem certa autonomia, como ser-no-mundo (sujeito), de contrapor um código ao outro. Se um parecerista, por exemplo (no mundo acadêmico) lhe diz algo, a única diferença entre ele e você é que ele aprova ou não seu artigo; de seu lado, você pode fazer a letra dele valer tão ‘nada’ quanto a sua! Ou: o que o outro te diz tem quase o ‘mesmo valor’ do que aquilo que você diz. Então, por que há diferenças entre ‘textos/pessoas’? Pense…

F) Você pode ser ‘influente’ (sentir-se ‘autor’) em alguns contextos específicos (o imbecil do professor, ‘doutor e concursado’ que acha, por conta disso, que é ‘alguém’, pode simplesmente ‘se fazer de difícil’ em ambientes restritos como uma sala de aula). Há uma espécie de micro-sociologia do poder. Cada ambiente, por mais sem ar que ele seja, é uma ‘esfera’, onde ali vive e ‘prospera’ uma pequena colônia de seres. O problema é que, mesmo com o blá-blá-blá do mundo interconectado, cada um vive em esferas, as quais variam de diâmetro uma das outras – mas são todas, no fundo, pequenas.

f.1. Exemplo: um homem agressivo, troglodita, pode fazer da casa (esposa + filhos + animais) sua ‘esfera’ e sentir que ali, nesse espaço restrito, ele é ‘alguém’: pode mandar e desmandar, pode humilhar e pode ‘promover’. No trabalho, ele pode ser um verdadeiro “inútil”, desprezado por todos os colegas;

f.2. Espaços privados como esses tendem a assumir grande relevância quando a vida social é esvaziada. Quando o troglodita acima vai ao espaço social mais amplo, ele recua como um cachorro com o rabo-entre-as-pernas;

f.3. Outro exemplo: o professor que usa de seu ‘poderzinho’ para fazer alunos vulneráveis fazerem o que ele acha ‘científico’: aplicar questionários, transcrever entrevistas, ler o artigo dele (professor), e sem contra-partidas pedagógicas, e assim por diante;

f.4. Um exemplo final, sem conclusão: os ditos ‘anões’ ou ‘nanicos’ nas campanhas eleitorais: quem são eles? Moro num Estado pequeno; vi mais de 400 candidatos a deputado estadual/federal. Ora, por acaso eles acham que a ‘casinha’ deles, onde eles mandam com voz grossa e ar empolado, é a minha?

>>> Gregos, vocês tinham razão: a economia deveria ser algo do privado, da casa. Um desastre quando os pequenos ‘deuses de 3 súditos’ inventam achar que são alguma coisa na vida ‘além-esfera’ da cazinha deles…

Lapsos obtusos (1)

A) Por vezes, imagino o prazer indescritível de um escritor que, enfim, acha a combinação perfeita e implacável entre forma e conteúdo. Já sentiu algo próximo do vislumbre desse momento, quando o sentido (pessoal) transcende, mas incorporando, o significado (coletivo, instituído)?

B) Em eleições gerais – por exemplo, como as para presidente, você consegue entender como a democracia, pelo menos à brasileira, é um impropério. FHC, nosso antigo presidente, diz que quem vota no PT é “desinformado”. Fazia tempo que não me lembrava do velho FHC, mestre em metafísica sociológica, a sinalizar a todos nós o quanto ele sabe, o quanto ele está próximo à “verdade” e nós não. Ou ele realmente estaria?

