O esteta

Don Giovanni, ou Don Juan, é uma peça de Mozart. Nela, D. Juan é um sedutor. Ele seduz mulheres sem qualquer consideração escrupulosa. Destroi casamentos, reputação, honra. Vai até as últimas consequências em seus planos, manobras, “lábia”, mentiras e artifícios. Ao conquistar uma mulher, ele então a abanona e passa para a próxima. Não se satisfaz com uma conquista. É como se seu desejo não tivesse objeto, a não ser o próprio desejo de desejar.

Nunca dei muita importância a essa história. Lembro-me de ter assistido um filme (ou séria, já não tenho certeza) sobre D. Juan, e tinha em minha mente que ele era um homem bonito, ou pelo menos bem apessoado, um galã, como se diz, ou um “garanhão”. Esta última palavra era usada no meu tempo de adolescência e juventude para descrever homens (geralmente) que “pegavam” muitas moças (“pegar” pode já estar fora de moda, ou ser uma palavra “cancelada”, assim como “garanhão”). Don Juan seria como esses personagens de vampiro que ficaram famosos, especialmente com adolescentes, ao menos no que diz respeito à beleza, à nobreza e ao potencial sedutor (embora vampiros, ao menos os da televisão, acabem se acalmando “pela eterninade” com um único amor…).

Vai tarde quando descobri que Don Giovanni foi escolhido por Kierkegaard como uma espécie de ideal-tipo, um modelo para a descrição de uma forma de relação com a existência que esse filósofo denomina de estética. A existência estética é uma em que o sujeito vive pulando de uma sensação para outra, de uma aventura para outra. Em termos atuais, poderíamos dizer que o esteta é um típico sujeito consumista. Ele não se importa muito com o conteúdo do que consome, desde que esteja consumindo, comprando e destacartando coisas e… pessoas. Aliás, o consumista como ideal-tipo é uma condição praticamente inescapável em uma economia capitalista de mercado.

Kierkegaard usa uma metáfora muito interessante para capturar essa existência. Nessa imagem, o esteta procede como que “rotacionando culturas”. Por exemplo, hoje você planta milho em seu pedaço de terra. Após a colheita, você resolve plantar cenouras. A terra nunca é cultivada de modo a acomodar uma plantação mais perene, como pés de café, ou mesmo árvores, algumas das quais, como sabemos, podem ser centenárias.

O esteta está permanentemente frustrado, incompleto, com um desejo que nunca se aquieta. É como aquela pessoa que começa um emprego e logo o deixa para fazer outra coisa. Começa um relacionamento e, assim que este começa a exigir um pouco mais de compromisso e estabilidade, ele o deixa, começando tudo de novo, como fazia Don Giovanni. Lê livros pela metade, ou então em passagens aleatórias. Responde a uma mensagem em um aplicativo de mensagens, e depois nem lembra mais direito o que quis dizer – pois fala sem compromisso, sem a substância de seu próprio corpo, seu coração, sua alma. Em nossa época, até patologias foram identificadas em relação a pessoas cuja atenção não consegue repousar em uma única coisa de cada vez.

O esteta, em termos morais, é um sujeito sem comprometimento, um flaneur, um avião que nunca aterriza. Sempre mudando de “culturas”, vive uma vida de curtição, de escapadas, de duplicação ou triplicação de frentes existenciais, de palavras vazias dadas ao outro. Um insaciável; em português direto: um mentiroso. Como um viciado em drogas, dobra a aposta quando sente o vazio bater à porta. Ele se imagina livre e autônomo, incapaz de ser capturado por estruturas sociais (como, por exemplo, pelos costumes de seu tempo), de ser moldado, forçado a servir a um único mestre. Ele se sente indomável, rebelde.

