Vidas possíveis

Nos últimos livros de Philip Roth duas temáticas têm sido salientes: a proximidade da morte do personagem principal e, ligado a isto, certo desejo incontrolável (nos homens), um fascínio, pela vida de outras pessoas mais jovens. Velhice e juventude. O desejo que, mesmo com o passar do tempo, não arrefece, pelo contrário: se intensifica num misto de consciência da decadência, memória e a infinitude.

É impressionante como a juventude vive como se o amanhã fosse infinito. Isto não é uma novidade. Não até o ponto em que você vive isso, observa o transcorrer do tempo, observa a perda a seu redor, no seu ínfimo mundo privado. Ao mesmo tempo em que sente (ou percebe) que o jovem sequer cogita sua própria finitude. Lei da selva, lei da sobrevivência; talvez.

Voltando a Philip Roth. Num caso, o personagem se perde, se apaixona pela Lolita; contempla seu corpo em seu pleno vigor. Contraste do corpo jovem com o corpo velho. Há mais do que o lugar-comum do ‘ímpeto’ versus a ‘experiência’: há alguma coisa que se perde no confronto do velho com o novo. Em outro caso, o filho observa uma tomografia da cabeça do pai. Imagens gravadas da cabeça do pai – não de qualquer pessoa. O pai vai escorregando para a morte, e o filho faz seu luto.

Acho que é isso, foi por isso que dei por mim escrevendo estas coisas, lembrando dos enigmáticos, profundos, personagem de Philip Roth: cada momento de nosso dia está pleno de possibilidades não realizadas; está repleto de angústias e nostalgias por uma vida não vivida, por uma vida que seria possível mas não é, e não porque não nos arriscamos ou coisa do tipo, mas porque não conseguimos, simplesmente não conseguimos, viver ‘todas’ as vidas possíveis. Ocorre que cada pessoa, cada jovem (na metáfora usada aqui), ‘combinado’ contigo e com certas ‘condições’, gera uma paradoxal, irrepetível e ao mesmo tempo fugaz vida.

Velhice

Estou lendo o último livro de Philip Roth, Nêmesis. Há um trecho, no qual o personagem principal fala de sua avó, que cuidou dele desde quando sua mãe morreu no parto, que me chamou a atenção. Identifiquei no trecho minha própria avó (com 96 anos!) e, principalmente, minha mãe, que semana passada fez 72 anos. É muito complicado quando você vê sua mãe com essa idade, e mesmo quando você mesmo começa a notar, visceralmente (não pelo cérebro, quero dizer), que você envelhece e que sua vida é uma tênue linha, um espirro ao mesmo tempo maravilhoso e fugaz. Enfim, transcrevo o trecho a seguir.

“Naquela noite, observando a avó enquanto esta lhe servia o jantar, ele se perguntou se sua mãe se parecia com ela caso houvesse tido a sorte de viver mais cinquenta anos – débil, curvada, ossos frágeis, cabelos que tinham perdido a cor décadas antes para se converter numa fina lanugem branca, dobras fibrosas nos braços e papada sob o queixo, juntas que doíam de manhã e tornozelos que inchavam e latejavam ao anoitecer, pele translúcida e tão fina como uma folha de papel nas mãos manchadas de marrom, cataratas que haviam encoberto e descorado seus olhos. O rosto que encimava a ruína do pescoço era agora uma complexa malha de rugas, sulcos tão diminutos que pareciam ser obra de alguma ferramenta bem menos grosseira do que o formão da velhice – talvez um buril para gravar em metal ou o bilro de um fazedor de rendas, manipulado por um mestre artesão a fim de lhe dar a aparência de uma avó tão velha quanto as mais velhas no mundo” (p. 89).

 

 

O essencial de Franz Kafka

A editora Companhia das Letras acaba de lançar mais um número em sua coleção de parceria com a Penguin Books. Desta vez, o autor é Kafka, numa excelente compilação de textos – de clássicos, como A Metamorfose, como menos conhecidos do público brasileiro (suponho eu), tais como os Aforismos.

Trata-se, quase desnecessário dizer, de importância iniciativa, pois, além da reunião de textos fundamentais, cada um deles é precedido de uma criteriosa análise e contextualização por Modesto Carone, que de quebra é o tradutor.