C) O que significa, essencialmente, o mito de Narciso, aquele lindo rapaz que, deslumbrado com sua própria miragem refletida na água, nela morre? Por que ficar às voltas com o mesmo, ou a mesmidade, é algo mortífero? Por que dar as costas para a alteridade (como se isso fosse possível) é o primeiro passo para a loucura, para o monólogo interior, o qual leva a uma ausência plena de tensão, motor de qualquer mudança?

c.1. Não seria porque o mesmo faz sentido? Mas, se sim, então o sentido é uma pequena ilhota, um ponto nulo na imensidão de um mar grávido de possibilidades (desculpem a redundância!), mas cansativo? Pois ‘infinitas possibilidades’ é algo belo no discurso, mas pesado na prática. A fisiologia é a melhor medida para avaliar o quanto somos: 1) escravos (no sentido de Hegel); 2) livres. Podemos preferir o conforto da ilhota-sentido ao inigmático (e mítico) mundo aberto.

c.2. Não seria porque, como indivíduos, embora influenciados pelo ‘social’ (blá-blá-blá), conseguimos capturar, controlar, segurar e ‘sistematizar’ algo da existência quando giramos em torno de nós mesmos? Pergunto ao espírito de Nietzsche: é pecado negar a vida? É pecado simplesmente reduzir a velocidade, o ritmo, a amplitude dos investimentos em coisas e seres que, no fundo, você despreza completamente?

c.3. Ficar ‘em torno de si mesmo’ é anti-natural, alguém poderia dizer. O mesmo não gera a diferença. Um homem não gera um filho sem uma mulher. O filho é a síntese dialética, o produto dos opostos. O que poderia gerar um self sem o outro, a alteridade? Mas qual o problema de Narciso morrer? Não sei, talvez haja algo que estou deixando passar…

c.4. Paradoxalmente, ‘sair de sei’ dá trabalho; na verdade, isso é, precisamente, o que define ‘trabalho’

D) Eu poderia (acho!) ficar olhando para um cachorro durante a eternidade. Mas me custa ouvir 10 minutos de conversa enfadonha de um outro ser humano. Freud, velho Freud, seria por que o ‘outro’ (cachorro) não é uma alteridade no sentido estrito e, portanto, não exige e não é exigido? Ou seria esta maneira de ver algo desatualizada com o que está envolvido na relação afetiva entre humanos e animais?

d.1. Talvez a fórmula de Glenn Gould, segundo a qual, para cada X  horas com um outro ser humano, é preciso ficar X vezes N horas sozinho (onde N varia de pessoa a pessoa, mas, segundo ele, ou para ele, era algo bem alto), se aplique a animais: eu, para cada X horas com seres humanos, preciso ficar, no mínimo, X vezes 1 com os animais, ou 10 sozinho.

Força

Qual o conceito de força? Por exempolo, baseando-nos na três leis de Newton, a força é uma grandeza capaz de vencer a inércia de um corpo, modificando-lhe a velocidade. E o faz tanto em termos de magnitude como de direção.

Vencer a inércia.

A força está na origem do movimento. Bom, poderíamos nos perguntar pela ‘metafísica da força’: para onde ela aponta? Pois, além de magnitude, a força possui direção. É um vetor.

A metáfora da força não poderia ser mais potente. Nosso corpo, para começo de conversa, exerce força – desde o movimentar-se até, menos obviamente, a força que exercemos sobre outras pessoas, tanto na forma de afetos (afetar) como de ideias (influência sobre a vontade, por exemplo).

A própria saúde, entendida em sentido amplo, é devedora de nossa capacidade de estar na origem de movimentos que, de outro modo, não teriam lugar. Ação é saúde. Fazer. Mudar. Afetar.

Outra força ‘subjetiva’ fundamental é o desejo. Nos colocamos em movimento quando desejamos algo. O desejo, como falta, leva à busca por um objeto que, na hipótese de conseguirmos, nos traria satisfação, felicidade. Prazer.

O desejo é o que nos leva a vencer a inércia.

Sem desejo, seríamos ‘coisa afetada’, e não ‘coisa afetante’. Sem desejo, beiramos ou cotejamos com a depressão – entendida como a ausência de movimento, como um retorno do self (do eu) sobre si mesmo, na forma de ressentimento, lamúria, não-ação.