Mas a vida do esteta não segue sem rachaduras, falhas e potenciais ameças. Primeiro, essa vida depende de sorte, ou de um berço de ouro, e ainda de uma quantidade infinita de tempo, uma em que doença, velhice e morte não fazem parte da cena. Segundo, ela apresenta um problema observado em finanças, conhecido como “lei de retornos decrescentes” – a mesma coisa, ao longo do tempo, se mantidas certas condições (por exemplo, uma peça sem manutenção), tende a se depreciar, a perder o valor, a parar de funcionar. Terceiro, uma ameaça particularmente preocupante para uma vida estética é o tédio. Aqui temos uma espécie de ironia do Criador, pois, por alguma razão, quando fazemos sempre a mesma coisa, ainda que por “mesma coisa” queiramos dizer “fazer coisas sempre diferentes”, somos corroídos pelo tédio. Não à toa, o Sedutor, figura usada por Kierkegaard em um de seus livros (do qual Don Juan é o protótipo), é cercado de tédio. Ele, em algum nível, sente que sua vida tem algo de errado, que não é inteiramente justificada em si mesma. Na tentativa de ser livre acaba se tornando dependente de fatores externos para manter seu zest. O esteta se torna dependente de distrações – e, para tê-las, paga um preço cada vez mais elevado.

Na análise de Kierkegaard, a vida estética é abalada pela intromissão do ético. Uma vida que apenas perambula sobre ela mesma não é mais do que uma coleção aleatória de momentos ou trills. Ela não tem algo que a amarre a si mesma em um conjunto, que lhe impulsione a partir de um eixo, ou de uma narrativa coordenada. À cada excitação e aventura, intensa mas fugaz, o esteta é deixado consigo mesmo, no vazio, já novamente pensando em o que fará a seguir para preencher esse vazio com uma nova forma de sedução (de objetos ou outras pessoas).

Finalizo esse breve rascunho com a ferida do esteta: o desepero. É o desespero que abre a lacuna crucial para a vida estética ceder à vida ética. O desepero é o que demanda que o esteta pare de “viajar na maionese” e aterrize por um momento e passe a encarar o fato de sua vida estar girando no vazio, por mais empolgante que alguns momentos possam ser. Aprender a encarar o desespero é a oportunidade para levar a vida a um nível mais elevado de desenvolvimento.

Em algum momento, se inspirado, pretendo voltar ao tema do desespero, da angústia, e da vida ética, uma vida em que temos de nos comprometer, temos de aterrizar, temos de considerar que existem outras pessoas e que, no limite, estamos aqui para servi-las. Não se trata, pelo que entendo, de abandonar por completo elementos da vida estética, mas de não deixar que tudo se defina por ela. De fato, aspectos da vida estética são valiosos, pois, do contrário, tudo seria muito maçante, como a vida de um juíz imaginário (que, aliás, é o ideal-tipo usado por Kierkegaard para ilustrar a vida ética), duro, rigoroso, obediente à lei.

4.5 bilhões de anos

Fragmentos dispersos, 6

Após um bom tempo de pausa (quase havia esquecido que tinha este espaço), vou tentar retomar algumas anotações. Como sempre disse aqui, praticamente escrevo para mim mesmo. Gosto de voltar a algumas anotações de tempos em tempos, na curiosa ociosidade de tentar ver se ainda penso certas coisas.

A coisa mais assustadora sobre o universo. O NYT fez, por estes dias, uma série de breves áudios por ocasião do feriado de Halloween. Em uma delas, o autor escolheu o que para ele seria a coisa mais assustadora do universo. Outros escolheram diferentes coisas – o poema, o filme, o livro mais assustadores. E eis o que realmente é assustador sobre o universo, muito mais do que um buraco negro devorador até de luz, ou um meteoro acertando a Terra: o fato de que todo o Universo poderia desaparecer completamente, e sem nenhum aviso prévio. Isso poderia acontecer a daqui alguns bilhões de anos, ou neste exato instante. Tudo o que já existiu, tudo o que poderia existir, isto é, o passado, o futuro, até mesmo as leis da Física: tudo simplesmente esvaneceria sem deixar o menor traço. Todos os grandes pensadores da humanidade, toda a história das civilizações, todos os livros escritos, as artes, os amores, as dores, as memórias, deuses, etc. Seria como se nunca tivéssemos existido. Nada do que você fez, ou do que você deixou de fazer, nada disso realmente importaria absolutamente. A razão de tudo isso é a existência de uma partícula sub-atômica chamada Higgs’ boson, o qual é uma manifestação de uma energia chamada de Higgs’s field. Esta energia permeia todo o espaço-tempo, imbuindo todas as outras partículas com massa. Sem ele, nenhuma das outras partículas teria qualquer massa. O universo não teria átomos ou estrelas. Esse campo, ou field, é instável. Sem aviso, ele pode mudar de forma. Como água virando gelo. Essa mudança alteraria toda a realidade que conhecemos, dissolvendo todos os átomos e, por consequência, tudo o que conhecemos e experimentamos. Sem átomos não haveria DNA…não haveria pessoas. E tudo se dissolveria na velocidade da luz. Você não sentiria nada. E seria o fim de tudo. O autor lembra Shakespeare: Somos feitos da mesma coisa que os sonhos são feitos, e nossa vidinha é cercada pelo sono.