Gostaria de destacar um trecho que figura na contra-capa do livro:

Não é necessário que você saia de casa. Fique junto à sua mesa e escute. Nem mesmo escute, só espere. Nem mesmo espere, totalmente em silêncio e sozinho. O mundo irá oferecer-se a você para o próprio desmascaramento, não pode fazer outra coisa, extasiado ele irá contorcer-se a seus pés

Visão grega, certamente; contemplar o mundo de onde se está, esperando seu desvelamento quase óbvio diante de nós. Essa imagem do mundo se “contorcendo” a nossos pés é simplesmente brilhante. Basta ter sensibilidade para ver, não? Isso me traz uma lembrança aparentemente desconexa, mas, dando o braço a torcer a Freud, trata-se de uma espécie de “chiste”: jamais estamos tão imersos no outro quando no momento em que somos nós próprios!

 

Pedagogia inversa

O que um pupilo do Instituto Benjamenta é sei eu bem, é óbvio. Um bom e redondo zero à esquerda, nada mais. Robert Walser

Walser foi, como se diz por aí, um grande influenciador de Kafka, Musil e Walter Benjamin. Nasceu na Suíça e morreu, demente, em um manicômio. Sua morte ocorreu precisamente no natal de 1956, durante uma de suas caminhadas solitárias.

Em um de seus livros, que leio no instante, Jakob Von Gunten, vemos uma espécie de “pedagogia reversa” em ação. O personagem, Von Gunten, é um jovem que escreve um diário relatando suas experiências no Instituto Benjamenta, uma espécie de escola dos fracassados, onde a formação visava incutir “paciência e obediência, duas qualidades que pouco ou nenhum proveito prometem”. Não há professores – quer dizer, os que havia, se foram! A única lição passada, repassada e repisada era a própria norma de funcionamento do tal Instituto. Os alunos do Instituto Bejamenta, “umas coisas muito pequenas e subalternas”… nunca seriam nada na vida.

O livro foi escrito em 1909, terceiro romance de Walser e, segundo se informa, seu preferido.

Não sei há paralelos, mas tome-se, por exemplo, o livro Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe. Acompanhamos ali o tortuoso processo de crescimento e de formação moral, psicológica e social do jovem Wilhelm. Numa trilha romântica, ele “se torna alguém” à medida que vai “se descobrindo”. No romance de Walser, não; aqui, Von Gunten e seus colegas não vão se tornar ninguém.

Tornar-se alguém: essa é a grande injunção da modernidade iluminista. Mantra poderoso e indiscutível de qualquer sistema pedagógico, do tradicional ao construtivista, e além. Nenhuma escola, pública ou privada, pode se furtar à missão de transformar seus pupilos em “alguém”, em um “indivíduo”. As privadas, porém, a duras penas tentam dissimular sobre a brutal contradição que espera seus pupilos no futuro mercado “altamente competitivo”. Mercado, cuja lógica permanecerá sendo desemprego em alta, exigências de formação… também em alta, sempre! Paradoxo torpe.

Walzer parece uma pequena e ardente voz em sentido contrário ao mantra do “tornar-se alguém”.

Nada me faltará

Acabo de ler o novo livro do paulistano Lourenço Mutarelli (o mesmo autor de “O cheiro do ralo”, que virou filme). A história narra um insólito incidente que aconteceu com o personagem principal, Paulo. Desaparecido a um ano, ele reaparece do nada e, pior, não se lembra do que aconteu. Para ele, um ano era equivalente a um dia. Antes de sumir, Paulo vivia uma vida “normal”: era casado e tinha uma filha.

O que mais incomoda os amigos e a mãe de Paulo (além da polícia) é que este não demonstra qualquer preocupação pelo paradeiro da mulher e filha, que sumiram ao mesmo tempo que ele, mas, ao contrário de sua sorte, continuam desaparecidas. A indiferença de Paulo é interpretada como prova de que ele deve ter alguma culpa no sumiço das duas. O personagem, porém, admite, em sua sessão de terapia, que não sente absolutamente nenhuma falta delas (daí, provavelmente, o título do livro).

Numa interpretação livre, fiquei com a sensação de que o livro aborda o significado de “realidade”. Toda a ambiguidade gerada pela narrativa tem a ver com a alternância entre acreditar no personagem principal (que dizia não ter nada a ver com o desaparecimento da mulher e filha) ou em seus amigos e parentes. Em grande parte do livro, Paulo é lacônico, de uma concretude discursiva radical. Os outros “falam” para ele, dele, sobre ele.

O final da estória, apesar de aberto, deixa entrever uma pista sobre o que, afinal, pode ter acontecido – o último livro comprado por Paulo foi Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, de Foucault. Quem conhece, sabe que se trata de uma história verídica de parricídio/fatricídio narrada pelo filósofo francês. Eis aí, além da prazeirosa (como sempre) leitura de Mutarelli, um convite para voltarmos a alguns clássicos.