Na psicologia do trabalho, por vezes desejo e força são tratados como sinônimos de motivação. Esta relaciona-se aos motivos, à direção e à persistência de uma ação. Uma pessoa des-motivada não se põe em ação.

O desejo, como força psíquica, é, a um só tempo, profundamente pessoal, singular, e também o desejo do outro. Ir no sentido do desejo do outro é tentar decifrar uma força que coloca o sujeito em movimento. A atração, por exemplo, tem esse efeito.

Mas ir no sentido do próprio desejo equivale a descobrir os motores do que impulsiona nossa ação. Nossas supostas ‘necessidades’ (embora desejo não deva ser confundido com necessidade).

Para mim, a grande questão é: como situar seu desejo num labirinto em que alguém já imaginou as saídas e alternativas. Desejar é, em certo sentido, transcender, transgredir o tabuleiro pré-determinado em que fomos lançados. O desejo é, na linha do que falei em meu post anterior, enlace entre o eu e o outro, entre o conhecido, o possível, e o improvável, o imponderável. Desejo e risco.

Vamos para os EUA?

Hoje quero comentar uma banalidade que me veio ao espírito por conta de um episódio, de uma ocasião de que fui testemunha de ouvidos. Realmente, prepare-se: é um post no ótimo estilo “non-sense”.

Claro que não tenho números exatos. Porém, quantos brasileiros gostariam de mudar-se para os EUA? Arrisco dizer que esse número não deve ser baixo.

Os EUA são, ainda, o sonho da pequena classe burguesa brasileira – e, com isso, não me refiro apenas à óbvia classe média, mas mesmo a certa sub-classe (em termos econômicos). Não o lumpen, mas um grande grupo social semi-qualificado.

Mas é da classe média que temos o sonho mais vívido de mudar-se para os EUA. De viver lá… lógico que seria bom!, mas, em isso não sendo possível, ao menos de lá estudar por um tempo, de conhecer o país a turismo, de consumir as coisas vendidas em seu imenso mercado.

Os EUA, como ideia (não como império bélico-econômico), são ainda uma miragem. Um sonho: o lugar das possibilidades. Para as ciências “hard”, um paraíso; para a psicologia (sobretudo a “psicologia científica”), não deixa a desejar, obviamente…

Há um aspecto subjacente a esse desejo de ir ou de morar nos EUA. O fato de ser o país em que as coisas “funcionam, dão certo”. Ora, mesmo após tamanha e recente crise, o país está dando mostras de já estar com um nível respeitável de crescimento econômico!

E quem não gosta de coisas que funcionam? De “journals” que publicam rápida e eficientemente? De um sistema institucional e jurídico (e, claro, econômico) funcional, confiável?

País de gente grande. Ir e voltar dos EUA, sobretudo se “a negócios ou estudos”, é sinal de que o neófito volta com “know how“, pronto para encarar a realidade “tupiniquim”.

[Aliás, a própria designação “tupiniquim” é ideológica e moralmente carregada, ok?]

Imagine. Se você faz um pós-doutorado nos EUA, você é, na volta, visto como alguém que foi para um país “sério”, profundo, que o marcou com as insígnias da “competitividade” (“Essa pessoa só pode ser boa, indo para os EUA…”).

Se vai para um país europeu, volta “filósofo”… E as estereotipias não param por aí.

O tempo todo, consumimos a ciência produzida nos EUA (dizemos que “adaptamos” o que se produz por lá para o contexto local, mas isso é ficção…); consumimos suas séries (eu mesmo, adoro!); consumimos seu “way of life”, seu modo de encarar a vida, de povoar e colonizar a Terra.

Alguns aí podem me acusar de retrógrado. Podem me dizer que parei, me fixei, nos anos 1970 ou antes, quando o “americanismo” era uma bandeira da esquerda “mais genuína” dos países “colonizados e subdesenvolvidos”, Brasil incluso.