Ainda sobre o universo. Em uma outra reportagem recente do NYT, a autora questiona sobre o que aconteceria com um corpo humano no espaço. Esquecemos o quão acolhedora é a Terra, mesmo com todos os riscos naturais que presenciamos de tempos em tempos. Quando comparada ao Universo, a Terra é uma estufa inacreditável, um sistema absolutamente fantástico, tão perfeito no nível macro como no nível microscópico. No espaço, entre outras coisas, não teríamos duas coisas fundamentais: gravidade e proteção contra radiação. É óbvio que não há oxigênio também, de modo que morreríamos asfixiados em questão de segundos, muito antes de a ausência de gravidade ou excesso de radiação nos incomodar. A ausência de gravidade talvez seja o fator mais pervasivo, pois essa condição alteria todo o equilíbrio de forças em nosso corpo: nossa massa muscular, a distribuição de sangue entre os vários compartimentos corporais, fluidos (como o de urina), nosso aparelho digestivo, até mesmo a distribuição de nossa microbiota intestinal. Astronautas, que via de regra são selecionados por suas capacidades físicas excepcionais, têm uma sobrevida menor que a de outras pessoas que nunca tiveram a chance de conhecer o espaço. As forças magnéticas produzidas pelos dois pólos terrestes agem como um manto a envolver o planeta, dispersando o grosso da radiação. O espaço é um ambiente inóspido, vazio, averso a qualquer forma de vida (pelo menos, a nossa vida humana), brutal em seu dançar de forças violentas. Infinito. É interessante como, em nosso cotidiano, ficamos tão introspectos, tão fechados em nós mesmos, em nossos afazeres, que simplesmente não consideramos esses pensamentos. Eu mesmo às vezes me pergunto por que tanto dinheiro, energia, expectativa e trabalho estão sendo aplicados em explorações espaciais. Por exemplo, alguns empreendedores estão pensando, em um futuro próximo, criar estações espaciais que funcionariam como uma espécie de resorts ou hotéis para gente com muito dinheiro poder explorar a Lua ou Marte. Por que não devotamos todos esses recursos para resolvermos problemas na Terra? Mas no fundo dá para entender. Somos uma espécie fascinada, sempre se colocando desafios monstruosos, incapaz de aceitar nosso simples estar em um local, mesmo em um único planeta. O gênio humano precisa ser canalizado, concentrado, focado em uma missão como essas. Muitas sub-áreas são criadas dessa forma – por exemplo, medicina espacial. E é interessante, pois, no fundo, tais missões só vão aprofundar nossa compreensão do básico, do essencial: como a Terra, e a vida nela, são condições excepcionais. E melhor: nos foram dadas gratuitamente.

Why?

O lugar na fila

Quando eu era pequeno, havia uma situação que eu odiava. O momento em que ficávamos numa fila esperando sermos convocados para formar dois times de futebol. Eu e um outro sempre ficávamos por último, quando não havia mais a quem escolher. Hoje, muitos anos depois, ainda sinto uma dor grande quando sou o último da fila. Mas deixar alguém por último na fila e uma prática normal. Até mesmo na universidade isso ocorre. Justamente onde deveríamos olhar para exatamente o fim da fila. Não sei do destino da maioria daqueles meus coleguinhas de colégio. A maioria por certo sequer chegou à universidade. Custa para entendermos que estar no papel de selecionar os melhores pode ser uma arma nas mãos de quem não tem outra coisa.