Mas, fato é o seguinte: estou cansado, estou farto, estou enjoado de nossa tendência cultural a nos dimininuir como país e cultura, embora possamos ser tudo isso: atrasados, “gente não séria”, país de oportunistas, de gente sacana, de cretinos.

Virar um Policarpo Quaresma? Não, não falo disso. Virar um turista pragmático, que para lá viaja (neste ponto, espero que tenha ficado claro que uso os EUA como metáfora!) e usufrui do que seu cartão de crédito pode pagar ou financiar? Não. Não falo disso.

Falo em sermos menos idiotas. A impressão que tenho é de que miramos esses países como instâncias superiores de vida. Em parte, isso é fantasia. E, com isso, justificamos a lambança que achamos por bem administrar em nossa vida cotidiana, em nosso país, nossa cidade.

Saber e ignorância = a relação proporcionalmente positiva

Quero propor uma analogia. Eu a ouvi uma vez, e me veio à memória hoje. Está vendo as esferas acima? Pois imagine que cada esfera representa o quanto você conhece. Seu grau de conhecimento.

E imagine que todo o espaço ao redor da esfera represente o desconhecido.

Pronto. Agora considere o seguinte. Quanto maior o tamanho da esfera, maior a área em que ela “toca” o desconhecido. Portanto, quanto mais você sabe, mais você tem a clareza do desconhecido.

Isso explica porque algumas pessoas, que pouco conhecem, se acham as mais “entendidas”. Não é por maldade ou porque são empoladas: é porque elas, simplesmente, não conhecem, não sabem. Ou, se conhecem, conhecem pouco. Conhecem quase…nada!

A arrogância, a visão dogmática, tacanha, o caráter filisteu, reacionário, mesquinho, ignóbil, nada mais é, pois, do que pura e simples manifestação da ignorância, de uma “esfera” de saber minúscula.

Não vamos, portanto, inverter a ordem das coisas, ok?

O que há a ser (ainda) dito?

Às vezes, quando estou um pouco chateado, considero que temos pouco a acrescentar ao falatório geral. Se pensar, ‘tudo’ o que somos, enquanto seres linguísticos, já foi antecipado em ‘discursos’ (falas organizadas) que nos precedem. Trata-se do campo do ‘dito’.

Em relação ao dito, podemos ter pelo menos dois caminhos igualmente viáveis. Num deles, o de reproduzir. É o papel do ventríloco. Talvez nenhuma reprodução seja fidedigna, no sentido em que um tocador de CD reproduz este último (‘n’ vezes igualmente). Mas há ótimos reprodutores entre os humanos…copiadores (não tão criativos quanto um Vermeer, mas há…).

O outro caminho é trabalhar sobre o dito, e então produzir alguma ‘fala’ – num sentido mais propositivo, ativo, em vez de ser no particípio passado (‘dito’). Criatividade, singularidade, ou individualidade, inovação: sinônimos para esse fenômeno de criar o novo a partir do velho.

Na linguagem dos negócios, inovar é propor um novo produto ou serviço (ou procedimento, etc.) que se diferencie, dialeticamente, em relação ao que já existe. Pode ser uma ruptura, mas, decerto, rupturas nunca são radicais. Um poderoso computador de hoje não ‘rompeu’ radicalmente com princípios básicos de lógica (pelo que conheço!).

Talvez a mimêses aristotélica, de que já tratei uma vez por aqui, tenha um valor importante de reprodução: nós aprendemos algo quando imitamos alguém (veja a importância dos modelos em psicologia).

Mas chega um momento em que queremos sair da pura mimêses: é aí que podemos desejar sair do ‘dito’ para o ‘dizer’. Mas dizer o que? Algo que sentimos que precisa ser dito de outro jeito (redescrição pragmática)? Algo que nosso desejo nos impele a dizer (o prazer de dizer, o prazer de conexões de novos pensamentos, etc.)? As ‘lacunas’ do ‘dito’ (mote em ciência: justificar um trabalho com base nas lacunas existentes na literatura…)?

Não penso no nível profissional – o dizer profissional, digamos assim. Penso no sentido existencial. Dizer enquanto uma expressão de si.

Numa cultura individualizante como a moderna (a nossa!), o dizer está intrinsecamente associado ao self, ao eu. Fomos levados à ilusão de que, ao dizer, dizemos algo de idiossincrásico, revelamos nosso eu. Mas não conseguimos enxergar que nosso ‘eu’ é, antes de mais nada, uma produção coletiva. Um ‘eu social’, na melhor das hipóteses, iludido pelo invólucro do corpo (de fato, cada um tem um corpo diferente do outro!).

Sociólogos não cansam em relativizar nossa iniciativa e autonomia/autenticidade. Nosso discurso, o que dizemos, é produto de nossa classe social, de nosso nível social, do dialeto do grupo a que pertencemos, dos acessos a bens culturais que temos, e assim por diante. Uma visão de cima para baixo.

A psicologia, ao contrário, nos insinua que temos de encontrar nossa “voz interior”, temos de dar expressão a uma singularidade que é nossa, que nasce de nosso sofrimento de estar no mundo (e o sofrimento é profundamente singular), dos arranjos que fazemos com o princípio da realidade (x o princípio do prazer).

E então?

Uns se contentam em reproduzir, sem saber que o fazem. Outros, em fingir que são ‘autênticos’, ‘diferentes’. No meio disso tudo, algo inegável: temos de nos fazer com o discurso, com o repertório, a herança linguística que recebemos da história (História?).

Parênteses. Freud uma vez escreveu, a propósito não me lembro de quê exatamente (não importa!), que o indivíduo é uma espécie de ‘nada’, uma instância provisória aprisionada na jaula da espécie. Quando goza, é um prazer ínfimo concedido pela Natureza para que se sinta estimulado a procriar. Em termos da espécie, o indivíduo (=no sentido biológico), é paradoxalmente necessário e irrisório, dispensável.

Em relação à linguagem, talvez algo similar se processe. A Linguagem (com L), existe independentemente de nós como indivíduos (embora não como espécie, onde ela se circunscreve e faz … sentido). Porém, paradoxalmente, ela, a Linguagem, precisa de nós, como indivíduos, para a reproduzirmos e produzirmos. E, para nós, é como se não houvesse fuga: não há outro jeito senão falar ser falado (estar no contexto do ‘dito’). Afinal, o que seria de um indivíduo que optasse por “não falar”?

Não falar equivaleria a ser ‘dominado’ pelo outro (alguém fala, você só escuta, não reage). Se não falo, devo, ao menos, “ler”. Em alguma medida, ler é uma atividade passiva. Ler o mundo da passividade do lar, digamos nesta metáfora, é negar o mundo, negar a fala. Optar pelo silêncio.

Ou o silêncio seria uma forma de resistência?

Para encerrar. Nossa relação existencial com a linguagem é paradoxal e ambigua: ela nos ultrapassa, nos ‘anonimiza’ (nos torna anônimos, indiferentes, insignificantes), mas, ao mesmo tempo, é por meio dela, no jogo de suas forças, que encontramos algo que poderia se aproximar de uma ‘singularidade’ (na coletividade). Calar-se, como defesa, implica talvez num medo do sujeito em relação à perda de si na linguagem (‘tudo já foi dito’ pelo Outro). A perda nas conexões infinitas da linguagem.

O sujeito, diante da existência (simbólica – pois o ‘real’ do corpo é uma ‘coisa em si’), só existe se ele aceitar tecer, sustentar, iludir-se, etc., em conexões finitas, em possibilidades limitadas, e, como tais, insignificantes, mas, paradoxalmente, necessárias: para ele, indivíduo, como também para a ‘espécie’ (humana).