Mas o que há no medo de ser o último da fila? Não creio ter crescido ressentido, do tipo que “vai se vingar”. Talvez eu seja o tipo que “vai provar”. Tão triste quanto. Pois provar para quem? Onde estão esses expectadores imaginários do meu “eu”? Por outro lado, acho que meu medo, mesmo, é de não aceitar a lógica do mundo, a qual podemos observar em qualquer lugar na natureza. O fraco é deixado para trás. Se fôssemos cuidar de todos os fracos, com certeza não estaríamos aqui. Estaríamos, é claro, em uma outra humanidade. Diferente. Meu medo é de não corresponder a essa lógica subjacente. E suponhamos que eu não corresponda, mesmo (o que, aliás, é bem claro que não correspondo, a menos que me compare com formigas). O que vai acontecer? O que se perde? Qual o ponto em esbarrar-se com uma parede?

Relativizar: Ah, se eu estudar duro, se eu praticar, se eu me esforçar a ponto de me matar, aí o verdadeiro talento aflora. Subjugar-se: Sou assim mesmo, não há nada que eu possa fazer; o mundo é cruel mesmo, injusto. Racionalizar: Não posso ser culpado pelos meus fracassos; há um mundo cruel aí fora, com critérios artificiais, com pessoas competindo em condições desiguais.

O que você enxerga se encarar seu fracasso, dentro da lógica em que ele pode ser, sim, um fracasso? Ah, como existem respostas a esta questão. A maioria “fracassa”, logo, esse é um assunto sobre o qual muitos quebram a cabeça para ter algo a dizer. O pessoal da auto-ajuda é especialista em fracasso, por exemplo. E há também a religião, um poço infinito de antídotos ao fracasso – necessário, aliás, ou talvez chegássemos a uma guerra ou a uma sociedade dopada (infelizmente, você deve saber que é este último caso). Há filósofos que escrevem sobre como tirar lições do fracasso etc.

Volto à questão: o que há, no fundo do fundo, de ser alguém deixado por último na fila? Existe um não-ser. O não-amor. O abandono, a indiferença ou a humilhação. Para não falar das consequências materiais. Contra isso, me parece que há uma saída necessária: é preciso “construir” um ser que se contraponha a esse nada. E aí vamos para questões realmente profundas, reais: qual o “lastro” desse ser? Talvez seja uma situação trágica, pois não há lastro único, digamos, interno (o que poderia ser no fundo uma racionalização de um ser, como nas opções que coloquei acima). Porque veja: um crente (religioso; ou um crente “sábio” de tipo pagão), ele vai resistir ao nada com suas racionalizações e vai se espelhar em outros que simplesmente, pelas mesmas razões, se copiam entre si. Todo mundo, lá no fundo, anda por aí com essa questão no centro de sua existência. Discordo de quem diga que há tantos alienados e tal. Não, em relação a esta questão: em algum momento, à noite, num ponto de ônibus, dirigindo, etc., todos estão conscientes. A alienação talvez venha das estratégias para responder a isso. Então, o ser precisa se colocar, se afirmar, inclusive ou sobretudo quando é deixado para o último lugar da fila. Porque todos, na ponta da fila, são iguais; os da última fila, estes que sofrem, estes sofrem cada um a sua maneira.

Uma vez me ocorreu que talvez o corpo fosse a resposta. Porque o “eu” é, no fundo, um corpo, e nada mais do que isso. Em segundo lugar, esse “eu” está contido dentro da potência desse corpo. E, por fim, esse corpo e esse eu estão contidos na potência do universo. Cada corpo, na sua perfeicao, foi dado a todos com a mesmíssima gratuidade. Mas há algo em nos que nos draga para profundezas abissais quando nosso “eu” não é validado, positivado. Há um descompasso. A tentativa de colocar o mar num buraco. Quer dizer, o “eu” tenta colocar o mar nele.